C-50/88 - Kühne/Finanzamt München III

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EUR-Lex - 61988C0050 - PT

61988C0050

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 2 de Março de 1989. - HEINZ KUEHNE CONTRA FINANZAMT MUENCHEN III. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: FINANZGERICHT MUENCHEN - ALEMANHA. - IVA - TRIBUTACAO DA UTILIZACAO PRIVADA DUMA VIATURA AFECTA A EMPRESA COMPRADA USADA SEM DIREITO A DEDUCAO DA PARTE RESIDUAL DO IVA. - PROCESSO 50/88.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 01925


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. No presente processo pede-se ao Tribunal de Justiça uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da sexta directiva em matéria de IVA ((sexta directiva do Conselho (77/388/CEE), de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, JO 1977, L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54)). Está em causa o regime fiscal de um automóvel de serviço, na medida em que o seu proprietário o utilizou para fins privados. A dificuldade do caso decorre de o veículo ter sido comprado em segunda mão a um particular não sujeito ao IVA.

2. O artigo 2.° da sexta directiva em matéria de IVA dispõe:

"Estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado:

1. As entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;

2. As importações de bens."

O artigo 6.° da directiva dispõe, nomeadamente, que:

"1. Por 'prestação de serviços' entende-se qualquer prestação que não constitua uma entrega de bens na acepção do artigo 5.°

...

2. São equiparadas a prestações de serviços efectuadas a título oneroso:

a) a utilização de bens afectos à empresa para uso privado do sujeito passivo ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado;

b) ...

Os Estados-membros podem derrogar o disposto no presente número, desde que tal derrogação não conduza a distorções de concorrência."

3. De acordo com a alínea c) do n.° 1 da parte A do artigo 11.° da citada directiva, que define a matéria colectável, esta "é constituída: ((...)) no caso de operações referidas no n.° 2 do artigo 6.°, pelo montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços".

4. No que se refere à República Federal da Alemanha, devia ser dada execução à sexta directiva o mais tardar até 1 de Janeiro de 1979 (artigo 1.°, na versão dada pela Directiva 78/583/CEE; JO 1978, L 194, p. 16; EE 09 F1 p. 102).

5. A alínea b) do ponto 2 do n.° 1 do artigo 1.° da lei alemã de 1980 relativa ao imposto sobre o volume de negócios ("Umsatzsteuergesetz") dispõe, sob a epígrafe "Operações tributáveis": "Ficam sujeitas ao imposto sobre o volume de negócios as seguintes operações: ((...)) o autoconsumo no território em que vigora o imposto. Existe autoconsumo quando o empresário ((...)) efectua, no âmbito da sua empresa, "outras prestações", do tipo a que se refere o n.° 9 do artigo 3.°, para fins alheios à empresa." O n.° 9 do artigo 3.° dispõe, sob a epígrafe "Entregas, outras prestações": "Constituem 'outras prestações' as prestações que não constituam entregas".

6. Saliente-se que as disposições da alínea b) do ponto 2 do n.° 1 do artigo 1.° da lei alemã são, no essencial, idênticas às da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da directiva, com uma excepção: a directiva condiciona a sujeição ao imposto ao facto de o IVA sobre os bens em causa ser dedutível, condição que a lei alemã não impõe.

7. Heinz Kuehne, demandante no processo principal, exerce a profissão de advogado. Comprou um veículo em segunda mão a um particular não sujeito ao IVA. O veículo foi parcialmente utilizado para satisfazer necessidades do seu escritório e parcialmente para fins privados. O Finanzamt (repartição de finanças) de Munique III, demandado no processo principal, incluiu a utilização privada do carro de serviço no cálculo do imposto sobre o volume de negócios do escritório de H. Kuehne, relativo a 1981. Kuehne reclamou do aviso de pagamento, reclamação que foi parcialmente deferida, na medida em que o Finanzamt reduziu a avaliação da parcela de uso privado do carro de serviço de 40% para 25% do montante total da despesa relativa ao veículo, reduzindo, em consequência, o imposto sobre o volume de negócios. Tendo a reclamação sido rejeitada quanto ao mais, o demandante no processo principal recorreu. Invocou que apenas as despesas de exploração do veículo, e não a amortização, deviam ser tomadas em consideração para efeitos de tributação do uso privado, visto que o veículo fora comprado a um particular que não tinha a possibilidade de passar ao demandante uma factura com base na qual deduzisse o imposto anteriormente pago. Na medida em que a amortização proporcional à utilização privada ficava igualmente sujeita ao imposto sobre o volume de negócios pela via da tributação do consumo privado, existia dupla cobrança do imposto sobre o volume de negócios, o que é contrário ao sistema.

8. Para poder resolver a causa principal, o Finanzgericht (órgão jurisdicional competente em matéria fiscal) de Munique colocou ao Tribunal de Justiça, por decisão de 9 de Dezembro de 1987 que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 16 de Fevereiro de 1988, um conjunto de questões a título prejudicial. Essas questões são as seguintes:

"I - Como deve interpretar-se o n.° 2 do artigo 6.° da sexta directiva do Conselho, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios?

1) A oração subordinada temporal 'sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado' :

a) exclui a tributação do autoconsumo apenas nos casos em que não possa proceder-se à dedução em virtude de uma utilização isenta de imposto dos bens na empresa (artigo 15.°, n.° 2, da Umsatzsteuergesetz), ou em virtude de uma utilização dos bens para fins diversos dos das próprias operações tributáveis do empresário (artigo 17.°, n.° 2, da sexta directiva), ou

b) tal tributação também se exclui quando, por outras razões, não possa proceder-se à dedução, como por exemplo, devido à aquisição a um não empresário?

Em caso de resposta afirmativa à questão 1, alínea b):

2) houve, na acepção do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), dedução parcial do imposto sobre o valor acrescentado relativamente a um bem, quando o sujeito passivo tenha podido deduzir o imposto sobre o valor acrescentado, não relativamente às entregas do bem de que tenha sido destinatário, mas relativamente às prestações de serviços ou entregas que tenha pedido e obtido junto de outros empresários para fins de conservação (reparação, manutenção, etc.) ou para fins de utilização (combustíveis, lubrificantes, etc.) do bem?

3) Em caso de resposta negativa à questão 2:

a) o artigo 6.°, n.° 2, segundo parágrafo, só permite que os Estados-membros introduzam derrogações caso renunciem total ou parcialmente à tributação da utilização de bens, na acepção da alínea a) do primeiro parágrafo, ou

b) autoriza-os também a tributar tal utilização, sem considerar se houve dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado relativamente ao bem utilizado?

II - Em caso de resposta afirmativa à questão 3, alínea a):

1) o legislador alemão transpôs irregularmente a sexta directiva para o direito interno, ao sujeitar, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, ponto 2, alínea b, da UStG de 1980, a utilização de bens afectos à empresa ao imposto sobre o valor acrescentado, ainda que, relativamente a tais bens, não tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado?

Em caso de resposta afirmativa à questão 1:

2) um sujeito passivo pode invocar, perante os tribunais da República Federal da Alemanha competentes em matéria fiscal, o artigo 6.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), da sexta directiva, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal de Justiça?

III - Em caso de resposta afirmativa às questões I, 1, alínea a), 2 ou 3, alínea b), ou em caso de resposta negativa às questões II 1 ou 2:

como deve interpretar-se o artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea c) da sexta directiva? Incluem-se nas despesas todos os custos suportados pelo sujeito passivo com a prestação de serviços ou apenas as remunerações por si pagas - eventualmente proporcionais - pelas entregas e prestações de serviços em relação às quais tenha havido dedução do imposto sobre o valor acrescentado?

9. Foram apresentadas observações escritas pela Comissão, em apoio da posição do contribuinte, e pelo Governo português, em apoio da posição da administração fiscal. A argumentação da Comissão centra-se na ideia de que a tributação de uma prestação já sujeita a uma parte residual do imposto não deduzida no estado anterior de comercialização implica uma dupla tributação incompatível com o sistema do IVA. Tal pode suceder em casos, como o presente, em que os bens saíram do circuito comercial aquando da sua aquisição por um não sujeito passivo, sendo em seguida reintroduzidos nesse circuito ao serem comprados em segunda mão por um sujeito passivo obrigado a pagar um imposto anterior sem, contudo, ter a possibilidade de o deduzir. A Comissão sustenta ser incompatível com a sexta directiva uma legislação nacional que dá lugar a uma dupla tributação.

10. O Governo português invoca, pelo contrário, que a sexta directiva estabelece a regra fundamental de que não pode existir dedução quando não exista operação susceptível de tributação, como sucede quando os bens são comprados a quem não seja sujeito passivo. A argumentação baseia-se, no essencial, na ideia de que a noção de dedutibilidade não se aplica neste caso e que, na realidade, essa interpretação conduz, em certos casos, a uma "tributação oculta", embora tal implique uma dupla tributação contrária ao espírito do sistema do IVA. Esse sistema foi instaurado pela sexta directiva e, em especial, pelo n.° 2 do artigo 17.°, e a directiva não se preocupou com a tributação oculta. O facto de se ter considerado necessário tratar a situação dos bens em segunda mão no contexto de uma directiva diversa demonstra que a regra fundamental é, na verdade, a que foi enunciada. O Governo da República Federal da Alemanha, que não apresentou observações escritas ao Tribunal de Justiça mas esteve representado na audiência, partilha, de forma explícita, o ponto de vista do Governo português, sustentando que, embora uma tributação como a que está em causa no presente processo gere uma dupla tributação incompatível com o sistema do imposto sobre o valor acrescentado, essa dupla tributação deve ser actualmente tolerada visto que o sistema comunitário do imposto sobre o valor acrescentado não se encontra ainda totalmente harmonizado.

11. Deve esclarecer-se, em primeiro lugar, que o encargo em discussão no caso presente, embora apareça relacionado com o veículo, não incide sobre entregas de bens, mas sobre prestações de serviços, sob a forma de utilização de um veículo afecto à empresa para fins a ela alheios. A expressão "utilização do veículo" é uma forma simples de referir a natureza da prestação: a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° refere expressamente a "utilização de bens". Em segundo lugar, não existe, na realidade, qualquer operação com que se possa relacionar o encargo: a empresa não realiza lucros, nenhuma quantia muda de mãos e não há lugar à emissão de qualquer factura. Tanto nos termos da directiva como da lei alemã, apenas existe prestação de serviços por equiparação. É assim que a directiva dispõe, no n.° 2 do artigo 6.°, que as situações de que se ocupa "são equiparadas a prestações de serviços efectuadas a título oneroso". A disposição de equiparação contida na directiva visa impedir que um sujeito passivo que tenha deduzido o imposto anteriormente pago sobre um bem possa, em consequência, entregar esse bem sem imposto a um consumidor final. Nos termos da exposição de motivos que acompanhou a proposta da sexta directiva (Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 11/73, p. 11), por força dessa disposição "o imposto apenas é exigido no caso de o bem utilizado dar lugar à dedução do imposto que incidiu sobre a sua aquisição, para evitar uma não tributação".

12. A alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da directiva apenas se aplica "sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado". No caso de um serviço, como a utilização de uma viatura, ser prestado por um sujeito passivo que comprou o veículo pelas vias normais a outro sujeito passivo, o IVA está compreendido no preço de compra, podendo ser deduzido pelo comprador, ficando assim preenchida a condição estabelecida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° A utilização do veículo ficará, assim, sujeita ao imposto. Coloca-se, contudo, a questão de saber que condição fica preenchida quando o imposto anterior não é susceptível de dedução, por o bem em causa ter sido comprado em segunda mão a um não sujeito passivo. É esse precisamente o problema suscitado na primeira questão prejudicial formulada no presente processo.

13. Em nossa opinião, a expressão o "imposto sobre o valor acrescentado", utilizada na frase "sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado", refere-se ao conjunto do IVA acumulado no decurso dos diversos estádios de comercialização e incorporado no preço do bem. A palavra "dedução" contida na citada frase deve ser lida à luz das disposições da sexta directiva relativas às deduções, contidas no título XI (artigos 17.° a 20.°); deve, assim, interpretar-se a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da seguinte forma: "Sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado, nos termos das disposições dos artigos 17.° e 18.° da presente directiva". Como o Tribunal de Justiça declarou no processo 268/83, Rompelman/Minister van Financiën, Recueil 1985, p. 655, n.° 19 dos fundamentos do acórdão, "o regime das deduções visa libertar totalmente o empresário do peso do IVA devido ou pago no contexto de todas as suas actividades económicas. O sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado garante, assim, a perfeita neutralidade quanto ao encargo fiscal que recai sobre todas as actividades económicas, sejam quais forem as suas finalidades ou resultados, na condição de que, elas próprias, estejam sujeitas ao IVA." Deve analisar-se com conta, peso e medida a expressão "sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado", contida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, interpretando-a à luz daquele objectivo; é por esta razão que entendemos dever rejeitar-se o argumento do Governo da República Federal da Alemanha de que a tributação não depende da existência ou ausência de dedução. O Governo português sustenta, se bem o entendemos, que, a partir do momento em que o bem é revendido a um não sujeito passivo, a situação fica totalmente fora da alçada do artigo 17.° visto que a operação, por definição, não é susceptível de tributação e que, consequentemente, se torna irrelevante a condição de dedutibilidade contida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°. Entendemos dever rejeitar-se este argumento, visto que uma interpretação nesse sentido introduziria uma limitação significativa no artigo 6.° que não encontra qualquer fundamento na sua letra: a expressão "dedução total ou parcial" contida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° tem um sentido amplo, não visando excluir qualquer categoria de operações. Em nossa opinião, os artigos 17.° e 18.°, correctamente interpretados, devem ser aplicados; o problema consiste em saber se a operação em causa (compra de um veículo em segunda mão a um não sujeito passivo) deu ou não direito à dedução nos termos destes artigos. De acordo com o n.° 2 do artigo 17.°, o sujeito passivo está autorizado a deduzir, entre outras coisas, o imposto sobre o valor acrescentado pago em relação a bens que lhe tenham sido "fornecidos ... por outro sujeito passivo". Contudo, nenhuma dedução está prevista para a hipótese de os bens serem fornecidos por um não sujeito passivo, como, por exemplo, um veículo comprado em segunda mão a um particular. Além disso, para poder exercer o seu direito à dedução, o sujeito passivo deve, nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 18.°, possuir uma factura emitida nos termos do n.° 3 do artigo 22.° O órgão jurisdicional nacional verificou que, no caso vertente, o contribuinte não tinha a possibilidade de obter essa factura no que se refere ao veículo em causa. Em consequência, o IVA sobre um veículo como o que está em causa no caso presente, não é susceptível de dedução.

14. Daqui decorre, em nossa opinião, que a condição de dedutibilidade estabelecida pela alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° se não encontra preenchida, pelo que, em princípio, o uso privado de uma veículo, como o que está em causa no presente processo, não fica abrangido pelo disposto na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, que o equipara a uma prestação de serviços tributável. Esta conclusão é conforme com o objectivo da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, que consiste em evitar uma não tributação, visto que não existe tal risco em casos, como o presente, em que o bem em causa suporta já o encargo do IVA acumulado nos anteriores estádios de comercialização, não tendo o sujeito passivo a faculdade de o deduzir.

15. Diversamente do que sucede com bens mais simples, um veículo não pode ser utilizado sem carburante nem lubrificantes; deve também ser regularmente reparado e mantido. Admitindo que o IVA que recai sobre o carburante, lubrificantes, reparações, manutenção, etc., relativamente ao veículo, é dedutível, coloca-se outra questão, qual seja a de saber se tal significa que o IVA que recai sobre o próprio veículo pode ser objecto de "dedução ... parcial", na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, de tal forma que a utilização da própria viatura se integre no âmbito de aplicação do imposto, de acordo com aquela disposição (questão I, n.° 2).

16. Embora a decisão de reenvio o não refira como um facto, dela decorre implicitamente, e parece de qualquer forma verosímil, que os diversos bens e serviços fornecidos em correlação com a exploração do veículo foram obtidos, ao contrário do que se passou com o próprio veículo, de sujeitos passivos em condições de emitir facturas susceptíveis de possibilitar a dedução do imposto anteriormente pago. Assim sendo, a condição de "dedução total ou parcial" do IVA fica preenchida quanto a essas operações, pelo que, mesmo que a utilização da própria viatura não possa ser sujeita ao IVA, os bens e serviços correlacionados com a sua exploração são objecto de tributação, nos termos da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, a menos que seja por aplicação do n.° 6 do artigo 5.°, que impõe idêntica carga fiscal às entregas de bens, sujeita à mesma condição da dedutibilidade.

17. Na medida em que essas entregas de bens e prestações de serviços devem ser tributadas nos termos do n.° 6 do artigo 5.° ou da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, a matéria colectável, no que se lhes refere, rege-se pelas disposições da directiva e, designadamente, pelas do artigo 11.° Contudo, o facto, admitindo que se trate efectivamente de um facto, de estarem sujeitas ao imposto não se confunde com o tratamento fiscal do próprio veículo, não bastando para que a respectiva utilização privada fique abrangida pelas disposições da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°

18. Se esta hipótese conduzir a que a utilização do próprio veículo não seja tributável nos termos da directiva e que o imposto apenas seja exigível quanto às entregas de bens e prestações de serviços relativamente às quais o sujeito passivo tem o direito de deduzir o imposto já pago, a solução daí decorrente para a questão da tributação do uso privado não implica nem a cumulação de tributações em termos de IVA nem um consumo final não tributado. Esse resultado estará, assim, em total conformidade com o sistema.

19. Coloca-se, em seguida, a questão de saber qual o efeito da segunda frase do n.° 2 do artigo 6.°, nos termos da qual os "Estados-membros podem derrogar o disposto no presente número, desde que tal derrogação não conduza a distorções de concorrência" (é este o objecto da questão I, n.° 3). O órgão jurisdicional de reenvio formulou algumas dúvidas quanto à questão de saber se esta disposição confere ao legislador do Estado-membro em causa a faculdade de introduzir derrogações apenas pela renúncia, total ou parcial, à tributação da utilização de bens, na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, ou se autoriza derrogações em prejuízo do sujeito passivo, no sentido de que autorizaria a tributação daquela utilização independentemente de se saber se os bens haviam dado origem à dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado.

20. Em minha opinião, a segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° deve ser interpretada de forma estrita, visto tratar-se de uma derrogação e o objectivo de harmonização da directiva exigir que as possibilidades de derrogação atribuídas aos Estados-membros sejam interpretadas de forma restritiva (ver processo 249/84, Profant, Recueil 1985, p. 3237 e p. 3257 e 3258, n.° 25 dos fundamentos do acórdão). Deverá assim escolher-se, de entre as duas interpretações possíveis referidas pelo órgão jurisdicional nacional, a mais estrita, a saber, que os Estados-membros podem derrogar as disposições em causa apenas pela renúncia à tributação da utilização dos bens, na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°

21. Ainda que a segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° fosse interpretada no sentido de autorizar os Estados-membros a tributar a utilização nos termos da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, independentemente da questão de saber se o bem utilizado deu origem à dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado, tal autorização ficaria sujeita à condição de essa tributação não "conduzir a distorções de concorrência". A este respeito, o Tribunal declarou (no processo 16/84, Comissão/Países Baixos, Recueil 1985, p. 2355, 2371, n.° 18 dos fundamentos do acórdão, e no processo 17/84, Comissão/Irlanda, Recueil 1985, p. 2375 , 2380, n.° 14 dos fundamentos do acórdão): "Os bens em segunda mão reintroduzidos no circuito comercial são ((...)) de novo tributados, enquanto os bens em segunda mão que passam directamente de um consumidor para outro apenas ficam sujeitos ao imposto pago por ocasião da primeira venda a um consumidor não sujeito passivo. Designadamente em caso de taxas de IVA elevadas, essa diferença de tratamento falseia a concorrência entre as vendas directas de um consumidor a outro e as transacções que passam pelo circuito comercial normal, desfavorecendo assim os sectores do comércio em que as transacções relativas aos bens em segunda mão assumem particular importância, como sucede, designadamente, com o comércio de automóveis". Nos termos desta concepção da noção de distorção da concorrência, conclui-se que um Estado-membro falseia a concorrência se derrogar a condição de dedutibilidade estabelecida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° ao impor um encargo fiscal sobre os bens em segunda mão relativamente aos quais o imposto sobre o valor acrescentado não é dedutível. Em consequência, entendemos que a condição estabelecida na segunda frase do artigo 6.° impede que os Estados-membros sujeitem ao IVA a utilização de um bem, na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, na hipótese de esse bem ter sido comprado em segunda mão a um não sujeito passivo.

22. No âmbito dos bens em segunda mão, deve igualmente tomar-se em consideração o efeito do artigo 32.°, apesar de o órgão jurisdicional nacional o não ter feito. Parece que o Conselho foi incapaz, no momento em que adoptou a sexta directiva, de estabelecer um regime fiscal para os bens em segunda mão, estando as propostas da Comissão quanto a esse regime expostas e explicadas no Boletim das Comunidades Europeias, Suplemento 11/73, p. 24, 25 e 51. No que se refere aos bens em segunda mão, o artigo 32.° da directiva dispõe:

"O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, adoptará, até 31 de Dezembro de 1977, o regime comunitário de tributação aplicável no sector dos bens em segunda mão, objectos de arte, antiguidades e objectos de colecção.

Até à aplicação deste regime comunitário, os Estados-membros que, à data da entrada em vigor da presente directiva, apliquem um regime especial no sector acima referido podem manter esse regime."

23. O Conselho, contudo, não adoptou uma directiva quanto aos bens em segunda mão, apesar de a Comissão ter feito uma proposta em Janeiro de 1978 (JO 1978, C 26, p. 2), modificada em 1979 (JO 1979, C 136, p. 8) e aparentemente retirada em Novembro de 1987. A Comissão, ao que parece, preparou recentemente nova proposta de directiva nesta matéria (JO 1989, C 76, p. 10). No momento presente, as disposições comunitárias relativas ao tratamento a dar aos bens em segunda mão em matéria de IVA permanecem, portanto, incompletas.

24. Podem imaginar-se três soluções quanto ao eventual efeito do artigo 32.° Pode sustentar-se, em primeiro lugar, que os bens em segunda mão constituem domínio reservado, totalmente excluído do âmbito de aplicação da sexta directiva. A redacção do artigo 32.° não comporta, contudo, essa exclusão. Apenas ordena que o legislador comunitário adopte um regime comunitário a eles aplicável. O facto de daí se deduzir a exclusão dos bens em segunda mão do âmbito de aplicação da directiva até à adopção desse regime implica o risco de que a directiva se torne parcialmente letra morta, em especial quando, como sucede no presente caso, o legislador comunitário se manteve inactivo durante longo tempo após o termo do prazo concedido. Uma melhor solução, mais conforme com o efeito útil da directiva, consiste em entender que, apenas com a reserva contida no segundo parágrafo do artigo 32.° a que adiante voltaremos, a directiva se aplica aos bens em segunda mão, na medida em que as suas disposições a tal se prestem, até o legislador comunitário adoptar um regime comunitário de tributação aplicável no sector dos bens em segunda mão. Sob este ponto de vista, o primeiro parágrafo do artigo 32.° é irrelevante em relação aos bens em segunda mão.

25. Em segundo lugar, pode entender-se que o artigo 32.° é aplicável nos casos em que haja entrega de bens em segunda mão, sendo porém inaplicável quando se trate de prestações de serviços e, consequentemente, no caso vertente. Tanto a Comissão como o Governo da República Federal da Alemanha defenderam este ponto de vista, coerente com o facto de a proposta de 1978 e a respectiva modificação de 1979, bem como a última proposta da Comissão de uma directiva relativa à tributação dos bens em segunda mão, apenas dizerem respeito às entregas de bens e não às prestações de serviços. Entendo, porém, não ser útil expressar uma opinião definitiva sobre esta argumentação.

26. Em terceiro lugar, como já referimos, o Conselho não cumpriu ainda a obrigação, estabelecida no primeiro parágrafo do artigo 32.°, de adoptar um regime comunitário de tributação aplicável no sector dos bens em segunda mão. Em consequência, e de acordo com o segundo parágrafo desse mesmo artigo, continua a vigorar a disposição segundo a qual "os Estados-membros que, à data da entrada em vigor da presente directiva, apliquem um regime especial no sector acima referido podem manter esse regime"; e pode-se levantar a questão de saber se disposições como as alemãs, que estão em causa no caso vertente, se podem manter, nos termos desta disposição, enquanto "regime especial". A alínea b) do n.° 2 do primeiro parágrafo do artigo 1.° ou o n.° 9 do artigo 9.° da lei alemã relativa ao imposto sobre o volume de negócios não contêm, ao que parece, qualquer menção específica aos bens em segunda mão. Aqueles artigos estão redigidos em termos bastante genéricos. Não parece possível, mesmo por uma interpretação levada ao extremo, considerar que uma disposição de direito interno formulada em termos bastante genéricos e sem qualquer referência aos bens em segunda mão crie um "regime especial" aplicável a estes bens. Em minha opinião, aquelas disposições não podem constituir um "regime especial", na acepção do artigo 32.° De acordo com esta interpretação, não se coloca a questão ulterior de saber se as disposições alemãs eram aplicáveis aquando da "entrada em vigor" da sexta directiva.

27. Qualquer das três teses analisadas conduz, assim, à conclusão de que o artigo 32.° não se reveste de qualquer importância para a solução do caso presente.

28. Cabe agora examinar a questão II, tendo em atenção as respostas que propus para a questão I. Nos termos em que foi colocada, não é possível responder à questão II, n.° 1, relativa à compatibilidade da legislação alemã com o direito comunitário, no âmbito de uma decisão prejudicial. Questões desse tipo podem ser objecto de um processo por incumprimento, nos termos do artigo 169.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, mas no âmbito do artigo 177.° o Tribunal de Justiça apenas se pode pronunciar sobre a interpretação ou a validade da medida comunitária em causa.

29. Se o órgão jurisdicional nacional, ao aplicar a decisão prejudicial, verificar que a disposição nacional em causa é incompatível com a disposição comunitária, na interpretação que lhe foi dada na decisão prejudicial, deve abster-se de aplicar a disposição nacional em proveito da disposição comunitária, caso esta seja directamente aplicável: processo 106/77, Amministrazionne delle Finanze dello Stato/Simmenthal, Recueil 1978, p. 629. A este respeito, deve examinar-se se a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da directiva pode produzir efeitos directos. Tal é o objecto da questão II, n.° 2.

30. O Governo português não apresentou observações a este respeito. O Governo da República Federal da Alemanha entende que esta disposição não é directamente aplicável e a Comissão defende o ponto de vista contrário; ambas se baseiam na jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria.

31. Para que uma disposição deste tipo se aplique directamente, necessário é que seja incondicional e suficientemente precisa (ver, em especial, o processo 8/81, Becker/Finanzamt de Muenster-Innenstadt, Recueil 1982, p. 53, 70 e seguintes). A condição de dedutibilidade contida na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° é, em minha opinião, suficientemente clara e simples para satisfazer o segundo critério: o órgão jurisdicional nacional não terá qualquer dificuldade em aplicá-la. No que se refere ao primeiro critério, dois elementos devem ser tomados em consideração. Em primeiro lugar, pode suscitar-se a questão de saber se o artigo 32.° suspende a aplicação da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° aos bens em segunda mão. Nele não se contém qualquer disposição geral nesse sentido, apenas se prevendo uma derrogação especial e, pelas razões já referidas, entendo ser essa derrogação inaplicável no caso presente. Considero, portanto, que o artigo 32.° não torna a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° "condicional" ao ponto de a impedir de produzir efeito directo. Em segundo lugar, a segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° autoriza os Estados-membros a derrogar, a seu bel-prazer, as disposições da primeira frase do n.° 2 do artigo 6.°, pelo que se pode suscitar a questão de saber se daí resulta que a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° se torne "condicional", a ponto de a privar de efeito directo. Pelas razões já expostas, entendo que a derrogação contida na segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° não se aplica à condição de dedutibilidade imposta pela alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°, apenas autorizando os Estados-membros a renunciar à tributação da utilização dos bens, na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° Deste ponto de vista, a segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° não exige o preenchimento de uma condição prévia para que a condição de dedutibilidade possa funcionar. Em consequência, sou de opinião que a alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da directiva pode produzir efeitos directos.

32. Com base nas considerações anteriores, não cabe responder à questão III. Para a hipótese de vir a prevalecer diferente opinião, acrescento que, pelas razões anteriormente expostas, sou de opinião que a utilização de um veículo, por um lado, e as entregas de bens e prestações de serviços necessárias à sua exploração, como o carburante, os lubrificantes, reparações e manutenção, por outro lado, devem ser consideradas separadamente para efeitos de tributação, não podendo ser objecto de confusão, nos termos do artigo 11.° da directiva.

33. Em consequência, sou de opinião que se deve responder da seguinte forma às questões formuladas a título prejudicial:

"1) A alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da sexta directiva em matéria de IVA exclui a tributação do uso privado dos bens integrados no património de uma empresa quando o imposto anteriormente pago relativamente a esse bem não seja dedutível, por ter sido comprado a um não sujeito passivo.

2) Do facto de um sujeito passivo, apesar de não ter podido deduzir o imposto sobre o valor acrescentado relativo à entrega do bem que adquiriu, ter deduzido o imposto sobre o valor acrescentado relativo às outras prestações ou entregas que solicitou e obteve de outros sujeitos passivos para efeitos de manutenção ou utilização do bem, não decorre que o bem referido em primeiro lugar dê origem a dedução parcial, para efeitos da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da sexta directiva em matéria de IVA.

3) Nos termos da segunda frase do n.° 2 do artigo 6.° da sexta directiva em matéria de IVA, os Estados-membros apenas podem derrogar as disposições da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° do mesmo diploma pela renúncia total ou parcial à tributação da utilização dos bens, na acepção da alínea a) do n.° 2 do artigo 6.°

4) Um sujeito passivo pode invocar perante os órgãos jurisdicionais de um Estado-membro o disposto na alínea a) do n.° 2 do artigo 6.° da sexta directiva em matéria de IVA.

(*) Língua original: inglês.