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Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

15 de setembro de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Direito à dedução do IVA pago a montante — Venda de um bem imóvel entre sujeitos passivos — Vendedor objeto de um processo de insolvência — Prática nacional que consiste em recusar o direito à dedução ao comprador pelo facto de este ter ou dever ter conhecimento das dificuldades do vendedor em pagar o IVA devido a jusante — Fraude e abuso de direito — Requisitos»

No processo C-227/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia), por Decisão de 31 de março de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de abril de 2021, no processo

UAB «HA.EN.»

contra

Valstybinė mokesčių inspekcija prie Lietuvos Respublikos finansų ministerijos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, S. Rodin, J.-C. Bonichot, L. S. Rossi e O. Spineanu-Matei (relatora), juízes,

advogado-geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da UAB «HA.EN.», por G. Kaminskas e Z. Stuglytė, advokatai,

–        em representação do Governo lituano, por K. Dieninis e V. Kazlauskaitė-Švenčionienė, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por O. Serdula, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Jokubauskaitė e L. Lozano Palacios, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 5 de maio de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a UAB «HA.EN.» à Valstybinė mokesčių inspekcija prie Lietuvos Respublikos finansų ministerijos (Direção Nacional dos Impostos junto do Ministério das Finanças da República da Lituânia, a seguir «Administração Fiscal»), a respeito da recusa do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) em razão de um pretenso abuso de direito cometido pela HA.EN.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 7 e 42 da Diretiva IVA têm a seguinte redação:

«(7)      O sistema comum do IVA deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado-Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição.

[...]

(42)      Em determinados casos específicos, os Estados-Membros deverão poder designar o destinatário das entregas de bens ou das prestações de serviços como sendo o devedor do imposto. Esta medida permitir-lhes-á simplificar as regras e lutar contra a evasão e elisão fiscais verificadas em determinados setores ou em certos tipos de operações.»

4        O artigo 168.° desta diretiva prevê:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)      O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

[...]»

5        O artigo 193.° da referida diretiva enuncia:

«O IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis, com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa nos termos dos artigos 194.° a 199.° e 202.°»

6        O artigo 199.°, n.° 1, da mesma diretiva dispõe:

«Os Estados-Membros podem prever que o devedor do imposto é o sujeito passivo destinatário das seguintes operações:

[...]

g)      Entrega de um bem imóvel vendido pelo devedor no âmbito de um processo de venda coerciva.»

7        Nos termos do artigo 273.° da Diretiva IVA:

«Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados-Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.

[...]»

 Direito lituano

8        O artigo 58.°, n.° 1, da Lietuvos Respublikos pridėtinės vertės mokesčio įstatymas (Lei da República da Lituânia Relativa ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado), na sua redação resultante da Lei IX-751 de 5 de março de 2002, prevê:

«A pessoa registada para efeitos do IVA tem o direito de deduzir o IVA pago a montante e/ou na importação sobre bens e/ou serviços adquiridos e/ou importados, se esses bens e/ou serviços se destinarem às seguintes atividades desse sujeito passivo do IVA: [...] o fornecimento de bens e/ou de serviços em relação aos quais o IVA é exigível.

[...]»

9        O artigo 719.°, n.° 1, do Lietuvos Respublikos Civilinio proceso kodeksas (Código de Processo Civil da República da Lituânia), na redação resultante da Lei XII-889 de 15 de maio de 2014, dispõe:

«Quando uma venda em hasta pública for declarada deserta por ausência de proponentes [...], o bem será transferido para a pessoa que requer a execução pelo preço de base de licitação na hasta pública.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

10      Por contrato de 21 de setembro de 2007, a UAB «Medicinos Bankas» (a seguir «banco») concedeu um empréstimo à UAB «Sostinės būstai» (a seguir «vendedor») para o exercício de atividades de promoção imobiliária. A fim de garantir o devido cumprimento deste contrato, o vendedor constituiu junto do banco uma hipoteca convencional sobre um terreno em que se encontrava um edifício em construção na cidade de Vílnius (Lituânia).

11      Por um contrato de cessão de créditos celebrado em 27 de novembro de 2015, a HA.EN. adquiriu, a título oneroso, ao banco que concedeu o empréstimo, todos os créditos financeiros decorrentes do contrato de crédito celebrado entre este último e o vendedor, bem como todos os direitos constituídos para garantir o cumprimento das obrigações, incluindo a hipoteca convencional. No momento da celebração deste contrato, a HA.EN. confirmou, nomeadamente, que tinha tomado conhecimento da situação económica, financeira e jurídica do vendedor e confirmou que sabia que este estava insolvente e que era objeto de um processo de insolvência pendente no Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius, Lituânia). Por contrato celebrado em 18 de dezembro de 2015, o banco cedeu à HA.EN. a hipoteca constituída sobre o bem do vendedor.

12      A venda em hasta pública de uma parte do bem imóvel do vendedor (a seguir «bem imóvel em causa») foi anunciada por um funcionário judicial em 23 de maio de 2016, mas nenhum comprador manifestou interesse na aquisição do mesmo. Uma vez frustrada a venda em hasta pública, foi proposto à HA.EN., no âmbito do processo de leilão, que adquirisse o bem imóvel em causa pelo montante de base de licitação, satisfazendo-se assim uma parte dos créditos por ela detidos. A HA.EN. exerceu esse direito e adquiriu o bem imóvel em causa.

13      Para esse efeito, em 21 de julho de 2016, um funcionário judicial lavrou uma escritura a titular a transferência da propriedade do imóvel em causa para a HA.EN.

14      Em 5 de agosto de 2016, o vendedor emitiu uma fatura em que indicava que a propriedade do bem imóvel em causa tinha sido transferida para a HA.EN. no referido ato pelo montante total de 5 468 000 euros, ou seja, um montante de 4 519 008,26 euros acrescido de IVA no montante de 948 991,74 euros. A HA.EN. inscreveu essa fatura na sua contabilidade e deduziu o IVA pago a montante que constava dessa fatura na sua declaração de IVA relativa ao mês de novembro de 2016. O vendedor também inscreveu a referida fatura na sua contabilidade e declarou o IVA a jusante que constava da mesma como IVA devido, na sua declaração relativa ao mês de agosto de 2016, mas nunca o pagou aos cofres do Estado.

15      Em 1 de outubro de 2016, o vendedor foi declarado insolvente.

16      Em 20 de dezembro de 2016, a HA.EN. pediu à Administração Fiscal o reembolso do excedente de IVA resultante da dedução do IVA pago a montante, ou seja, 948 991,74 euros. Após ter efetuado uma inspeção fiscal à HA.EN., a Administração Fiscal considerou que, ao celebrar a operação de aquisição do bem imóvel em causa, apesar de saber ou dever saber que o vendedor não pagaria o IVA gerado por essa operação aos cofres do Estado, a HA.EN. tinha agido de má-fé e cometido um abuso de direito. Foi com base nesta fundamentação que, por Decisão de 12 de julho de 2017, a Administração Fiscal recusou à HA.EN. o direito de deduzir esse IVA pago a montante, lhe imputou a quantia de 38 148,46 euros a título de juros de mora de IVA e lhe aplicou uma coima no montante de 284 694 euros.

17      A HA.EN. reclamou desta decisão junto da Mokestinių ginčų komisija prie Lietuvos Respublikos Vyriausybės (Comissão do Contencioso Fiscal do Governo da República da Lituânia), que, por Decisão de 22 de janeiro de 2018, anulou a decisão da Administração Fiscal no que respeita aos juros de mora e à coima, mas, por entender que a HA.EN. tinha cometido um abuso de direito, a confirmou na parte em que recusou à HA.EN. o direito à dedução do IVA.

18      A HA.EN. interpôs recurso desta decisão da Comissão do Contencioso Fiscal do Governo da República da Lituânia no Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius, Lituânia) que, por Sentença de 14 de novembro de 2018, confirmou a posição da Administração Fiscal e negou provimento ao recurso.

19      Em 12 de dezembro de 2018, a HA.EN. interpôs recurso para o órgão jurisdicional de reenvio, o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia), que, por Despacho de 13 de maio de 2020, deu parcialmente provimento à sentença do Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius) e lhe remeteu o processo, indicando-lhe, nomeadamente, que devia verificar os requisitos e as características da existência de um abuso de direito no caso em apreço.

20      Após nova apreciação do litígio fiscal, o Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius), considerou, novamente, por Decisão de 3 de setembro de 2020, que a HA.EN. tinha cometido um abuso de direito e, consequentemente, declarou que a Administração Fiscal tinha fundamento para lhe recusar o direito à dedução do IVA pago a montante. A HA.EN. interpôs então novo recurso no órgão jurisdicional de reenvio.

21      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, uma vez que a fatura relativa à operação de venda coerciva indicava o montante líquido de 4 519 008,26 euros e um montante de IVA que ascendia a 948 991,74 euros, a HA.EN. suportou efetivamente o IVA. Nesta base, o órgão jurisdicional de reenvio considera que nada permitia a priori à Administração Fiscal considerar que os requisitos materiais e formais previstos na Diretiva IVA para o exercício, pela HA.EN., do seu direito à dedução não estavam preenchidos.

22      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a questão de saber se, para lhe recusar o direito a deduzir o IVA relativo à aquisição do bem imóvel em causa, a Administração Fiscal podia invocar o facto de a HA.EN. saber ou dever saber que o vendedor, devido às suas dificuldades financeiras e à sua potencial insolvência, não pagaria, ou não poderia pagar, o IVA aos cofres do Estado.

23      Nestas condições, o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve a [Diretiva IVA], em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, ser interpretada no sentido de que proíbe ou de que não proíbe uma prática das autoridades nacionais segundo a qual o direito de um sujeito passivo à dedução do IVA a montante é negado quando este sujeito passivo, no momento em que adquiriu bens imóveis, sabia (ou devia saber) que o fornecedor, por estar insolvente, não pagaria (ou não poderia pagar) o IVA aos cofres do Estado?»

 Quanto à questão prejudicial

24      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA, lido à luz do princípio da neutralidade fiscal, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática nacional que consiste, no âmbito da venda de um bem imóvel entre sujeitos passivos, em recusar ao adquirente o direito de deduzir o IVA pago a montante pelo simples facto de este saber ou dever saber que o vendedor enfrentava dificuldades financeiras, ou até que estava insolvente, e que essa circunstância podia levar a que este último não pagasse ou não pudesse pagar o IVA aos cofres do Estado.

25      Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito dos sujeitos passivos de deduzir do IVA de que são devedores o IVA devido ou pago em relação aos bens adquiridos ou aos serviços que lhes foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum de IVA instituído pela legislação da União. O regime das deduções, de que faz parte o artigo 168.° da Diretiva IVA, visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, EU:C:2016:691, n.os 26 e 27 e jurisprudência referida). Como o Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente, o direito a dedução previsto nos artigos 167.° e seguintes da Diretiva IVA faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado (Acórdão de 16 de outubro de 2019, Glencore Agriculture Hungary, C-189/18, EU:C:2019:861, n.° 33 e jurisprudência referida).

26      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a questão de saber se o fornecedor dos bens pagou ou não o IVA devido por essas operações de venda aos cofres do Estado não é relevante para o direito do sujeito passivo de deduzir o IVA pago a montante (Acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C-277/14, EU:C:2015:719, n.° 45 e jurisprudência referida). Subordinar o direito à dedução do IVA ao pagamento efetivo prévio do referido IVA pelo fornecedor de bens teria como consequência sujeitar o sujeito passivo a um encargo económico que não lhe incumbe e que o regime das deduções tem precisamente por objetivo evitar (v., neste sentido, Acórdão de 29 de março de 2012, Véleclair, C-414/10, EU:C:2012:183, n.° 30).

27      Ao mesmo tempo, a luta contra a fraude, a evasão fiscal e os eventuais abusos é um objetivo reconhecido e incentivado pela Diretiva IVA e o Tribunal de Justiça já declarou repetidas vezes que os litigantes não podem invocar de forma fraudulenta ou abusiva as normas do direito da União. Por conseguinte, cabe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício do direito à dedução se se demonstrar, à luz de elementos objetivos, que este direito é invocado fraudulenta ou abusivamente (Acórdão de 10 de julho de 2019, Kuršu zeme, C-273/18, EU:C:2019:588, n.° 34 e jurisprudência referida).

28      No entanto, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma vez que a recusa do direito à dedução é uma exceção à aplicação do princípio fundamental que constitui este direito, incumbe às autoridades tributárias fazer prova bastante de que os elementos objetivos que permitem concluir que o sujeito passivo cometeu uma fraude ou que sabia ou deveria saber que a operação invocada para fundamentar o direito à dedução fazia parte de uma fraude. Em seguida, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se as autoridades tributárias em causa demonstraram a existência de tais elementos objetivos (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 50 e jurisprudência referida).

29      É à luz desta jurisprudência que há que determinar se, em caso de venda de um bem imóvel por uma sociedade em dificuldades financeiras, as autoridades fiscais nacionais podem validamente recusar ao adquirente desse bem o direito de deduzir o IVA pago a montante pelo facto de, em razão do conhecimento destas dificuldades financeiras e das eventuais consequências das mesmas para o pagamento do IVA aos cofres do Estado, esse adquirente saber ou dever saber que participava numa operação envolvida numa fraude ao IVA ou que cometia um abuso de direito.

30      Em primeiro lugar, no que respeita à eventual participação do adquirente do bem imóvel numa operação envolvida numa fraude ao IVA, importa sublinhar que os interesses financeiros da União incluem, nomeadamente, as receitas provenientes do IVA (Acórdão de 2 de maio de 2018, Scialdone, C-574/15, EU:C:2018:295, n.° 27 e jurisprudência referida).

31      Há igualmente que recordar que o conceito de «fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades Europeias», tal como definido no artigo 1.° da Convenção Estabelecida com Base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, assinada em Bruxelas em 26 de julho de 1995 e anexada ao ato do Conselho, de 26 de julho de 1995 (JO 1995, C 316, p. 48), abrange, nomeadamente, «qualquer ato ou omissão intencionais relativos [...] à utilização ou apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito o recebimento ou a retenção indevidos de fundos provenientes do Orçamento Geral das Comunidades Europeias ou dos orçamentos geridos pelas Comunidades Europeias ou por sua conta». Por conseguinte, e conforme resulta do número anterior, este conceito engloba qualquer ato ou omissão intencionais que afete as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à base tributável harmonizada do IVA, determinada segundo as regras da União (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o., C-105/14, EU:C:2015:555, n.° 41).

32      O Tribunal de Justiça já declarou que, na medida em que o sujeito passivo cumpriu devidamente as suas obrigações declarativas em matéria de IVA, a mera falta de pagamento do IVA devidamente declarado não pode, independentemente do caráter intencional ou não dessa omissão, constituir uma fraude ao IVA (v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, Scialdone, C-574/15, EU:C:2018:295, n.os 38 a 41).

33      Logo, não se pode considerar que um sujeito passivo devedor de um crédito executório, que se vê confrontado com dificuldades financeiras, e vende, no âmbito de um processo de venda coerciva legalmente organizado, um dos seus bens com o objetivo de liquidar as suas dívidas, e depois declara o IVA devido a esse título, mas não pode em seguida, devido a essas dificuldades, pagar, no todo ou em parte, o referido IVA, se torna, apenas por esse facto, culpado de fraude ao IVA. Por conseguinte, não se pode, por maioria de razão, nessas circunstâncias, acusar o adquirente de tal bem de que sabia ou devia saber que, ao adquirir esse bem, participava numa operação envolvida numa fraude ao IVA.

34      Em segundo lugar, no que respeita à existência de um eventual abuso de direito por parte do adquirente do bem imóvel em causa, importa recordar que o direito da União em matéria de IVA se opõe ao direito do sujeito passivo de deduzir o IVA pago a montante quando as operações em que esse direito se baseia forem constitutivas de uma prática abusiva (Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o., C-255/02, EU:C:2006:121, n.° 85). Com efeito, esse direito não se pode alargar às práticas abusivas de operadores económicos, isto é, às operações que não são realizadas no quadro de transações comerciais normais, mas somente com o objetivo de beneficiar abusivamente das vantagens previstas pelo referido direito (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing, C-103/09, EU:C:2010:804, n.° 26).

35      No domínio do IVA, a verificação da existência de uma prática abusiva exige a reunião de dois requisitos. Por um lado, as operações em causa, apesar da aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Diretiva IVA e da legislação nacional que a transponha, devem ter por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seja contrária ao objetivo prosseguido por essas disposições. Por outro lado, deve resultar de um conjunto de elementos objetivos que a finalidade essencial das operações em causa se limita à obtenção dessa vantagem fiscal (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o., C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 74 e 75, e de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 54 e jurisprudência referida). Neste quadro, é ao órgão jurisdicional nacional que compete verificar, em conformidade com as regras de prova do direito nacional, se os elementos constitutivos de uma prática abusiva estão reunidos. Todavia, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode, sendo caso disso, fornecer dados que permitam guiar o órgão jurisdicional nacional na sua interpretação (v., neste sentido, Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o., C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 76 e 77).

36      Quanto ao primeiro requisito, importa observar que, mesmo admitindo que a dedução, pretendida pelo adquirente de um bem imóvel, do IVA que pagou a montante no momento da aquisição desse bem possa ser qualificada de vantagem fiscal, a mesma não pode ser considerada contrária aos objetivos prosseguidos pela Diretiva IVA. Como salientou a advogada-geral nos n.os 40 a 44 das suas conclusões, é o que resulta do artigo 199.°, n.° 1, alínea g), da Diretiva IVA que permite aos Estados-Membros recorrer ao mecanismo da autoliquidação e transferir o encargo do IVA para o sujeito passivo destinatário da operação sujeita a este imposto, no caso de entrega de um bem imóvel vendido pelo devedor de um crédito executório no âmbito de um processo de venda coerciva. Embora a República da Lituânia tenha optado por não recorrer a este mecanismo, a própria existência da faculdade prevista nesta disposição demonstra que o legislador da União não considerou a dedução do IVA pago pelo adquirente de um bem imóvel no âmbito de um processo de venda coerciva como contrária aos objetivos da Diretiva IVA.

37      É certo que, nos n.os 42 a 45 do Acórdão de 20 de maio de 2021, ALTI (C-4/20, EU:C:2021:397), o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que a Diretiva IVA não se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual o cocontratante de um devedor do IVA relativamente ao qual foi provado que sabia ou devia saber que o referido devedor não pagaria esse imposto, embora exercesse ele próprio o seu direito à dedução a montante, é considerado codevedor solidário do IVA não pago e dos seus acréscimos.

38      Todavia, pelas razões expostas pela advogada-geral nos n.os 46 e 47 das suas conclusões, há que constatar que a situação de um sujeito passivo que adquire um bem imóvel na sequência de um processo de venda coerciva legalmente organizado, sob o controlo das autoridades públicas, não é comparável à do cocontratante do devedor principal do IVA em causa no processo que deu origem a esse acórdão. Com efeito, não se pode deduzir das meras dificuldades financeiras com que se defronta um devedor que veja o seu bem vendido por via de execução coerciva a sua intenção ilegal de não pagar o IVA. Não se pode, assim, apenas nessa base, considerar que, ao realizar uma transação comercial com ele, o adquirente desse bem comete um abuso de direito.

39      De acordo com o segundo requisito constitutivo do abuso de direito, deve resultar de um conjunto de elementos objetivos que a finalidade essencial da operação em causa se limita à obtenção de uma vantagem fiscal. A este respeito, importa, antes de mais, salientar que resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, no processo principal, a HA.EN. era credora do vendedor e dispunha de uma hipoteca sobre o bem imóvel em causa, que foi objeto de uma venda coerciva. Nestas circunstâncias, há que considerar que a aquisição por um credor, na sequência de uma venda em hasta pública frustrada, de um bem imóvel sobre o qual dispunha de uma tal garantia, pode essencialmente ser motivada, não pela obtenção de qualquer vantagem fiscal, mas pela sua vontade de recuperar a totalidade ou parte do seu crédito junto de um devedor em processo de insolvência, pelos meios legais à sua disposição, tais como um processo de venda coerciva.

40      Atendendo ao facto de a venda ter lugar no âmbito de um processo legalmente organizado, aplicável, é certo, num contexto excecional, o da insolvência de um operador económico, mas que é, contudo, inerente à vida económica, e face ao objetivo a priori legítimo por ela prosseguido, tal operação não pode ser equiparada a uma montagem puramente artificial, desprovida de realidade económica, efetuada com o único fim de obter uma vantagem fiscal, que o princípio da proibição das práticas abusivas leva a proibir (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses, C-419/14, EU:C:2015:832, n.° 35 e jurisprudência referida, e de 20 de maio 2021, ALTI, C-4/20, EU:C:2021:397, n.° 35 e jurisprudência referida).

41      A este respeito, o conhecimento, pelo adquirente, das dificuldades financeiras do vendedor, da sua potencial insolvência ou, como no caso em apreço, da abertura de um processo de insolvência, bem como da eventual incidência dessas circunstâncias no pagamento aos cofres do Estado do IVA relativo à operação, parece constituir uma circunstância inerente aos processos de venda coerciva e não basta, por si só, para demonstrar o caráter abusivo da operação em causa e, portanto, para justificar a recusa do direito à dedução.

42      À luz do que precede, as autoridades fiscais de um Estado-Membro não podem, do ponto de vista do direito da União, validamente considerar que, no âmbito da venda de um bem imóvel entre sujeitos passivos na sequência de um processo de venda coerciva legalmente organizado, o simples facto de o adquirente saber ou dever saber que o vendedor enfrentava dificuldades financeiras e que isso podia levar a que este último não pagasse o IVA aos cofres do Estado implica que esse adquirente cometeu um abuso de direito e, portanto, recusar-lhe o direito de deduzir o IVA pago a montante.

43      Tal prática nacional é igualmente contrária ao princípio da neutralidade fiscal por implicar que os adquirentes de bens imóveis não podem deduzir o IVA que pagaram a montante no âmbito de um processo de venda coerciva, o que equivale a impor-lhes o encargo deste imposto, ao passo que o princípio da neutralidade fiscal visa precisamente libertar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, Malburg, C-204/13, EU:C:2014:147, n.° 41 e jurisprudência referida).

44      A referida prática equivale a fazer com que esses adquirentes suportem o risco que a insolvência do vendedor implica para o pagamento efetivo do IVA aos cofres do Estado, risco que, em princípio, cabe aos cofres do Estado assumir.

45      Essa conclusão impõe-se tanto mais que a República da Lituânia optou por não exercer a faculdade conferida pelo artigo 199.°, n.° 1, alínea g), da Diretiva IVA de instituir, nestas circunstâncias precisas, um mecanismo de autoliquidação, que tem precisamente por objetivo atenuar o risco de insolvência do devedor do IVA (v., neste sentido, Acórdão de 13 de junho de 2013, Promociones y Construcciones BJ 200, C-125/12, EU:C:2013:392, n.° 28).

46      Como salientou a advogada-geral nos n.os 47, 51 e 52 das suas conclusões, a referida prática, ao equivaler a privar do seu direito à dedução os sujeitos passivos que adquiriram um bem imóvel no âmbito de um processo de venda coerciva, poderia igualmente contribuir para limitar o círculo de potenciais adquirentes. Por conseguinte, é contrária à finalidade prosseguida por este tipo de processos, a saber, realizar os ativos da melhor forma possível, a fim de ainda satisfazer o melhor possível os seus credores. Além disso, tende a isolar os operadores económicos confrontados com dificuldades financeiras e a entravar a sua capacidade de realizar transações de uma maneira contrária ao princípio da neutralidade fiscal, uma vez que este se opõe às distinções entre sujeitos passivos em função da sua situação financeira.

47      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA, lido à luz do princípio da neutralidade fiscal, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática nacional que consiste, no âmbito da venda de um bem imóvel entre sujeitos passivos, em recusar ao adquirente o direito de deduzir o IVA pago a montante pelo simples facto de que este sabia ou devia saber que o vendedor enfrentava dificuldades financeiras, ou até que estava insolvente, e que essa circunstância podia levar a que este último não pagasse ou não pudesse pagar o IVA aos cofres do Estado.

 Quanto às despesas

48      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma prática nacional que consiste, no âmbito da venda de um bem imóvel entre sujeitos passivos, em recusar ao adquirente o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) pago a montante pelo simples facto de que este sabia ou devia saber que o vendedor enfrentava dificuldades financeiras, ou até que estava insolvente, e que essa circunstância podia levar a que este último não pagasse ou não pudesse pagar o IVA aos cofres do Estado.

Assinaturas


*      Língua do processo: lituano.