C-835/18 - Terracult

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62018CJ0835

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

2 de julho de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Retificação de fatura — Imposto incorretamente faturado — Reembolso do imposto indevidamente pago — Regime de autoliquidação do IVA — Operações relativas a um período de tributação que já foi objeto de uma inspeção fiscal — Neutralidade fiscal — Princípio da efetividade — Proporcionalidade»

No processo C‑835/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Curtea de Apel Timișoara (Tribunal de Recurso de Timişoara, Roménia), por Decisão de 21 de novembro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de dezembro de 2018, no processo

SC Terracult SRL

contra

Direcţia Generală Regională a Finanţelor Publice Timişoara — Administraţia Judeţeană a Finanţelor Publice Arad — Serviciul Inspecţie Fiscală Persoane Juridice 5,

ANAF Direcţia Generală Regională a Finanţelor Publice Timişoara Serviciul de Soluţionare a Contestaţiilor,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, I. Jarukaitis, E. Juhász (relator), M. Ilešič e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 5 de fevereiro de 2020,

vistas as observações apresentadas:

em representação da SC Terracult SRL, por I. Kocsis‑Josan, avocată,

em representação do Governo romeno, inicialmente por E. Gane, R. I. Haţieganu, A. Wellman, O.‑C. Ichim e C.‑R. Canţăr e, em seguida, por E. Gane, R. I. Haţieganu, A. Wellman e O.‑C. Ichim na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Armenia e N. Gossement, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de março de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação das disposições da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2013/43/UE do Conselho, de 22 de julho de 2013 (JO 2013, L 201, p. 4; a seguir «Diretiva IVA»), bem como dos princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a SC Terracult SRL, sociedade comercial de direito romeno (a seguir «Terracult»), à Direcţia Generală Regională a Finanţelor Publice Timişoara — Administraţia Judeţeană a Finanţelor Publice Arad — Serviciul Inspecţie Fiscală Persoane Juridice 5 (Direção‑Geral Regional das Finanças Públicas de Timișoara — Administração Distrital das Finanças Públicas de Arad — Serviço de Inspeção Fiscal das Pessoas Coletivas n.o 5, Roménia) e à ANAF Direcţia Generală Regională a Finanţelor Publice Timişoara Serviciul de Soluţionare a Contestaţiilor (Agência Nacional da Administração Fiscal — Direção‑Geral Regional das Finanças Públicas de Timișoara — Serviço de Reclamações, Roménia), a propósito de um pedido de anulação de um aviso de liquidação que recusou, à referida sociedade, o direito ao reembolso do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e lhe impôs o pagamento de um montante adicional de imposto.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do artigo 193.o da Diretiva IVA:

«O IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis, com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa nos termos dos artigos 194.o a 199.o‑B e 202.o»

4

O artigo 199.o‑A dessa diretiva, na redação dada pela Diretiva 2013/43, que entrou em vigor em 15 de agosto de 2013, previa:

«1.   Os Estados‑Membros podem, até 31 de dezembro de 2018, e por um período mínimo de dois anos, estabelecer que o devedor do imposto é o sujeito passivo ao qual tenha sido efetuada qualquer uma das seguintes entregas de bens ou prestações de serviços:

[…]

i)

Entregas de cereais e culturas industriais, incluindo sementes oleaginosas e beterraba sacarina, que não sejam habitualmente utilizados no seu estado inalterado para consumo final;

[…]

1‑A.   Os Estados‑Membros podem estabelecer as condições de aplicação do mecanismo previsto no n.o 1.

1‑B.   A aplicação do mecanismo previsto no n.o 1 ao fornecimento, entrega ou prestação de qualquer dos bens ou serviços enumerados nas alíneas c) a j) desse número fica subordinada à introdução de obrigações declarativas adequadas e eficazes aplicáveis aos sujeitos passivos que efetuem a entrega de bens ou a prestação de serviços a que o mecanismo previsto no n.o 1 se aplica.»

5

Segundo a Decisão de Execução do Conselho, de 20 de junho de 2011, que autoriza a Roménia a aplicar uma medida especial em derrogação do artigo 193.o da Diretiva 2006/112 (JO 2011, L 163, p. 26), aplicável até 31 de maio de 2013, e, em seguida, segundo o artigo 199.o‑A, n.o 1, da Diretiva IVA, na redação dada pela Diretiva 2013/43, este Estado‑Membro aplicava o regime de autoliquidação a determinados cereais, incluindo a colza.

Direito romeno

6

Nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do Ordonanța Guvernului nr. 92 privind Codul de procedură fiscală (Despacho do Governo n.o 92, que aprova o Código de Processo Tributário), de 24 de dezembro de 2003 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 941, de 29 de dezembro de 2003):

«A Autoridade Fiscal está autorizada a examinar oficiosamente a situação de facto, a obter e a utilizar todas as informações e os documentos necessários para determinar corretamente a situação fiscal do contribuinte. No âmbito da sua análise, a Autoridade Fiscal determina e toma em consideração todas as circunstâncias relevantes em cada caso.»

7

O artigo 205.o desse código, sob a epígrafe «Possibilidade de apresentar reclamação», prevê, no seu n.o 1:

«Em conformidade com a lei, pode ser apresentada reclamação do título de crédito e de qualquer outro ato administrativo fiscal. Na medida em que a reclamação constitui um mecanismo de recurso gracioso, a mesma não priva a pessoa que se considere lesada por um ato administrativo fiscal, ou pela sua inexistência, do direito de recorrer a um mecanismo contencioso nos termos previstos na lei.»

8

Nos termos do artigo 207.o, n.o 1, do referido código:

«A reclamação é apresentada no prazo de 30 dias a contar da notificação do ato administrativo fiscal, sob pena de preclusão.»

9

O artigo 213.o do mesmo código, sob a epígrafe «Análise da reclamação», dispõe, nos seus n.os 1 e 4:

«(1)   A autoridade competente, ao decidir sobre a reclamação, analisa os fundamentos de facto e de direito em que o ato administrativo fiscal se baseia. A análise da reclamação deve ter em conta os argumentos das partes, as disposições legais por elas invocadas e os documentos dos autos. A reclamação é analisada dentro dos limites do pedido apresentado.

[…]

(4)   O autor da reclamação, os intervenientes ou respetivos mandatários podem fornecer novos elementos de prova em apoio do seu pedido. Nesse caso, a Autoridade Fiscal emissora do ato administrativo fiscal impugnado ou o órgão que tenha efetuado a inspeção, consoante o caso, tem a possibilidade de se pronunciar sobre esses novos elementos.»

10

A Legea nr. 571 privind Codul fiscal (Lei n.o 571/2003, que aprova o Código Tributário), de 22 de dezembro de 2003 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 927, de 23 de dezembro de 2003), conforme alterada e aditada pela Legea nr. 343 (Lei n.o 343), de 17 de julho de 2006 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 662, de 1 de agosto de 2006), que transpôs, para o direito romeno, nomeadamente a Diretiva IVA, dispõe, no seu artigo 159.o:

«(1)   A retificação das informações introduzidas na fatura ou noutros documentos que a substituem é efetuada do seguinte modo:

(a)

se o documento não foi enviado ao destinatário, o mesmo é anulado e é emitido um novo documento;

(b)

se o documento foi enviado ao destinatário, é emitido um novo documento que deve conter, em primeiro lugar, a informação do documento inicial, o número e a data do documento retificado, os valores com sinal negativo (“—”) e, em segundo lugar, a informação e os valores corretos, ou é emitido um novo documento que contenha a informação e os valores corretos, juntamente com outro documento com os valores com sinal negativo no qual são introduzidos o número e a data do documento retificado.

[…]

(3)   Os sujeitos passivos que foram alvo de uma inspeção fiscal na qual foram verificados erros no que respeita à determinação correta do imposto cobrado, e aos quais é exigido o pagamento desses montantes com base no ato administrativo emitido pela Autoridade Fiscal competente, podem emitir aos destinatários faturas retificadas nos termos do n.o 1, alínea b). As faturas emitidas devem indicar que foram emitidas após uma inspeção e devem ser introduzidas numa rubrica separada na declaração de IVA. Os destinatários têm direito de deduzir o imposto indicado nessas faturas, dentro dos limites e nas condições referidas nos artigos 145.o a 147.o‑B.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

11

Entre 10 e 14 de outubro de 2013, a Donauland SRL, sociedade comercial de direito romeno, entregou colza à Almos Alfons Mosel Handels GmbH (a seguir «Almos»), sociedade comercial de direito alemão. Considerou as operações correspondentes entregas intracomunitárias.

12

Uma vez que a Donauland não conseguiu fornecer, durante a inspeção fiscal de que foi alvo, os documentos que demonstravam que a colza entregue tinha saído do território romeno, a Autoridade Fiscal competente considerou que a isenção de IVA prevista para as entregas intracomunitárias de bens não era aplicável a essas operações. Essa autoridade exigiu, assim, da Donauland, através de um aviso de liquidação de 4 de março de 2014 (a seguir «aviso de liquidação de 4 de março de 2014»), o montante de 440241 lei romenos (RON) (cerca de 100000 euros) a título do IVA relativo às entregas de colza destinadas à Almos, de outubro de 2013, qualificadas de entregas nacionais sujeitas à taxa normal de 24 %. A Donauland não impugnou esse aviso de liquidação, que, por conseguinte, se tornou definitivo.

13

Em 27 de março de 2014, a Donauland, em conformidade com o aviso de liquidação de 4 de março de 2014, requalificou as entregas intracomunitárias em causa, classificando‑as na categoria de entregas nacionais sujeitas à taxa normal de IVA e emitiu faturas retificativas para esse efeito. Essas faturas davam conta da anulação das referidas entregas intracomunitárias e da sua requalificação. Mencionavam a sua natureza retificativa e especificavam que a sua emissão tinha sido feita com base no aviso de liquidação de 4 de março de 2014.

14

Em 28 de março de 2014, a Almos informou a Donauland de que tinha verificado que as referidas faturas retificativas continham o seu número de identificação fiscal alemão e pediu uma retificação das mesmas com os seus dados de identificação na Roménia. A Almos indicou igualmente à Donauland que a colza em causa não tinha saído do território romeno e que as entregas em questão deviam ser sujeitas ao regime de autoliquidação do IVA.

15

Por conseguinte, em 31 de março de 2014, a Donauland emitiu novas faturas retificativas, que requalificavam as entregas nacionais em causa, sujeitas à taxa normal de IVA, para as classificar na categoria de entregas de bens sujeitas ao regime de autoliquidação do IVA, devido a uma incorreta identificação do adquirente, detetada na sequência da comunicação da Almos de 28 de março de 2014. Tendo essas novas faturas retificativas sido tidas em conta na declaração de IVA relativa ao mês de março de 2014, a Donauland deduziu o IVA referente a essas faturas do IVA devido no período em curso. Como foi calculado um montante negativo de IVA, a Donauland pediu um reembolso de IVA, que abrangia o montante de 440241 RON (cerca de 100000 euros), correspondente ao IVA adicional mencionado no aviso de liquidação de 4 de março de 2014.

16

Após ter verificado, entre 28 de novembro de 2016 e 10 de fevereiro de 2017, o referido pedido de reembolso de IVA, a Autoridade Fiscal competente, através de um aviso de liquidação de 10 de fevereiro de 2017 (a seguir «aviso de liquidação de 10 de fevereiro de 2017»), exigiu definitivamente da Terracult, que tinha adquirido a Donauland, por incorporação, em 1 de agosto de 2016, esse montante de 440241 RON (cerca de 100000 euros), a título do IVA adicional relativo às entregas de colza efetuadas em outubro de 2013. Essa Autoridade Fiscal considerou, nomeadamente, que a requalificação dessas entregas de colza e a sua classificação na categoria de entregas de bens sujeitas ao regime de autoliquidação do IVA anulavam ilegalmente os efeitos do aviso de liquidação de 4 de março de 2014, quando este último se tinha tornado definitivo.

17

O aviso de liquidação de 10 de fevereiro de 2017 foi objeto de reclamação administrativa por parte da Terracult, a qual foi indeferida em 14 de julho de 2017.

18

Em 2 de fevereiro de 2018, a Terracult intentou uma ação no Tribunalul Arad (Tribunal de Primeira Instância de Arad, Roménia), pedindo, nomeadamente, a anulação da decisão de 14 de julho de 2017 que indeferiu a sua reclamação, a anulação parcial do aviso de liquidação de 10 de fevereiro de 2017 e o reembolso do montante pago com base no aviso de liquidação de 4 de março de 2014. A Terracult salientou que esse reembolso se impunha devido ao facto de a Donauland se ter simplesmente atido, inicialmente, às informações fornecidas pela Almos, segundo as quais a colza entregue ia sair do território romeno, em seguida, ao aviso de liquidação de 4 de março de 2014 que declarava que a referida colza não tinha saído desse território e impunha o pagamento de IVA adicional a título de entregas nacionais e, por último, à realidade dos factos que implicava a aplicação do regime de autoliquidação do IVA a essas entregas. A Terracult alegou que as regras relativas a esse regime e o princípio da neutralidade do IVA exigiam que fosse permitida a retificação das faturas em causa, efetuada em 31 de março de 2014, em função da realidade dos factos, e o reembolso do IVA adicional indevidamente pago.

19

Em 18 de maio de 2018, esse órgão jurisdicional julgou improcedente a ação da Terracult com o fundamento de que a Donauland não tinha apresentado a reclamação administrativa que lhe teria permitido alterar a situação de facto fiscal indicada no aviso de liquidação de 4 de março de 2014. Em 29 de junho de 2018, a Terracult interpôs recurso da decisão que julgou improcedente a sua ação na Curtea de Apel Timişoara (Tribunal de Recurso de Timișoara, Roménia).

20

Tendo dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União da regulamentação nacional pertinente e da sua aplicação pelas autoridades nacionais, a Curtea de Apel Timișoara (Tribunal de Recurso de Timișoara) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A Diretiva IVA, bem como os princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade, obstam, em circunstâncias como as do processo principal, a uma prática administrativa e/ou a uma interpretação das disposições da legislação nacional que [impedem] a retificação de algumas faturas e, por conseguinte, a inclusão das faturas retificadas na declaração de IVA relativa ao período em que a retificação foi efetuada, em relação a operações realizadas durante um período que foi objeto de uma inspeção fiscal no seguimento da qual as autoridades fiscais emitiram um aviso de liquidação que se tornou definitivo, quando, após a emissão do aviso de liquidação, sejam descobertos dados e informações adicionais que implicam a aplicação de um regime fiscal diferente?»

Quanto à questão prejudicial

21

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as disposições da Diretiva IVA, bem como os princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional ou a uma prática administrativa nacional que impedem um sujeito passivo, que tenha efetuado operações que se revelaram posteriormente abrangidas pelo regime de autoliquidação do IVA, de corrigir as faturas relativas a essas operações e de utilizá‑las na retificação de uma declaração fiscal anterior ou na apresentação de uma nova declaração fiscal que tenha em conta a correção efetuada, tendo em vista o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago por esse sujeito passivo, com o fundamento de que o período a título do qual as referidas operações foram realizadas já tinha sido objeto de uma inspeção fiscal, finda a qual a Autoridade Fiscal competente tinha emitido um aviso de liquidação que, não tendo sido impugnado pelo referido sujeito passivo, se tinha tornado definitivo.

22

É pacífico entre os interessados que apresentaram observações escritas no presente processo que qualquer entrega de colza efetuada em outubro de 2013 na Roménia, por um sujeito passivo fornecedor a outro sujeito passivo, ambos com números de identificação fiscal romenos, devia estar sujeita ao regime de autoliquidação do IVA. Ora, no regime de autoliquidação, não há nenhum pagamento de IVA entre o fornecedor e o sujeito passivo destinatário das entregas, sendo este último, no que toca às operações efetuadas, devedor do IVA a montante (v., neste sentido, Acórdão de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15, EU:C:2017:302, n.o 41 e jurisprudência referida).

23

Quando o IVA não for devido por esse fornecedor, em conformidade com os artigos 193.o, 199.o e 199.o‑A da Diretiva IVA, este não pode ser considerado devedor do IVA e a circunstância de esse fornecedor ter pagado o IVA com base na suposição errada de que a entrega em causa não estava sujeita ao regime de autoliquidação do IVA não permite derrogar esta regra (v., neste sentido, Acórdão de 23 de abril de 2015, GST — Sarviz Germania, C‑111/14, EU:C:2015:267, n.os 28 e 29), de forma que esse IVA incorretamente faturado e pago deve, em princípio, ser reembolsado ao referido fornecedor.

24

Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito de obter o reembolso dos impostos cobrados por um Estado‑Membro em violação das regras do direito da União é a consequência e o complemento dos direitos conferidos às pessoas pelas disposições do direito da União, tal como têm sido interpretadas pelo Tribunal de Justiça. O Estado‑Membro em causa está, assim, em princípio, obrigado a reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União. O pedido de reembolso do IVA pago indevidamente enquadra‑se no direito à repetição do indevido, o qual, segundo jurisprudência constante, visa resolver as consequências da incompatibilidade do imposto com o direito da União, neutralizando o encargo económico que indevidamente onerou o operador que, afinal, o veio a suportar efetivamente (Acórdão de 14 de junho de 2017, Compass Contract Services, C‑38/16, EU:C:2017:454, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida).

25

A este respeito, há que recordar que o princípio da neutralidade do IVA, que é um princípio fundamental do sistema comum de IVA, visa desonerar inteiramente o sujeito passivo do encargo do IVA no âmbito das suas atividades económicas. Assim, este sistema garante uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, Malburg, C‑204/13, EU:C:2014:147, n.o 41 e jurisprudência referida).

26

No que se refere ao reembolso do IVA faturado por erro, o Tribunal de Justiça já salientou que a Diretiva IVA não prevê nenhuma disposição sobre a regularização, pelo emitente da fatura, do IVA indevidamente faturado e que, nestas condições, cabe, em princípio, aos Estados‑Membros determinar as condições em que o IVA indevidamente faturado pode ser regularizado (Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred, C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 25 e jurisprudência referida).

27

A fim de assegurar a neutralidade do IVA, cabe aos Estados‑Membros prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre a sua boa‑fé (Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred, C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 26 e jurisprudência referida).

28

No entanto, quando o emitente da fatura tiver eliminado por completo, em tempo útil, o risco de perda de receitas fiscais, o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto indevidamente faturado possa ser corrigido, sem que esta regularização possa ser subordinada pelos Estados‑Membros à boa‑fé do emitente da referida fatura. Esta regularização não pode depender do poder de apreciação discricionário da Administração Fiscal (Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred, C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 27 e jurisprudência referida).

29

Ora, no caso de entregas de bens abrangidas pelo regime da autoliquidação do IVA, o risco de perda de receitas fiscais ligado ao exercício do direito ao reembolso encontra‑se eliminado. Com efeito, se o sujeito passivo destinatário das referidas entregas é devedor do IVA a montante, pode, em princípio, deduzir esse imposto, de modo que nenhum montante seja devido à Administração Fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 11 de abril de 2019, PORR Építési Kft., C‑691/17, EU:C:2019:327, n.o 30 e jurisprudência referida).

30

Por conseguinte, na falta de risco de perda de receitas fiscais, a recusa em conceder a um fornecedor o reembolso do IVA indevidamente pago, tendo este sido faturado apesar da circunstância de, em vez das regras relativas ao regime geral do IVA, serem as relativas ao regime de autoliquidação do IVA que se aplicavam a uma entrega efetuada por esse fornecedor no âmbito das suas atividades económicas sujeitas a IVA, equivaleria a impor‑lhe que suportasse uma carga fiscal em violação do princípio da neutralidade do IVA.

31

Além disso, os princípios da efetividade e da proporcionalidade opõem‑se igualmente a uma regulamentação ou a uma prática administrativa como as que estão em causa no processo principal.

32

Quanto ao princípio da efetividade, que exige que uma disposição processual nacional não torne impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a possibilidade de apresentar um pedido de reembolso de IVA, sem limitação no tempo, iria contra o princípio da segurança jurídica, que exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações para com a Administração Fiscal, não seja infinitamente suscetível de ser posta em causa. O Tribunal de Justiça reconheceu a compatibilidade com o direito da União da fixação de prazos razoáveis de recurso, sob pena de preclusão, por razões de segurança jurídica, que protege simultaneamente o contribuinte e a Administração em causa. Com efeito, tais prazos não são suscetíveis de tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União, embora, por definição, a expiração desses prazos provoque a improcedência, total ou parcial, da ação intentada (v., neste sentido, Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Nestrade, C‑562/17, EU:C:2019:115, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

33

Resulta da decisão de reenvio que, no processo principal, as autoridades fiscais e o órgão jurisdicional que se pronunciaram em primeira instância negaram ao fornecedor o direito de invocar as disposições da regulamentação fiscal nacional que regulam a possibilidade de obter o reembolso do IVA incorretamente faturado e pago, no prazo de cinco anos, através da retificação de faturas que este tinha emitido, com o fundamento de que esse fornecedor deveria ter, em conformidade com a regulamentação nacional em causa no processo principal, feito uso da possibilidade, para efeitos desse reembolso, de impugnar o primeiro aviso de liquidação antes que este se tornasse definitivo.

34

Todavia, como salientou o advogado‑geral no n.o 47 das suas conclusões, ainda que a regulamentação nacional preveja que o sujeito passivo dispõe do prazo de 30 dias a contar da comunicação do aviso de liquidação para apresentar uma reclamação, esse sujeito passivo poderá ter apenas um prazo muito curto para essa reclamação, ou mesmo ver essa possibilidade de reclamação prescrita, quando os elementos com base nos quais seria possível impugnar esse aviso de liquidação são descobertos após a emissão do referido aviso, de forma que o exercício do direito à dedução do IVA pelo sujeito passivo se torna impossível na prática ou, pelo menos, excessivamente difícil. No caso em apreço, segundo as informações de que dispõe o Tribunal de Justiça, o antecessor da Terracult tinha disposto apenas de alguns dias para impugnar utilmente o primeiro aviso de liquidação através do procedimento de reclamação que se encontrava à sua disposição.

35

Nestas condições, o princípio da efetividade opõe‑se a semelhantes regulamentações ou práticas administrativas nacionais, na medida em que estas podem privar um sujeito passivo da possibilidade de corrigir as faturas relativas a algumas das suas operações e de utilizá‑las com vista ao reembolso do IVA indevidamente faturado e pago por esse sujeito passivo, quando o prazo de preclusão de cinco anos previsto na referida regulamentação ainda não tenha expirado (v., por analogia, Acórdão de 26 de abril de 2018, Zabrus Siret, C‑81/17, EU:C:2018:283, n.o 40).

36

Quanto às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio relativas ao princípio da proporcionalidade, há que salientar que um legislador nacional tem a possibilidade de dotar os deveres formais dos sujeitos passivos de sanções suscetíveis de incentivá‑los a cumprir esses deveres, com vista a assegurar o bom funcionamento do sistema do IVA, e que, assim, uma sanção administrativa de caráter pecuniário é suscetível de ser aplicada a um sujeito passivo cujo pedido de reembolso do IVA indevidamente pago resulte da sua própria negligência (v., neste sentido, Acórdão de 26 de abril de 2018, Zabrus Siret, C‑81/17, EU:C:2018:283, n.os 48 e 49).

37

Há que salientar que, admitindo que se demonstre negligência por parte do sujeito passivo, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, o Estado‑Membro em causa deve recorrer a meios que, embora permitam atingir eficazmente o objetivo prosseguido pela regulamentação nacional, afetem menos os princípios estabelecidos pela legislação da União, como o princípio da neutralidade do IVA. Destarte, tendo em conta o lugar que este princípio ocupa no sistema comum do IVA, uma sanção, consistente na recusa absoluta do direito ao reembolso do IVA incorretamente faturado e indevidamente pago, é desproporcionada (v., neste sentido, Acórdão de 26 de abril de 2018, Zabrus Siret, C‑81/17, EU:C:2018:283, n.os 50 e 51 e jurisprudência referida).

38

Cabe também acrescentar que, como sublinhou o Governo romeno, há que recusar o direito ao reembolso do IVA se esse direito for invocado de maneira fraudulenta ou abusiva. Com efeito, a luta contra a fraude e os eventuais abusos é um objetivo reconhecido e incentivado pela Diretiva IVA e os sujeitos passivos não podem fraudulenta ou abusivamente invocar as normas do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2019, Altic, C‑329/18, EU:C:2019:831, n.o 29 e jurisprudência referida). Todavia, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio não dá, de maneira nenhuma, conta, no seu pedido de decisão prejudicial, da existência de fraude ou abuso.

39

Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que as disposições da Diretiva IVA, bem como os princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional ou a uma prática administrativa nacional que impedem um sujeito passivo, que tenha efetuado operações que se revelaram posteriormente abrangidas pelo regime de autoliquidação do IVA, de corrigir as faturas relativas a essas operações e de utilizá‑las na retificação de uma declaração fiscal anterior ou na apresentação de uma nova declaração fiscal que tenha em conta a correção efetuada, tendo em vista o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago por esse sujeito passivo, com o fundamento de que o período a título do qual as referidas operações foram realizadas já tinha sido objeto de uma inspeção fiscal, finda a qual a Autoridade Fiscal competente tinha emitido um aviso de liquidação que, não tendo sido impugnado pelo referido sujeito passivo, se tinha tornado definitivo.

Quanto às despesas

40

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

As disposições da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, conforme alterada pela Diretiva 2013/43/UE do Conselho, de 22 de julho de 2013, bem como os princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional ou a uma prática administrativa nacional que impedem um sujeito passivo, que tenha efetuado operações que se revelaram posteriormente abrangidas pelo regime de autoliquidação do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), de corrigir as faturas relativas a essas operações e de utilizá‑las na retificação de uma declaração fiscal anterior ou na apresentação de uma nova declaração fiscal que tenha em conta a correção efetuada, tendo em vista o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago por esse sujeito passivo, com o fundamento de que o período a título do qual as referidas operações foram realizadas já tinha sido objeto de uma inspeção fiscal, finda a qual a Autoridade Fiscal competente tinha emitido um aviso de liquidação que, não tendo sido impugnado pelo referido sujeito passivo, se tinha tornado definitivo.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: romeno.