Advertência jurídica importante
Conclusões do advogado-geral Mischo apresentadas em 6 de Dezembro de 2000. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa. - Incumprimento de Estado - Sexta Directiva IVA - Artigos 12.º, n.º 3, alínea a) e 28.º, n.º 2, alínea a) - Taxa reduzida. - Processo C-481/98.
Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-03369
1. Na acção submetida à nossa análise, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare, tendo em conta o artigo 281 octies do Código Geral dos Impostos, presentemente em vigor, o qual prevê uma taxa de 2,1% do imposto de valor acrescentado (a seguir «IVA») para os medicamentos comparticipáveis, quando os outros medicamentos são tributados à taxa de 5,5%, que a República Francesa faltou ao cumprimento das obrigações que lhe incumbiam, por força do artigo 12.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (a seguir «Sexta Directiva»).
2. O referido artigo 12.° prevê, no seu n.° 3, alínea a), na redacção dada pela Directiva 92/111/CEE , que:
«A taxa normal do imposto sobre o valor acrescentado é fixada por cada Estado-Membro numa percentagem da base tributável igual para as entregas de bens e prestações de serviços. A partir de 1 de Janeiro de 1993 e até 31 de Dezembro de 1996, essa percentagem não pode ser inferior a 15%.
[...]
Os Estados-Membros poderão igualmente aplicar quer uma quer duas taxas reduzidas. Essas taxas serão fixadas numa percentagem da base tributável que não pode ser inferior a 5% e aplicam-se unicamente às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias referidas no anexo H.»
3. Os medicamentos constituem uma categoria de bens referida neste anexo H.
4. A existência de taxas de IVA inferiores a 5% é, no entanto, admitida pelo artigo 28.° , n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva, na redacção dada pela Directiva 92/77/CEE . Aquele dispõe, com efeito, que durante um período transitório, que ainda não terminou, sem prejuízo do disposto no n.° 3 do artigo 12.° :
«Poder-se-ão manter as isenções com reembolso do imposto pago no estádio anterior e as taxas reduzidas inferiores à taxa mínima estabelecida no n.° 3 do artigo 12.° em matéria de taxas reduzidas que se encontrem em vigor em 1 de Janeiro de 1991, estejam em conformidade com o direito comunitário e preencham as condições definidas no último travessão do artigo 17.° da Segunda Directiva do Conselho, de 11 de Abril de 1967.
[...]»
5. Tendo em conta os referidos critérios do artigo 17.° , é necessário que essas taxas reduzidas tenham sido fixadas «por razões de interesse social bem definidas e a favor dos consumidores finais».
6. Para a Comissão, a existência em França de duas taxas diferentes de IVA para os medicamentos, consoante sejam ou não reembolsados pela segurança social, não será de admitir, porque nem sequer está preenchida uma das condições impostas pelo artigo 28.° , n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva, na redacção dada pela Directiva 92/77.
7. Com efeito, do ponto de vista da Comissão, o facto de os medicamentos não estarem todos submetidos à mesma taxa de IVA não é conforme com a legislação comunitária.
8. Todos os medicamentos são, segundo a Comissão, produtos similares, de modo que a existência de duas taxas de IVA diferentes choca com o princípio da uniformidade do imposto, previsto no artigo 12.° , n.° 3, supracitado, e vai contra os princípios essenciais do regime comunitário do IVA, a neutralidade fiscal e a eliminação das distorções de concorrência.
9. A Comissão reconhece que o regime regulado pelas directivas comunitárias comporta desvios limitados a estes princípios, nomeadamente pelo facto de o artigo 28.° , n.° 2 , alínea i), da Sexta Directiva, na versão dada pela Directiva 96/42/CE do Conselho, de 25 de Junho de 1996 , autorizar os Estados-Membros a aplicar uma taxa reduzida de IVA para a lenha quando esta se destina ao aquecimento e que o anexo H da Sexta Directiva, na redacção dada pela Directiva 92/77, autoriza a aplicação de uma taxa reduzida de 5%, mínima, em vez da taxa normal mínima de 15%, na entrega de habitações, quando se trate de habitações sociais, de prestação de serviços e de entrega de bens, quando se trate de facto de organismos considerados de beneficiência pelos Estados-Membros empenhados em actividades de assistência social ou segurança social.
10. Mas considerou que a existência destas derrogações criadas pelo legislador comunitário não poderão, de forma alguma, ser invocadas pelo Governo francês para justificar outras, como aquela que unilateralmente criou.
11. Aliás, o próprio facto de ter sido o legislador comunitário a criá-las demonstra que, na falta de uma vontade expressa deste, nenhuma derrogação é admissível.
12. Por outro lado, a Comissão não está convencida de que a taxa de 2,1% para os medicamentos comparticipáveis corresponda efectivamente a razões de interesse social bem definidas, porquanto, por detrás desta medida, vê um objectivo económico de diminuição dos encargos da Segurança Social, mas considera inútil alongar-se demasiado sobre este ponto, na medida em que não há, de qualquer forma, conformidade com a legislação comunitária.
13. Para o Governo francês a acção deve ser julgada improcedente porque todas as condições do artigo 28.° , n.° 2, alínea a), estão preenchidas. A taxa de 2,1% existia anteriormente em 1 de Janeiro de 1991, o que a Comissão, aliás, não contesta.
14. Os medicamentos comparticipáveis e os que o não são constituem produtos diferentes, de modo que é incorrecto afirmar que há violação dos princípios invocados pela Comissão, sendo certo que eles são essenciais no âmbito do regime comunitário do IVA.
15. A existência da taxa de 2,1% corresponde, efectivamente, a um interesse social pois facilita o acesso dos beneficiários da Segurança Social aos cuidados de saúde.
16. Tendo em conta a forma como o litígio se configurou no decurso da fase escrita do processo e as posições adoptadas pelas partes no decurso da audiência, parece que a sua solução depende de saber se todos os medicamentos devem ser considerados produtos similares, à luz do sistema comunitário do IVA, ou se se pode considerar que aqueles que são reembolsáveis se distinguem, à luz deste mesmo sistema, dos outros.
17. A Comissão reconhece que é inútil a procura, nas várias directivas relativas ao IVA, de uma disposição que explicite a noção de produtos similares e admite, em consequência, que nos encontramos numa situação em que é admissível o recurso à analogia a partir de outros ramos do direito comunitário.
18. Além disso, ainda que o Governo francês entenda recorrer à analogia a partir da Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, respeitantes às especialidades farmacêuticas , da pauta aduaneira comum, da jurisprudência relativa à admissibilidade, a respeito dos artigos 30.° e 36.° do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 28.° CE e 30.° CE), de uma regra nacional que proíba os farmacêuticos de executar uma receita de um médico substituindo um medicamento por outro e do direito da concorrência, a Comissão considera que o único recurso à analogia que pode ser legitimamente feito no presente processo é aquele que reproduz a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a noção de produtos similares no sentido do artigo 95.° , n.° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90.° , n.° 1, CE).
19. Chama-se à atenção, de imediato, que a Comissão de modo algum faz incidir a sua crítica sobre a forma como as autoridades francesas procedem à inscrição de um medicamento na lista dos medicamentos comparticipáveis.
20. A Comissão não contesta que esta inscrição é feita com base em critérios objectivos e que se efectua no respeito pelas regras formuladas pela Directiva 89/105/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa à transparência das medidas que regulamentam a formação do preço das especialidades farmacêuticas para uso humano e a sua inclusão nos sistemas nacionais de seguro de saúde .
21. Para a Comissão, a classificação dos medicamentos em duas categorias não pode, no entanto, ter menor pertinência quanto à aplicação do regime comunitário do IVA, visto que o facto de existirem medicamentos comparticipáveis e outros que o não são não permite concluir que, a respeito do referido regime, se trate de produtos diferentes, com a possibilidade de aplicação de taxas diferentes sem violação do princípio da neutralidade fiscal e da proibição de criar distorções de concorrência.
22. Para sustentar a sua afirmação de que os medicamentos comparticipáveis são diferentes dos não reembolsáveis, de forma que os princípios do regime comunitário do IVA não impõem que sejam tributados com a mesma taxa, o Governo francês avança diferentes argumentos para demonstrar que a categoria dos medicamentos, tal como é enquadrada pelo direito comunitário, está longe de ser homogénea.
23. Em nossa opinião, alguns destes argumentos não resistem manifestamente à sua análise e podem pois ser rapidamente afastados.
24. É o caso, em primeiro lugar, do argumento retirado da Directiva 65/65. Segundo o Governo francês, a existência de diferentes categorias de medicamentos está consagrada nesta directiva, na medida em que se prevê que um produto pode ser definido como um medicamento a partir de diferentes critérios, e é verdade que, para que um produto pertença à categoria dos medicamentos, a directiva fixa, a par da sua função, a sua apresentação. Mas isso não retira nada ao facto, sublinhado pela Comissão, de que o que a directiva visa, quando refere as diferentes hipóteses em que um produto se pode considerar, para a sua aplicação, como um medicamento, é fazer uma distinção entre os medicamentos e os outros produtos.
25. Um produto pode ser um medicamento a diversos títulos, mas, uma vez que é reconhecido como medicamento, aplica-se-lhe um regime único e, seja como for, nada na directiva sustenta a tese segundo a qual todos os medicamentos não serão produtos similares à luz do IVA.
26. Também não tem maior relevância o facto, sublinhado pelo Governo francês, de que, ainda por força da Directiva 65/65, dois medicamentos cuja composição em princípios activos é idêntica possam ser objecto de duas autorizações de colocação no mercado diferentes.
27. Com efeito, não é pelo facto de duas especialidades farmacêuticas, vendidas sob marcas e apresentações diferentes, deverem ser objecto de diferentes autorizações de colocação no mercado que não podem ser produtos similares à luz do IVA.
28. De facto, a razão de ser de duas autorizações de colocação no mercado deve, provavelmente, ser procurada na necessidade de verificar, cada vez que um fabricante entenda colocar um medicamento no mercado, de que produto se trata exactamente e de se assegurar de que o medicamento não se poderá revelar prejudicial tendo em conta as exigências da saúde pública.
29. Isto é, de todo o modo, estranho às exigências de neutralidade fiscal do regime comunitário do IVA.
30. É, também, de forma ainda mais evidente, o caso da definição de medicamento pela pauta aduaneira comum, que o Governo francês invoca para ilustrar a não homogeneidade da categoria dos medicamentos.
31. Com efeito, se, do ponto de vista da aplicação da pauta aduaneira comum, são considerados medicamentos produtos cujas propriedades curativas são reconhecidas e outros relativamente aos quais essas propriedades são simplesmente anunciadas ou presumidas através da forma como se apresentam e são comercializados, todos os medicamentos relevam da mesma subdivisão da pauta aduaneira comum e as subcategorias desta não têm nenhuma conexão com o reembolso pela segurança social.
32. É igualmente o caso, por fim, do acórdão de 18 de Maio de 1989 . Neste acórdão, o Tribunal de Justiça admitiu que: «uma disposição nacional de um Estado-Membro, segundo a qual um farmacêutico deve, para executar uma receita que designe um produto médico pela sua marca ou pelo nome de proprietário, fornecer exclusivamente um produto com esta marca ou este nome, pode ser justificada por razões de protecção da saúde pública, ao abrigo do artigo 36.° do Tratado, mesmo quando esta disposição tiver por efeito impedir o farmacêutico de vender um produto de valor terapêutico equivalente, autorizado pelas autoridades nacionais competentes por força de disposições adoptadas em conformidade com o acórdão do Tribunal de 20 de Maio de 1976, proferido no processo 104/75, e fabricado pela mesma sociedade ou pelo mesmo grupo de sociedades ou ainda pelo titular de uma licença concedida por essa sociedade, mas com uma marca ou um nome utilizados para este produto noutro Estado-Membro, diferentes dos mencionados na receita».
33. A argumentação do Tribunal de Justiça é, com efeito, uma argumentação em termos de protecção da saúde pública. Admitindo a restrição da possibilidade de o farmacêutico substituir produtos de marcas diferentes, o Tribunal de Justiça visou, na realidade, preservar o poder de prescrição do médico e evitar os riscos que possam advir da entrega ao doente de um produto que não é exactamente aquele que foi prescrito pelo médico, a não ser aparentemente.
34. Parece-nos por isso difícil sustentar que, ao fazê-lo, o Tribunal de Justiça tenha consagrado a possibilidade de considerar como produtos diferentes, para efeito de aplicação do IVA, dois produtos que contêm os mesmos princípios activos.
35. Uma vez que a sua argumentação se situa estritamente no âmbito do artigo 36.° do Tratado, parece-nos vã a discussão àcerca da questão de saber se o Tribunal de Justiça considerou que a especialidade comercializada por um laboratório e o seu concorrente genérico são ou não similares.
36. Os argumentos que o Governo francês tira do artigo 95.° do Tratado e do direito da concorrência parecem-nos muito mais relevantes para a questão que o Tribunal de Justiça é chamado a decidir, merecendo pois um exame muito aprofundado.
37. Quanto ao artigo 95.° do Tratado, a própria Comissão admite que é legítimo o recurso à analogia, a partir da abundante jurisprudência que o mesmo originou, pois que, de acordo com o regime comunitário do IVA, o referido artigo visa garantir a neutralidade fiscal e evitar distorções de concorrência.
38. A Comissão considera, entretanto, que esta argumentação não se revela de nenhuma utilidade para o Governo francês, visto que a referida jurisprudência sempre privilegiou uma interpretação muito ampla da similitude dos produtos, considerando que esta não deve ser apreciada em função de um critério de identidade rigorosa, mas de analogia e de comparabilidade na utilização .
39. A fortiori, dois produtos que apresentam características objectivas idênticas devem ser considerados produtos similares no sentido do artigo 95.° , primeiro parágrafo, do Tratado.
40. E, de facto, não é em razão de diferenças intrínsecas entre eles que os medicamentos são inscritos na lista dos produtos reembolsáveis ou dela excluídos.
41. Por um lado, a inscrição só é feita a pedido do fabricante e este pode, para um dado produto, não ver interesse na sua inscrição, na medida em que o facto de ser inscrito lhe impõe um certo número de restrições. O fabricante perderá a liberdade de fixar o preço e o produto não poderá ser objecto de publicidade destinada ao grande público.
42. Pode todavia acontecer que um outro fabricante faça uma escolha diferente para um produto intrinsecamente idêntico, entendendo que as vantagens da inscrição suplantam as restrições que acarreta.
43. Por outro lado, mesmo que os fabricantes de dois medicamentos intrinsecamente idênticos solicitem ambos a inscrição, as regras aplicáveis em França não garantem que ambos a obtenham.
44. Com efeito, nos termos do artigo R 163-3 do Código da Segurança Social, os medicamentos comparticipáveis são aqueles que trazem quer uma melhoria do serviço médico prestado em termos de eficácia terapêutica, ou, eventualmente , de efeito secundário, quer uma poupança no custo do tratamento medicamentoso.
45. Um medicamento novo que não traz elementos terapêuticos novos ou que é caro poderá por isso ser excluído de reembolso, sem ser, no entanto, intrinsecamente diferente de um medicamento comparticipável com o mesmo uso terapêutico.
46. O Governo francês afirma, no entanto, que a similitude dos produtos não se aprecia, unicamente, de acordo com a jurisprudência relativa ao artigo 95.° , primeiro parágrafo, do Tratado, em função das características intrínsecas das mercadorias. A similitude supõe igualmente que os produtos sejam substituíveis, no sentido de que devem responder às mesmas necessidades dos consumidores.
47. No acórdão John Walker, já referido, o Tribunal de Justiça, com efeito, já julgou que:
«[...] Para a apreciação do carácter de similitude, importa, por isso, tomar em consideração, por um lado, um conjunto de características objectivas das duas categorias de bebidas, tais como a sua origem, os seus processos de fabrico, as suas qualidades organolépticas, nomeadamente, o seu gosto e o seu teor em álcool, e, por outro, o facto de ambas as categorias de bebidas serem susceptíveis, ou não, de responder às mesmas necessidades dos consumidores» (n.° 11).
48. Esta capacidade para responder às necessidades dos consumidores parece-nos introduzir um elemento de subjectividade na apreciação da similitude e, de facto, não pode excluir-se que mesmo dois produtos intrinsecamente idênticos não respondam, verdadeiramente, às mesmas necessidades do consumidor, quando se toma em conta este elemento decorrente da escolha do consumidor, da sua visão pessoal do uso que pode fazer de cada um dos dois produtos e das vantagens que pode retirar de cada um deles.
49. É certo que a posição do Governo francês seria claramente mais forte se os medicamentos comparticipáveis só pudessem ser fornecidos pelo farmacêutico mediante receita médica, enquanto os não reembolsáveis seriam todos de venda livre, ou seja, estariam relacionados com a automedicação. Mas tal não é o caso.
50. Com efeito, no sistema francês existem medicamentos que apenas são fornecidos com receita médica, mas que nem por isso são reembolsáveis, por exemplo, porque foram considerados muito caros ou porque são considerados medicamentos paliativos, entendendo-se que a segurança social não deve suportar o seu custo.
51. Existem igualmente medicamentos comparticipáveis que podem ser comprados numa farmácia, sem receita médica, mas que apenas serão reembolsados se tiverem sido prescritos por um médico.
52. Existem, por fim, medicamentos que não exigem receita médica e que nunca podem ser reembolsados, porque não figuram na lista dos medicamentos comparticipáveis.
53. Não obstante estas clivagens, poder-se-á todavia considerar, como faz o Governo francês, que o conjunto dos medicamentos comparticipáveis responde a uma necessidade diferente da dos não comparticipáveis?
54. A Comissão responde pela negativa, sublinhando que uma pessoa que sofre passageiramente de ligeiras dores de cabeça vai, provavelmente, dirigir-se directamente à farmácia e pedir ao farmacêutico que lhe venda um medicamento susceptível de aliviar esses males e pouco se importa se o medicamento é comparticipável ou não, porque não tem receita.
55. É provável que a pessoa peça ao farmacêutico que lhe entregue um produto comparticipável, não porque o é, mas unicamente porque a pessoa já o utilizou sob prescrição do seu médico e constatou os seus efeitos benéficos. Neste caso, se o produto for de venda livre, o farmacêutico não terá justificação para não lho fornecer.
56. Na prática, pode concluir-se, por outro lado, que o medicamento comparticipável, mesmo quando o reembolso não possa ser pedido por falta de receita médica, é menos caro que o medicamento não comparticipável, tendo as mesmas virtudes curativas e que a taxa de IVA de 2,1% não é alheia a esta diferença.
57. Todavia, o medicamento não comparticipável pode também revelar-se mais barato que o medicamento comparticipável, não obstante a taxa de IVA mais elevada que sobre ele incide. Além disso, não nos parece possível fundar toda a nossa argumentação sobre estas hipóteses particulares, pois, em regra, os medicamentos comparticipáveis são comprados com base numa receita e objecto de comparticipação total ou parcial.
58. Por outro lado, se nos colocarmos não ao nível do consumidor individual mas ao nível da comunidade dos consumidores que beneficiam do regime francês da segurança social, chegaríamos a uma conclusão contrária à da Comissão.
59. Seríamos, com efeito, levados a considerar que esta comunidade tem uma necessidade específica, a de dispor de um conjunto completo de medicamentos que permitam satisfazer as exigências duma medicina de qualidade, que possa fazer face ao conjunto das patologias em boas condições económicas, necessidade satisfeita pelo recurso a uma farmacopeia claramente delimitada, traduzida na lista dos medicamentos comparticipáveis. A adequação destes medicamentos à necessidade assim definida do conjunto dos beneficiários da segurança social fará deles medicamentos correspondentes a uma necessidade específica dos consumidores e que devem ser distinguidas dos outros medicamentos, cujo reembolso não se justificaria à luz da satisfação dessa necessidade.
60. Considerada deste ponto de vista, a questão da existência de distinção susceptível de ser tida em conta no quadro do sistema comunitário do IVA poderá receber uma resposta que reconheça o bem fundado da tese do Governo francês.
61. Esta abordagem pode apoiar-se, e chegamos ao último argumento do Governo francês, numa argumentação por analogia a partir do direito comunitário da concorrência. Com efeito, como justamente fez notar o Governo francês, a Comissão, na sua decisão Glaxo/Wellcome , relativa a uma operação de concentração notificada, admitiu que o mercado dos medicamentos comparticipáveis pode ser distinguido daquele cujos medicamentos não o são. Lê-se, com efeito, no ponto 8 desta decisão que «[a] distinction may also be made between medicines which are wholly or partially reimbursed under the health insurance system and medicines which are not reimbursed».
62. Ora, a partir do momento em que podemos considerar que os mercados destas duas categorias de medicamentos são distintos, tornar-se-á, desde logo, dificilmente concebível que taxas de IVA diferentes possam provocar distorções de concorrência.
63. A Comissão invoca, na verdade, o penúltimo considerando da primeira directiva do IVA , nos termos do qual o sistema comunitário do IVA deve conduzir «a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, em cada país, mercadorias de um mesmo tipo estejam sujeitas à mesma carga fiscal». Mas não estamos convencidos de que o sistema de duas taxas aplicado pela República Francesa cause efectivamente prejuízo à neutralidade concorrencial.
64. Com efeito, mesmo que existam medicamentos comparticipáveis que se vendem livremente nas farmácias, um medicamento não pode ser comparticipado sem ter sido prescrito por um médico. Por outras palavras, os produtos efectivamente comparticipados não são acessíveis ao consumidor sem este consultar um médico e sem que este último considere útil a sua prescrição.
65. Estamos, pois, na presença de duas categorias de mercadorias separadas pela barreira da prescrição médica.
66. Uma destas categorias beneficia de uma vantagem intrínseca, a de poder ser comparticipada. O consumidor, por intermédio do seu médico, procura, prioritariamente, os medicamentos incluídos nesta categoria, não porque beneficiam de uma taxa de IVA mais reduzida, mas porque não lhe custarão, em definitivo, nada ou muito pouco. A taxa de IVA mais elevada que incide sobre os medicamentos não comparticipáveis não é, pois, em si mesma, de natureza a provocar um aumento do consumo dos medicamentos comparticipáveis em prejuízo dos medicamentos não comparticipáveis.
67. Em resumo, como as duas categorias de medicamentos não se encontram numa relação de concorrência na qual a tributação possa ter um papel determinante, e como não são substituíveis segundo o livre arbítrio do consumidor, consideramos finalmente poder concluir que não se trata de mercadorias análogas.
68. A medida criticada pela Comissão satisfaz, pois, no nosso ponto de vista, a segunda condição prevista pelo artigo 28.° , n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva, na redacção dada pela Directiva 92/77.
69. Resta, então, a questão de saber se está preenchida a terceira condição que esta disposição prevê, quer dizer, se a taxa reduzida foi instituída por razões de interesse social bem definidas e em favor do consumidor final.
70. Sobre este ponto, a Comissão, como já lembrámos, não se alongou muito, e parece-nos que teve razão em não o fazer. Com efeito, parece dificilmente contestável que, efectivamente, existe um interesse social, pois que o custo de um tratamento médico prescrito por um médico é reduzido para o doente. Por outro lado, o consumidor final sai, na verdade, beneficiado da reduzida taxa de IVA, pois que, geralmente, não obterá a comparticipação integral do que irá dispender.
71. É inegável que a colectividade dos beneficiários da segurança social, e por isso dos contribuintes, beneficia igualmente da medida, mas isso não será suficiente para considerar que a terceira condição não está preenchida.
Conclusão
72. À luz do conjunto das considerações que precedem, propomos ao Tribunal de Justiça que decida:
- negar provimento ao recurso;
- condenar a Comissão nas despesas.