C-419/02 - BUPA Hospitals e Goldsborough Developments

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Processo C‑419/02

BUPA Hospitals Ltd

e

Goldsborough Developments Ltd

contra

Commissioners of Customs & Excise

(pedido de decisão prejudicial apresentado pela

High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division]

«Sexta Directiva IVA – Artigo 10.°, n.° 2 – Exigibilidade do IVA – Pagamentos por conta – Pagamentos antecipados de entregas futuras de produtos farmacêuticos e de próteses»

Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro, apresentadas em 7 de Abril de 2005 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 21 de Fevereiro de 2006 

Sumário do acórdão

Disposições fiscais – Harmonização das legislações – Impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado – Facto gerador e exigibilidade do imposto

(Directiva 77/388 do Conselho, artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo)

O artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios, alterada pela Directiva 95/7, enquanto derrogação à regra enunciada no primeiro parágrafo do referido número, prevê que, em caso de pagamentos por conta antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, o imposto sobre o valor acrescentado se torna exigível no momento da cobrança e em relação ao montante recebido. Não são abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida disposição os pagamentos antecipados de um montante fixo, pago em relação a bens genericamente indicados numa lista que pode ser modificada a qualquer momento por comum acordo entre o comprador e o vendedor e a partir da qual o vendedor poderá eventualmente escolher artigos, com base num acordo que este pode rescindir unilateralmente a todo o momento, recuperando a integralidade do pagamento antecipado não utilizado.

Com efeito, para que o imposto se possa tornar exigível no caso do pagamento por conta antes da entrega de bens ou a prestação de serviços ter sido efectuada, é necessário que todos os elementos pertinentes do facto gerador, isto é, da futura entrega ou da futura prestação, já sejam conhecidos e, por conseguinte, em particular, que, no momento do pagamento por conta, os bens ou os serviços sejam especificamente identificados.

(cf. n.os 45, 48, 51, disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

21 de Fevereiro de 2006 (*)

«Sexta Directiva IVA – Artigo 10.°, n.° 2 – Exigibilidade do IVA – Pagamentos por conta – Pagamentos antecipados de entregas futuras de produtos farmacêuticos e de próteses»

No processo C‑419/02,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division (Reino Unido), por decisão de 8 de Novembro de 2002, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de Novembro de 2002, no processo:

BUPA Hospitals Ltd,

Goldsborough Developments Ltd

contra

Commissioners of Customs & Excise,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Schiemann, J. Makarczyk, presidentes de secção, S. von Bahr (relator), J. N. Cunha Rodrigues, R. Silva de Lapuerta, K. Lenaerts, P. Kūris, E. Juhász e G. Arestis, juízes,

advogado‑geral: M. Poiares Maduro,

secretário: K. Sztranc, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 23 de Novembro de 2004,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação da BUPA Hospitals Ltd e da Goldsborough Developments Ltd, por R. Venables, QC, assistido por T. Lyons, barrister, mandatados por D. Garcia, solicitor,

–       em representação do Governo do Reino Unido, por R. Caudwell, na qualidade de agente, assistida por C. Vajda, QC,

–       em representação da Irlanda, por D. J. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por A. M. Collins, SC,

–       em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster, na qualidade de agente,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Lyal, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de Abril de 2005,

profere o presente

Acórdão

1       O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 2.°, ponto 1, do artigo 4.°, n.os 1 e 2, do artigo 5.°, n.° 1, do artigo 10.°, n.° 2, e do artigo 17.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54), alterada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995 (JO L 102, p. 18, a seguir «Sexta Directiva»).

2       Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a BUPA Hospitals Ltd (a seguir «BUPA Hospitals») e a Goldsborough Developments Ltd (a seguir «Goldsborough Developments»), duas sociedades do grupo BUPA, e os Commissioners of Customs & Excise (a seguir «Commissioners»), a respeito da recusa de estes últimos autorizarem a dedução, pretendida pela BUPA Hospitals e pela Goldsborough Developments, do montante de 17,5 milhões de GBP (cerca de 26,2 milhões de euros) a título do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») pago a montante sobre os pagamentos por conta de entregas futuras efectuadas por duas outras sociedades do grupo BUPA.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3       O artigo 2.°, ponto 1, da Sexta Directiva sujeita ao IVA as entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade.

4       Nos termos do artigo 4.°, n.° 1, desta directiva, por sujeito passivo entende‑se qualquer pessoa que exerça, de modo independente, uma das actividades económicas referidas no n.° 2 deste artigo. O conceito de «actividades económicas» é definido no referido n.° 2, englobando todas as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços e, designadamente, as operações que impliquem a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência.

5       O artigo 4.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Sexta Directiva precisa que:

«Sem prejuízo da consulta prevista no artigo 29.°, os Estados‑Membros podem considerar como um único sujeito passivo as pessoas estabelecidas no território do país que, embora juridicamente independentes, se encontrem estreitamente vinculadas entre si nos planos financeiro, económico e de organização.»

6       Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da mesma directiva, «[p]or ‘entrega de um bem’ entende‑se a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário».

7       O artigo 10.°, n.os 1 e 2, da Sexta Directiva tem a seguinte redacção:

«1.      Para efeitos do disposto na presente directiva:

a)      Por facto gerador do imposto entende‑se o facto mediante o qual são preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto;

b)      Por exigibilidade do imposto entende‑se o direito que o fisco pode fazer valer, nos termos da lei, a partir de um determinado momento, face ao devedor, relativamente ao pagamento do imposto, ainda que o pagamento possa ser diferido.

2.      O facto gerador do imposto ocorre, e o imposto é exigível, no momento em que se efectuam a entrega do bem ou a prestação de serviços. As entregas de bens que não sejam as referidas no n.° 4, alínea b), do artigo 5.° e as prestações de serviços de que resultem sucessivas deduções ou pagamentos consideram‑se efectuadas no termo dos prazos a que se referem essas deduções ou pagamentos.

Todavia, em caso de pagamentos por conta antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, o imposto torna‑se exigível no momento da cobrança e em relação ao montante recebido.

Em derrogação das disposições anteriores, os Estados‑Membros podem prever que, em relação a certas operações ou a certas categorias de sujeitos passivos, o imposto se torna exigível:

–       quer, o mais tardar, no momento da emissão da factura ou do documento que a substitua;

–       quer, o mais tardar, no momento do recebimento do preço;

–       quer, nos casos em que a factura ou o documento que a substitua não é emitido ou é emitido tardiamente, dentro de um prazo fixado a contar da data do facto gerador.»

8       O artigo 13.°, A, n.° 1, alíneas b) a e), da mesma directiva prevê que os Estados‑Membros isentarão determinadas actividades no sector dos serviços médicos.

9       O artigo 17.°, n.° 1, da mesma directiva, prevê que «[o] direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível».

10     Segundo o n.° 2, alínea a), do mesmo artigo:

«Desde que os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis, o sujeito passivo está autorizado a deduzir do imposto de que é devedor:

a)      O imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago em relação a bens que lhe tenham sido fornecidos ou que lhe devam ser fornecidos e a serviços que lhe tenham sido prestados ou que lhe devam ser prestados por outro sujeito passivo;».

11     Nos termos do artigo 28.°, n.° 2, alínea a), primeiro parágrafo, da Sexta Directiva, durante o período de transição previsto no artigo 28.° M «[p]oder‑se‑ão manter as isenções com reembolso do imposto pago no estádio anterior e as taxas reduzidas inferiores à taxa mínima estabelecida no n.° 3 do artigo 12.° em matéria de taxas reduzidas que se encontrem em vigor em 1 de Janeiro de 1991, estejam em conformidade com o direito comunitário e preencham as condições definidas no último travessão do artigo 17.° da Segunda Directiva do Conselho, de 11 de Abril de 1967».

 Legislação nacional

12     A Section 6(4) da Lei de 1994 relativa ao IVA (Value Added Tax Act 1994) dispõe:

«Se, antes do momento relevante para efeitos das subsections (2) ou (3) desta Section, a pessoa que entrega o bem ou presta o serviço emitir uma factura relativa ao IVA correspondente, ou se, antes do momento relevante para efeitos das subsections (2), (a) ou (b), ou (3) desta Section, receber o respectivo pagamento, a entrega ou prestação será considerada até ao montante da factura ou do pagamento, como tendo ocorrido no momento em que a factura foi emitida ou o pagamento foi recebido.»

13     Nos termos da Section 30(1) dessa mesma lei, na versão anterior a 1 de Janeiro de 1998:

«Quando um sujeito passivo fornecer bens ou prestar serviços e essa entrega ou prestação for tributável à taxa zero de IVA, esteja ou não sujeita a IVA por força de outra disposição,

(a)      essa entrega não deve ser sujeita a IVA; mas

(b)      deve ser considerada uma entrega tributável para todos os outros fins;

devendo a taxa de IVA aplicada a essa entrega, por conseguinte, ser nula.»

 Processo principal e questões prejudiciais

14     Resulta da decisão de reenvio que a BUPA Hospitals e a BUPA Gatwick Park Hospital Ltd (a seguir «BUPA Gatwick Park») fazem parte do grupo BUPA, bem como, para os fins do artigo 4.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Sexta Directiva, do grupo IVA BUPA.

15     Durante vários anos e mais precisamente até ao final de 1997, a BUPA Hospitals exerceu, entre outras, a actividade de gestão de um grande número de hospitais particulares. Em conformidade com uma decisão da Court of Appeal, no âmbito de um litígio entre a BUPA Hospitals e os Commissioners que vem desde 1993, os fornecimentos de medicamentos e de próteses efectuados pela BUPA Hospitals aos pacientes desses hospitais estavam sujeitos à taxa zero de IVA, o que permitiu à BUPA Hospitals recuperar o imposto pago a montante sobre a aquisição desses produtos aos seus fornecedores.

16     No seguimento da não admissão, em 24 de Julho de 1997, pela House of Lords, do recurso dos Commissioners, o Governo do Reino Unido deu a conhecer, em 13 de Agosto de 1997, a sua intenção de adoptar rapidamente legislação para remediar os efeitos da decisão da Court of Appeal.

17     O órgão jurisdicional de reenvio assinala que, na sequência do anúncio dessa nova legislação, o grupo BUPA optou por recorrer a acordos de pagamento antecipado. A ideia subjacente a estes acordos era a seguinte: um operador, cujas entregas são tributadas à taxa zero e que, portanto, pode recuperar o imposto pago a montante sobre as suas entregas de medicamentos e de próteses desde que estes sejam ou venham a ser objecto de entregas tributáveis, celebra contratos para aquisição de bens e serviços na previsão da mudança legislativa. Seguidamente, esse operador requer o reembolso do imposto pago a montante correspondente ao período em que o pagamento foi feito ou a factura emitida, mesmo que a entrega só venha a ser efectuada num período contabilístico ulterior.

18     No âmbito destes acordos, foi decidido recorrer a uma sociedade do grupo BUPA para desempenhar o papel de fornecedor, a fim de manter o pagamento antecipado no interior do grupo. Tratava‑se da BUPA Medical Supplies Ltd (na altura denominada Goldsborough Retirement Property Services Ltd, a seguir «BUPA Medical»), uma sociedade do grupo Goldsborough adquirida no início de Agosto de 1997 pelo grupo BUPA e que, deste modo, se tornou numa sociedade sem actividade. Essa sociedade, apesar de fazer parte do grupo BUPA, não pertencia ao mesmo grupo IVA que a BUPA Hospitals.

19     A decisão de reenvio precisa que, para evitar o risco de os Commissioners encontrarem um motivo para retardar o reembolso do IVA, foi decidido que uma outra sociedade do grupo Goldsborough, a Goldsborough Developments, uma sociedade que gere quatro hospitais particulares e que também faz parte de um grupo para efeitos de IVA diferente do da BUPA Hospitals, celebraria um acordo de pagamento antecipado do mesmo montante e no mesmo período contabilístico que esta última, com um fornecedor pertencente ao grupo IVA BUPA. A sociedade BUPA Gatwick Park, que também era na altura uma sociedade sem actividade, foi escolhida como segundo fornecedor no âmbito dos acordos de pagamento antecipado.

20     Em 5 de Setembro de 1997, realizaram‑se reuniões dos conselhos de administração das quatro sociedades em causa. Os conselhos de administração da BUPA Hospitals e da BUPA Medical decidiram celebrar dois contratos, um relativo à compra e entrega de medicamentos e outro à compra e entrega de próteses.

21     Por ocasião da reunião do conselho de administração da BUPA Hospitals, foi decidido efectuar pagamentos antecipados de 60 milhões de GBP, acrescidos de IVA, para compra de medicamentos e de 40 milhões de GBP, acrescidos de IVA, para compra de próteses à BUPA Medical.

22     No mesmo dia, foi adoptada uma resolução especial que alterou a denominação social de Goldsborough Retirement Property Services Ltd para BUPA Medical e o objecto social desta última, de modo a incluir o comércio de produtos farmacêuticos e de próteses.

23     Ainda no dia 5 de Setembro de 1997, a BUPA Medical enviou à BUPA Hospitals facturas relativas à entrega de medicamentos, num montante de 60 milhões de GBP, acrescido de 10,5 milhões de GBP a título de IVA, e de próteses, num montante de 40 milhões de GBP, acrescido de 7 milhões de GBP a título de IVA.

24     Na mesma data, os conselhos de administração da Goldsborough Developments e da BUPA Gatwick Park decidiram celebrar dois contratos referentes, um à compra e entrega de medicamentos e outro à compra e entrega de próteses.

25     O conselho de administração da Goldsborough decidiu pagar imediatamente à BUPA Gatwick Park 50 milhões de GBP acrescidos de IVA pela compra de medicamentos e 50 milhões de GBP acrescidos de IVA pela compra de próteses.

26     No mesmo dia, a BUPA Gatwick Park enviou duas facturas à Goldsborough Developments respeitantes à entrega de medicamentos, num montante de 50 milhões de GBP, acrescido de 8,75 milhões de GBP de IVA, e de próteses, igualmente num montante de 50 milhões de GBP, acrescido de 8,75 milhões de GBP de IVA.

27     Resulta da decisão de reenvio que os contratos com base nos quais os pagamentos antecipados foram efectuados eram semelhantes. Esses contratos precisavam que:

–       o comprador devia pagar o preço contratual ao vendedor na data de celebração do contrato,

–       os produtos abrangidos eram os descritos no anexo, o qual podia ser alterado por comum acordo das partes,

–       o vendedor entregava os referidos produtos, ou parte deles, segundo instruções ulteriores do comprador até o valor total das entregas perfazer o preço contratual,

–       qualquer das partes podia denunciar o contrato mediante um pré‑aviso de sete dias, e

–       nesse caso, o comprador recuperava o preço contratual deduzido do valor das entregas já efectuadas à data da rescisão.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o anexo era o mesmo para os diferentes contratos e continha uma lista heterogénea abrangendo muitas centenas de medicamentos, próteses e produtos diversos. O órgão jurisdicional de reenvio observa que era evidente que nenhum dos directores das quatro sociedades tinha prestado atenção ao teor desse documento.

28     Segundo a mesma decisão, esses acordos, se fossem levados a bom termo, permitiriam ao grupo BUPA evitar quebras de liquidez e pagar aos Commissioners o IVA devido nesse âmbito. Com efeito, o grupo IVA BUPA pôde, na sua declaração de IVA respeitante ao período que terminava em Novembro de 1997, contabilizar o IVA pago a montante no valor de 17,5 milhões de GBP, respeitante às compras da BUPA Hospitals à BUPA Medical, ao qual correspondia o IVA a jusante de 17,5 milhões de GBP, respeitante às vendas da Gatwick Park à Goldsborough Developments. O grupo Goldsborough, independente do grupo IVA BUPA, pôde fazer o mesmo: a declaração de IVA deste grupo incluía o IVA pago a montante de 17,5 milhões de GBP, respeitante às compras da Goldsborough Developments à BUPA Gatwick Park, e o IVA a jusante de 17,5 milhões de GBP, respeitante às vendas da BUPA Medical à BUPA Hospitals.

29      Em 8 de Setembro de 1997, o Midland Bank recebeu instruções para transferir da conta de outra sociedade do grupo BUPA, a BUPA Investments Ltd (a seguir «BIL»), um montante total de 235,5 milhões de GBP, sendo 118 milhões de GBP para a conta da BUPA Hospitals e 117,5 milhões de GBP para a conta da Goldsborough Developments. Os juros mensais foram facturados à taxa diária de base média relativamente a cada mês.

30     Na mesma data, o Midland Bank recebeu instruções para transferir os montantes de 117,5 milhões de GBP, por um lado, da BUPA Hospitals para a BUPA Medical e, por outro, da Goldsborough Developments para a BUPA Gatwick Park e para, posteriormente, transferir esses mesmos montantes de volta à BIL. Foram creditados juros à BUPA Medical e à BUPA Gatwick Park sobre os montantes dos depósitos respectivos na BIL.

31     Em 18 de Novembro de 1997, foi submetido ao Parlamento o Regulamento relativo à aplicação do IVA sobre medicamentos, produtos farmacêuticos e aparelhos para pessoas com deficiência [VAT (Drugs, Medicines and Aids for the Handicapped) Order (SI 1997/2744)]. Entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1998. O mesmo alterou o anexo 8, grupo 12, da Lei de 1994 relativa ao IVA, excluindo da lista de bens tributados à taxa zero as entregas de produtos de saúde efectuadas no Reino Unido por fornecedores privados. Essas entregas passaram a estar isentas. Daqui resulta que, em princípio, o IVA pago a montante sobre esses produtos deixa de poder ser deduzido.

32     As providências para execução das cláusulas dos acordos de pagamento antecipado entre a BUPA Hospitals e a BUPA Medical foram postas em prática em Setembro de 1998. A decisão de reenvio indica que a autorização para comércio por junto de produtos de saúde foi concedida à BUPA Medical em 19 de Agosto de 1998 e que todos os hospitais geridos pela BUPA Hospitals fizeram as suas encomendas à BUPA Medical no início de mês de Dezembro de 1998. Segundo a mesma decisão, a BUPA Hospitals utiliza os pagamentos antecipados em causa a um ritmo que lhe permite conservar a tributação à taxa zero durante seis ou sete anos a contar do mês de Setembro de 1998.

33     No que diz respeito aos acordos de pagamento antecipado celebrados entre a Goldsborough Developments e a BUPA Gatwick Park, as providências relativas às entregas de próteses foram levadas a cabo em meados de 2001 e as relativas aos medicamentos em Novembro de 2001. Resulta da decisão de reenvio que surgiram problemas sérios a seguir à aquisição do grupo Goldsborough e que esses problemas tinham de ser resolvidos antes da aplicação do sistema de processamento de encomendas. Por este motivo, a BUPA Gatwick Park só obteve autorização de comercialização de medicamentos em 8 de Junho de 2001.

34     A decisão de reenvio precisa igualmente que, para participar no acordo de pagamento antecipado, a Goldsborough Developments teve que pedir um empréstimo de 117,5 milhões de GBP à BIL, ou seja, cerca de sete vezes o seu volume de negócios em 1997, o que teve como efeito aumentar a sua situação de endividamento em cerca de 270%. Os Commissioners consideraram que seriam necessários 50 a 100 anos à Goldsborough Developments para utilizar o seu pagamento antecipado.

35     Através de decisão de 14 de Setembro de 2000, os Commissioners não autorizaram a dedução pela BUPA Hospitals e pela Goldsborough Developments do imposto pago a montante por cada uma delas a título dos pagamentos antecipados de Setembro de 1997 relativos às entregas efectuadas pela BUPA Medical e pela BUPA Gatwick Park.

36     Em 25 de Fevereiro de 2002, o VAT and Duties Tribunal, London, negou provimento ao recurso interposto da decisão dos Commissioners, com base no facto de a BUPA Medical e a BUPA Gatwick Park não exercerem uma actividade económica e não efectuarem entregas na acepção do sistema comum do IVA. Concluiu que todas as medidas adoptadas no âmbito dos acordos de pagamento antecipado de Setembro de 1997 foram exclusivamente destinadas a evitar o pagamento do IVA. O papel da BUPA Medical e da BUPA Gatwick Park nesses acordos consistiu unicamente em permitir a realização desse objectivo.

37     O VAT and Duties Tribunal afastou, contudo, a tese dos Commissioners segundo a qual a doutrina do abuso de direito privava a BUPA Hospitals e a Goldsborough Developments do direito de deduzir o IVA pago a montante.

38     A BUPA Hospitals e a Goldsborough Developments recorreram para a High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division, e os Commissioners interpuseram recurso subordinado.

39     Considerando que tanto a decisão do VAT and Duties Tribunal como o recurso para a High Court suscitam algumas questões de direito comunitário, a High Court of Justice (England & Wales), Chancery Division, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Atendendo às circunstâncias relevantes, às transacções relevantes e à posição das sociedades vendedoras, que interpretação deve ser dada à expressão ‘actividades económicas’ do artigo 4.°, n.os 1 e 2, da [Sexta Directiva]?

2)      Atendendo às circunstâncias relevantes, às transacções relevantes e à posição das sociedades vendedoras, que interpretação deve ser dada à expressão ‘entrega de um bem’ do artigo 5.°, n.° 1, da [Sexta] Directiva?

3)      a)     Existe um princípio de abuso de direito que (independentemente da interpretação da [Sexta] Directiva) obste ao direito de deduzir o imposto a montante?

b)      Em caso afirmativo, em que circunstâncias é aplicável?

c)      Seria aplicável em circunstâncias como as que o VAT and Duties Tribunal julgou provadas?

4)      A resposta às questões 1 a 3 supra seria diferente se o pagamento respeitante às transacções relevantes tivesse sido efectuado num momento em que o fornecimento seguinte dos bens fosse um fornecimento isento com reembolso do IVA pago no estádio anterior, como o permite o artigo 28.°, n.° 2, alínea a), da [Sexta] Directiva?

5)      Como deve ser interpretada a [Sexta] Directiva especialmente em relação às seguintes questões: em circunstâncias como as ora relevantes e relativamente a transacções como as aqui relevantes, os fornecimentos devem ser tratados

a)      como tendo sido efectuados pelos fornecedores externos às sociedades compradoras sem quaisquer fornecimentos às ou pelas sociedades vendedoras?

ou

b)      como tendo sido feitos pelos fornecedores externos às sociedades vendedoras sem quaisquer fornecimentos por estas últimas às sociedades compradoras?

6)      Como devem ser interpretados o artigo 17.° da [Sexta] Directiva e as regras relativas à dedução, quando cada sociedade vendedora, no exercício de uma actividade económica, efectua fornecimentos a uma sociedade compradora e

a)      as sociedades compradoras celebraram acordos com as sociedades vendedoras para lhes serem entregues bens;

b)      os bens são facturados e pagos antes da entrega;

c)      o IVA é cobrado com o pagamento antecipado, nos termos do disposto no artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da [Sexta] Directiva;

d)      os bens se destinam a ser utilizados pelas sociedades compradoras para efectuar fornecimentos que, se fossem feitos na altura do pagamento, teriam ficado isentos com direito a reembolso do imposto pago na fase anterior, mas

e)      cada sociedade compradora pretende que os bens abrangidos pelos acordos lhe sejam entregues somente no caso de ocorrer uma alteração legislativa em consequência da qual o uso efectuado pela sociedade compradora desses bens seja um uso que torne isento o fornecimento desses bens sem direito a reembolso?

[Saliente‑se, a respeito da alínea e), que, se a lei não for alterada no sentido descrito, as sociedades compradoras têm direito a rescindir os contratos com as sociedades vendedoras e a reclamar o reembolso do preço pago. Relativamente às transacções relevantes, os contratos entre as sociedades compradoras e as sociedades vendedoras têm cláusulas que autorizam essa resolução].

7)      O VAT and Duties Tribunal concluiu (no n.° 89 da sua decisão) que ‘nenhum dos indivíduos que podiam tomar decisões em nome da [BUPA Medical e da BUPA Gatwick Park] [...] tinha qualquer outro motivo ou propósito sério que não fosse o de levar a cabo um esquema de evasão do IVA’. As recorrentes, na petição de recurso para a High Court, contestaram este ponto da matéria de facto. Se esse facto viesse a ser julgado não provado no presente recurso, as respostas às questões 1 a 6 seriam diferentes e, em caso afirmativo, qual seria a diferença?»

 Observações preliminares

40     Através das suas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, por um lado, se operações como as que estão em causa no processo principal, que têm por objectivo a obtenção de um benefício fiscal, constituem entregas de bens e uma actividade económica, na acepção do artigo 2.°, ponto 1, do artigo 4.°, n.os 1 e 2, e do artigo 5.°, n.° 1, da Sexta Directiva, e, por outro, se essa directiva deve ser interpretada no sentido de que se opõe ao direito de o sujeito passivo deduzir o IVA pago a montante quando as operações em que esse direito se baseia são constitutivas de uma prática abusiva.

41     Todavia, resulta da decisão de reenvio e, em particular, das circunstâncias de facto descritas na quarta e na sexta questão prejudicial que a pedra angular das medidas adoptadas pelo grupo BUPA consiste na facturação do IVA do pagamento antecipado em conformidade com o artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva.

42     Ora, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional que lhe submeteu uma questão prejudicial, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito comunitário que não constituem o fundamento das questões prejudiciais do juiz nacional (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 12 de Outubro de 2004, Wolff & Müller, C‑60/03, Colect., p. I‑9553, n.° 24, e de 7 de Julho de 2005, Weide, C‑153/03, Colect., p. I‑0000, n.° 25).

43     Por conseguinte, no âmbito da quarta e da sexta questão, que há que apreciar em conjunto e em primeiro lugar, importa examinar a questão de saber se os pagamentos antecipados, como os que estão em causa no processo principal, são abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva.

 Quanto à quarta e à sexta questão

44     Importa desde logo recordar que o artigo 10.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Sexta Directiva prevê que o facto gerador do imposto ocorre, e o IVA é exigível, no momento em que se efectuam a entrega do bem ou a prestação de serviços.

45     O artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva, nos termos do qual, em caso de pagamentos por conta antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, o IVA se torna exigível no momento da cobrança e em relação ao montante recebido, constitui uma derrogação à regra enunciada no primeiro parágrafo da mesma disposição e, enquanto tal, deve ser objecto de uma interpretação estrita.

46     Além disso, importa recordar que o artigo 10.°, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva define «facto gerador» do IVA como o facto mediante o qual são preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto. Daqui decorre que o imposto se pode tornar exigível ao mesmo tempo ou depois da ocorrência do facto gerador, mas, salvo disposição em contrário, não antes.

47     Deste modo, o artigo 10.°, n.° 2, terceiro parágrafo, da Sexta Directiva autoriza os Estados‑Membros a prever que o imposto se torne exigível numa data posterior à data do facto gerador em três casos: quer, o mais tardar, no momento da emissão da factura; quer, o mais tardar, no momento do recebimento do preço; quer, nos casos em que a factura não é emitida ou é emitida tardiamente, dentro de um prazo a determinar a contar da data do facto gerador.

48     O segundo parágrafo do referido n.° 2 afasta‑se desta ordem cronológica ao prever que, em caso de pagamentos por conta, o IVA se torna exigível ainda antes da entrega de bens ou da prestação de serviços. Para que, em tal situação, o imposto se possa tornar exigível, é necessário que todos os elementos pertinentes do facto gerador, isto é, da futura entrega ou da futura prestação, já sejam conhecidos e, por conseguinte, em particular, como o advogado‑geral assinalou no n.° 100 das suas conclusões, que, no momento do pagamento por conta, os bens ou os serviços sejam especificamente identificados.

49     Esta conclusão é, além disso, corroborada pela exposição de motivos da proposta da Sexta Directiva (Boletim das Comunidades Europeias, Supl. 11/73, p. 13), na qual a Comissão observa que, «quando são efectuados os pagamentos por conta antes do facto gerador, o recebimento desses pagamentos torna o imposto exigível, uma vez que os co‑contratantes demonstram, desse modo, a sua intenção de retirar antecipadamente todas as consequências financeiras ligadas à ocorrência do facto gerador».

50     A este respeito, há igualmente que recordar que são as entregas de bens e as prestações de serviços que estão sujeitas ao IVA e não os pagamentos efectuados como sua contrapartida (v. acórdão de 9 de Outubro de 2001, Cantor Fitzgerald International, C‑108/99, Colect., p. I‑7257, n.° 17). A fortiori, não podem estar sujeitos a IVA os pagamentos por conta de entregas de bens ou de prestações de serviços ainda não claramente identificados.

51     Por conseguinte, há que responder à quarta e à sexta questão que não são abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva pagamentos antecipados, como os que estão em causa no processo principal, de um montante fixo, pago em relação a bens genericamente indicados numa lista que pode ser modificada a qualquer momento por comum acordo entre o comprador e o vendedor e a partir da qual o comprador poderá eventualmente escolher os artigos, com base num acordo que este pode rescindir unilateralmente a todo o momento, recuperando a integralidade do pagamento antecipado não utilizado.

 Quanto à primeira, à terceira, à quinta e à sétima questão

52     À luz da resposta dada à quarta e à sexta questão, não há lugar a responder à primeira, à terceira, à quinta e à sétima questão.

 Quanto às despesas

53     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

Não são abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, alterada pela Directiva 95/7/CE do Conselho, de 10 de Abril de 1995, pagamentos antecipados, como os que estão em causa no processo principal, de um montante fixo, pago em relação a bens genericamente indicados numa lista que pode ser modificada a qualquer momento por comum acordo entre o comprador e o vendedor e a partir da qual o comprador poderá eventualmente escolher os artigos, com base num acordo que este pode rescindir unilateralmente a todo o momento, recuperando a integralidade do pagamento antecipado não utilizado.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.