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 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

13 de outubro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Liberdade de estabelecimento e livre prestação de serviços — Imposto sobre as sociedades — Determinação do rendimento tributável das sociedades — Operações com elementos de estraneidade — Obrigação de documentação fiscal das relações comerciais entre pessoas com laços de interdependência — Estimativa e sobretaxa do rendimento tributável a título de sanção»

No processo C-431/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Finanzgericht Bremen (Tribunal Tributário de Bremen, Alemanha), por Decisão de 7 de julho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de julho de 2021, no processo

X GmbH & Co. KG

contra

Finanzamt Bremen,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: L. S. Rossi, presidente de secção, J.-C. Bonichot (relator) e S. Rodin, juízes,

advogado-geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de X GmbH & Co. KG, por S. Stahlschmidt e J. Uterhark, Rechtsanwälte, e M. Giese, Steuerberaterin,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por W. Roels e V. Uher, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 43.o e 49.o CE, bem como dos artigos 49.o e 56.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a X GmbH & Co. KG ao Finanzamt Bremen (Serviço de Finanças de Bremen, Alemanha), a respeito de uma sobretaxa aplicada por este último ao rendimento tributável (a seguir «sobretaxa fiscal»), por inobservância da obrigação fiscal de documentação relativa às relações comerciais transfronteiriças entre sociedades coligadas.

Quadro jurídico

3

O § 90, relativo às obrigações de cooperação do sujeito passivo, do Abgabenordnung (Código Tributário) (BGBl. 2002 I, p. 3866), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código Tributário»), prevê:

«(1)   As pessoas em causa são obrigadas a cooperar no apuramento dos factos. Cumprem, nomeadamente, a sua obrigação de cooperação ao revelar com verdade todos os factos pertinentes para a tributação e ao comunicar os elementos de prova de que tenham conhecimento. O alcance destas obrigações depende das circunstâncias do caso em apreço.

[…]

(3)   em situações que envolvam operações com elementos de estraneidade, o sujeito passivo deve manter registos da natureza e do conteúdo das suas relações comerciais com pessoas estreitamente relacionadas na aceção do § 1, n.o 2, da Außensteuergesetz [Gesetz über die Besteuerung bei Auslandsbeziehungen (Lei Relativa à Tributação dos Rendimentos Auferidos no Estrangeiro), de 8 de setembro de 1972 (BGBl. 1972 I, p. 1713]. A obrigação de manter registos inclui também as bases económicas e jurídicas para um acordo respeitador do princípio da plena concorrência sobre preços e outras condições comerciais com as pessoas estreitamente relacionadas. Em caso de operações comerciais excecionais, os registos devem ser efetuados num curto prazo. As obrigações de registo aplicam-se por analogia aos sujeitos passivos que devam repartir, para efeitos da tributação a nível nacional, lucros entre a sua empresa nacional e os seus estabelecimentos estrangeiros ou determinar o lucro dos estabelecimentos nacionais da sua empresa estrangeira. Para garantir uma aplicação uniforme do direito, o Ministério Federal das Finanças está habilitado a definir, com o acordo do Bundesrat, por decreto de execução, a natureza, o conteúdo e o alcance dos registos a efetuar. A autoridade tributária só deve, regra geral, exigir a apresentação de registos para a realização de uma inspeção fiscal. A apresentação baseia-se no § 97, com a ressalva de que o n.o 2 desta disposição não é aplicável. A apresentação deve ter lugar mediante pedido no prazo de 60 dias. Desde que a apresentação diga respeito a registos relativos a operações comerciais excecionais, o prazo é de 30 dias. Em casos específicos devidamente justificados, o prazo de apresentação pode ser prorrogado.»

4

O § 162 do Código Tributário, sob a epígrafe «Estimativa das bases tributáveis», dispõe:

«(1)   Se a autoridade fiscal for incapaz de determinar ou calcular a base tributável, deve estimá-la. Terá em conta todas as circunstâncias relevantes para essa estimativa.

[…]

(3)   Se um sujeito passivo não cumprir as suas obrigações de cooperação nos termos do § 90, n.o 3 por não apresentar registos, ou se os registos apresentados forem essencialmente inutilizáveis, ou se for determinado que o sujeito passivo não elaborou atempadamente os registos na aceção do § 90, n.o 3, terceiro período, presume-se ilidivelmente que os seus rendimentos tributáveis em território nacional, para cuja determinação servem os registos na aceção do § 90, n.o 3, são superiores aos rendimentos por ele declarados. Se, nesses casos, a autoridade fiscal tiver de fazer uma estimativa e esses rendimentos só puderem ser determinados dentro de uma certa margem estimada, em particular apenas com base em intervalos de preços, pode recorrer-se a essa margem em detrimento do sujeito passivo. Se, apesar da apresentação de registos utilizáveis pelo sujeito passivo, existirem indícios de que, em caso de observância do princípio da plena concorrência, os seus rendimentos seriam mais elevados do que os rendimentos declarados com base nos registos e se as dúvidas nesse sentido não puderem ser dissipadas porque uma pessoa relacionada no estrangeiro não cumpre as suas obrigações de cooperação previstas no § 90, n.o 2, ou os seus deveres de informação referidos no § 93, n.o 1, há que aplicar o segundo período por analogia.

(4)   Se um sujeito passivo não apresentar os registos referidos no § 90, n.o 3, ou se os registos apresentados forem essencialmente inutilizáveis, há que impor uma sobretaxa de 5000 euros. A sobretaxa ascende, pelo menos, a 5 % e, no máximo, a 10 % do montante adicional dos rendimentos resultante da correção efetuada em aplicação do n.o 3, quando, na sequência dessa correção, a sobretaxa exceder 5000 euros. Em caso de apresentação tardia de registos utilizáveis, o montante máximo da sobretaxa é de 1000000 de euros, e de pelo menos 100 euros por cada dia completo de atraso. Na medida em que seja concedida às autoridades fiscais uma margem discricionária no que respeita ao montante da sobretaxa, há que ter em conta, para além do objetivo desta sobretaxa que visa o respeito, pelo sujeito passivo, da obrigação de efetuar e apresentar dentro do prazo os registos referidos no § 90, n.o 3, nomeadamente, as vantagens obtidas pelo sujeito passivo e, em caso de apresentação tardia, também a duração do atraso. Não há que fixar qualquer sobretaxa se o incumprimento das obrigações de registo referidas no § 90, n.o 3, se afigurar desculpável ou se o erro for menor. A culpa em que incorre um representante legal ou um empregado equivale a culpa própria. A sobretaxa deve ser fixada, regra geral, após o termo da inspeção fiscal.»

5

O § 1, n.o 2, da Lei Relativa à Tributação dos Rendimentos Auferidos no Estrangeiro, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, prevê:

«Uma pessoa está estreitamente relacionada com o sujeito passivo quando:

1.

a pessoa detém, direta ou indiretamente, uma participação que corresponda, no mínimo, a um quarto do capital do sujeito passivo (participação substancial) ou pode exercer direta ou indiretamente uma influência dominante sobre o sujeito passivo ou, ao invés, quando o sujeito passivo detém uma participação substancial no capital da referida pessoa ou pode exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante sobre ela, ou

2.

um terceiro detém uma participação substancial no capital da referida pessoa ou do sujeito passivo, ou pode exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante sobre uma ou outro, ou

3.

a pessoa ou o sujeito passivo pode, no quadro da negociação das condições de uma relação comercial, exercer sobre o sujeito passivo ou a pessoa uma influência que tem a sua origem fora dessa relação comercial, ou quando um dos dois tem um interesse próprio em que o outro obtenha rendimentos.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

6

A X, demandante no processo principal, é uma sociedade em comandita, com sede em Bremen (Alemanha), que detém e gere participações e presta serviços de assistência, de consultoria e de gestão. À data dos factos no processo principal, a X detinha a totalidade das participações numa sociedade de responsabilidade limitada com sede na Alemanha, que detinha, por sua vez, a totalidade das participações de quatro outras sociedades de responsabilidade limitada com sede nesse Estado-Membro.

7

A X tem como sócio comanditado uma sociedade estabelecida na Alemanha, e como sócia comanditária uma sociedade estabelecida nos Países Baixos cujo sócio único, a Y, é igualmente uma sociedade estabelecida nos Países Baixos.

8

Em 2013, a X e a sociedade comanditada fundiram-se.

9

A Y prestou serviços com base num contrato de gestão de negócios celebrado, para 2007, com o sócio comanditado da X e, seguidamente, para os anos seguintes do período controvertido, com a X.

10

Este contrato prevê que a remuneração da Y tem em conta os custos e as despesas efetivamente incorridos, com exceção dos custos incorridos pela Y no seu interesse social (a seguir «custos reembolsáveis»).

11

A Y deve elaborar os documentos relativos aos custos reembolsáveis e apresentar as contas anuais detalhadas. Resulta da decisão de reenvio que, no entanto, a Y não apresentou essas contas detalhadas.

12

A X foi objeto de uma inspeção fiscal relativa aos exercícios de 2007 a 2010, nomeadamente sobre as despesas de gestão pagas a Y. A documentação que a X foi instada a apresentar a título da obrigação prevista no § 90, n.o 3, do Código Tributário (a seguir «obrigação de documentação fiscal») foi declarada insuficiente pela administração tributária alemã.

13

Em 7 de janeiro de 2016, a Administração Fiscal neerlandesa, a pedido da X, informou a Administração Fiscal alemã de que a Y tinha faturado a X a totalidade dos seus custos, incluindo custos que não eram custos reembolsáveis.

14

Em 17 de março de 2016, a X e a Administração Fiscal alemã celebraram, com a participação da Y, uma transação na qual foi acordado que uma parte dos pagamentos da X à Y durante o período controvertido, de 400000 euros por ano e num montante total de 1,6 milhões de euros, tinha sido erradamente contabilizada como despesas de funcionamento.

15

No seu relatório de 10 de junho de 2016, a Administração Fiscal alemã indicou que os documentos apresentados pela X ao abrigo da obrigação de documentação fiscal não eram utilizáveis.

16

Consequentemente, em 8 de novembro de 2016, esta administração impôs à X o pagamento de uma sobretaxa fiscal, correspondente a 5 % dos seus rendimentos complementares, calculados por esta administração em 20000 euros por ano, ou seja, um montante total de 80000 euros.

17

Em 9 de dezembro de 2016, a X apresentou uma reclamação desta decisão junto da referida administração, que a indeferiu.

18

Em 27 de dezembro de 2017, a X interpôs recurso desta decisão no Finanzgericht Bremen (Tribunal Tributário de Bremen, Alemanha), no âmbito do qual alegou que o § 162, n.o 4, do Código Tributário, com base no qual lhe foi aplicada a sobretaxa fiscal, viola a liberdade de estabelecimento.

19

O Finanzgericht Bremen (Tribunal Tributário de Bremen) refere que o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal, Alemanha) declarou que a obrigação de documentação fiscal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento que se pode considerar justificada por razões imperiosas de interesse geral e, em especial, pela necessidade de garantir a preservação da repartição da competência fiscal entre os Estados-Membros e permitir um controlo fiscal eficaz, mas não se pronunciou sobre a conformidade com o direito da União da sobretaxa fiscal suscetível de ser aplicada em caso de violação desta obrigação. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta sobretaxa pode ir além do que é necessário para atingir esses objetivos.

20

Neste contexto, o Finanzgericht Bremen (Tribunal Tributário de Bremen) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 43.o CE e 49.o TFUE, que consagram a liberdade de estabelecimento (ou os artigos 49.o CE e 56.o TFUE, que consagram a livre prestação de serviços), ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional nos termos da qual, em situações que envolvam operações com elementos de estraneidade, o sujeito passivo deve manter registos da natureza e do conteúdo das suas relações comerciais com pessoas estreitamente relacionadas, incluindo as bases económicas e jurídicas para um acordo sobre preços e outras condições comerciais com as pessoas estreitamente relacionadas respeitador do princípio da plena concorrência, e nos termos da qual, se o sujeito passivo não apresentar os referidos registos quando solicitado pelas autoridades tributárias, ou se os registos apresentados forem essencialmente inutilizáveis, não só se presume ilidivelmente que os seus rendimentos tributáveis em território nacional, para cuja determinação servem os registos, são superiores aos rendimentos por ele declarados e, se nesses casos a autoridade tributária tiver de fazer uma estimativa e esses rendimentos só puderem ser determinados dentro de um determinado quadro, em particular apenas com base em intervalos de preços, esse quadro pode ser esgotado em detrimento do sujeito passivo, como, adicionalmente, deve ser liquidada uma sobretaxa equivalente a pelo menos 5 % e no máximo [a] 10 % do montante adicional dos rendimentos determinado, mas no mínimo equivalente a 5000 euros, e, em caso de apresentação tardia de registos utilizáveis, até 1000000 euros, mas pelo menos 100 euros por cada dia completo de atraso, em que a liquidação da sobretaxa só deve ser dispensada se o incumprimento das obrigações de manutenção de registos se afigurar desculpável ou se a culpa for leve?»

Quanto à questão prejudicial

Observações preliminares

21

A título preliminar, importa salientar que resulta dos próprios termos da decisão de reenvio e da redação da questão submetida que há que fornecer elementos de interpretação do direito da União que permitam ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a conformidade com o direito da União não só da sobretaxa fiscal que pune a inobservância da obrigação de documentação fiscal, mas também dessa própria obrigação.

22

Em contrapartida, não se afigura necessário, para efeitos do litígio no processo principal, fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio elementos de resposta que permitam apreciar a conformidade com o direito da União dos aspetos da legislação alemã, evocados por esse órgão jurisdicional, relativos à sobretaxa fiscal aplicável em caso de apresentação tardia da documentação fiscal aplicável.

Quanto à liberdade de circulação aplicável

23

Importa salientar que, embora a questão prejudicial diga respeito às disposições dos Tratados CE e FUE, relativas à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, há que determinar a liberdade aplicável no litígio no processo principal.

24

A este respeito, resulta de jurisprudência constante que, para determinar se uma legislação nacional se inscreve no âmbito de uma das liberdades de circulação, há que tomar em consideração o objeto da legislação em causa (Acórdão de 21 de janeiro de 2010, SGI, C-311/08, EU:C:2010:26, n.o 25 e jurisprudência referida).

25

Além disso, está abrangida pelo âmbito de aplicação da liberdade de estabelecimento uma legislação nacional que apenas é aplicável às participações que permitem exercer uma influência efetiva sobre as decisões de uma sociedade e determinar as respetivas atividades (Acórdão de 31 de maio de 2018, Hornbach Baumarkt, C-382/16, EU:C:2018:366, n.o 28 e jurisprudência referida).

26

A este respeito, importa salientar que a obrigação de documentação fiscal apenas diz respeito às operações comerciais transfronteiriças entre empresas «coligadas» na aceção do direito nacional, sendo essa afiliação definida pela existência de uma relação de interdependência, de capital ou outra, que caracteriza, aparentemente em cada caso, uma influência efetiva de uma sobre a outra. Em todo o caso, é isso que sucede quando essa afiliação é definida pela circunstância, que é a do litígio no processo principal, de uma pessoa deter direta ou indiretamente uma participação correspondente a, pelo menos, um quarto do capital do sujeito passivo. Com efeito, a Y detém indiretamente, por intermédio de uma sociedade com sede nos Países Baixos, 100 % do capital da X, com sede na Alemanha.

27

Tendo em conta o que precede, há que examinar a legislação nacional em causa exclusivamente à luz da liberdade de estabelecimento.

28

Por outro lado, embora o órgão jurisdicional de reenvio se tenha referido, na sua questão, à liberdade de estabelecimento consagrada, respetivamente, nos artigos 43.o CE e 49.o TFUE, só será feita referência ao artigo 49.o TFUE, valendo a interpretação, em qualquer caso, também para o artigo 43.o CE.

29

Por conseguinte, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação ao abrigo da qual, em primeiro lugar, o sujeito passivo tem uma obrigação de documentação sobre a natureza e o conteúdo, bem como sobre as bases económicas e jurídicas do preço e das outras condições comerciais das suas operações comerciais transfronteiriças com pessoas com as quais mantém uma relação de interdependência, de capital ou outra, que permite a esse sujeito passivo ou a essas pessoas exercerem sobre o outro uma influência efetiva e que prevê, em segundo lugar, em caso de violação dessa obrigação, não só que esses rendimentos tributáveis no Estado-Membro em causa se presumem, ilidivelmente, superiores aos que foram declarados, uma vez que a Administração Fiscal pode proceder a uma estimativa em detrimento do sujeito passivo, mas também a imposição de uma sobretaxa de um montante equivalente a, pelo menos, 5 % e, no máximo, 10 % do montante suplementar dos rendimentos calculados, com um montante mínimo de 5000 euros, salvo se o incumprimento desta obrigação for desculpável ou a culpa for leve.

Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

Quanto à obrigação de declaração fiscal

30

Segundo jurisprudência constante, a liberdade de estabelecimento, que o artigo 49.o TFUE reconhece aos nacionais da União Europeia, inclui, conforme resulta do artigo 54.o TFUE, para as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede estatutária, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal na União, o direito de exercerem a sua atividade noutro Estado-Membro através de filiais, sucursais ou agências [Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 21 e jurisprudência referida].

31

O Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento uma regulamentação nacional segundo a qual empréstimos em condições anormais ou a título gratuito atribuídos por uma sociedade residente a uma sociedade com a qual mantém uma relação de interdependência só são adicionados aos lucros próprios da primeira sociedade se a sociedade beneficiária estiver estabelecida noutro Estado-Membro [Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 24 e jurisprudência referida].

32

No caso em apreço, a obrigação de documentação fiscal visa as operações comerciais transfronteiriças realizadas entre uma sociedade residente e outra sociedade, com a qual mantém relações de interdependência, de capital ou outras, que permitem a esta última exercer uma influência efetiva sobre a sociedade residente. Além disso, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que as sociedades residentes não estão sujeitas a uma obrigação comparável para as operações comerciais celebradas com sociedades residentes.

33

Esta diferença de tratamento é suscetível de constituir uma restrição à liberdade de estabelecimento, na aceção do artigo 49.o TFUE, uma vez que as sociedades estabelecidas no Estado de tributação beneficiam de um tratamento menos favorável quando as sociedades com as quais mantêm relações de interdependência estão estabelecidas noutro Estado-Membro.

34

Com efeito, uma sociedade-mãe, estabelecida noutro Estado-Membro, pode ser levada a renunciar a adquirir, a criar ou a manter uma filial no primeiro Estado-Membro [v., por analogia, Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 27 e jurisprudência referida].

35

Ora, segundo jurisprudência constante, uma medida fiscal que é suscetível de entravar a liberdade de estabelecimento só pode ser admitida se disser respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou se for justificada por razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pelo direito da União. Nesta hipótese, impõe-se ainda que seja adequada para garantir a realização do objetivo em causa e não vá além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 28 e jurisprudência referida].

36

A este respeito, resulta de jurisprudência constante que o exame da comparabilidade entre uma situação transfronteiriça e uma situação interna do Estado-Membro deve tomar em consideração o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais em causa, bem como o objeto e o conteúdo destas últimas [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C-342/20, EU:C:2022:276, n.o 69].

37

No entanto, o Governo alemão invoca essencialmente argumentos relativos à necessidade de garantir a eficácia do controlo fiscal dos preços de transferência para verificar a conformidade com as condições do mercado das operações transfronteiriças do sujeito passivo com empresas coligadas, que se assemelham menos à questão da comparabilidade das situações do que à da justificação baseada na necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais para preservar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros (v., por analogia, Acórdão de 31 de maio de 2018, Hornbach-Baumarkt, C-382/16, EU:C:2018:366, n.o 40).

38

Com efeito, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que essa regulamentação, ao facilitar os controlos fiscais, prossegue o objetivo de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, o que constitui, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma razão imperiosa de interesse geral [v., neste sentido, Acórdãos de 12 de julho de 2012, Comissão/Espanha, C-269/09, EU:C:2012:439, n.o 63, e de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 31].

39

Ora, a necessidade de preservar a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros pode justificar uma diferença de tratamento quando o regime examinado vise prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado-Membro de exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (Acórdão de 31 de maio de 2018, Hornbach-Baumarkt, C-382/16, EU:C:2018:366 n.o 43).

40

A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o facto de permitir que as filiais de sociedades não residentes transfiram os seus lucros sob a forma de empréstimos em condições anormais para as suas sociedades-mãe pode comprometer uma repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros e que esta situação pode comprometer o próprio sistema da repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, porque o Estado-Membro da filial que atribui tais empréstimos pode ser obrigado a renunciar ao seu direito de tributar, enquanto Estado de residência dessa filial, os rendimentos desta, a favor, eventualmente, do Estado-Membro da sede da sociedade-mãe beneficiária [v., neste sentido, Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 32 e jurisprudência referida].

41

Por conseguinte, ao exigir ao sujeito passivo, no caso em apreço a filial residente no Estado-Membro de tributação, que constitua documentação relativa às suas operações comerciais transfronteiriças com empresas com as quais tem relações de interdependência e que dizem respeito tanto à natureza e às condições dessas operações como às bases económicas e jurídicas dos acordos sobre os preços e outras condições comerciais, a obrigação de documentação fiscal permite a esse Estado-Membro verificar de forma mais eficaz e com maior precisão se essas operações foram concluídas em conformidade com as condições do mercado e exercer a sua competência fiscal respeitante às atividades realizadas no seu território [v., por analogia, Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 33].

42

Por conseguinte, uma legislação nacional como a que prevê a obrigação de documentação fiscal, que assegura um controlo fiscal do sujeito passivo mais eficaz e preciso, e que visa impedir que os lucros gerados no Estado-Membro em causa sejam transferidos, sem serem tributados, para fora da jurisdição fiscal deste último através de transações que não sejam conformes com as condições do mercado é adequada para garantir a preservação da repartição da competência fiscal entre os Estados-Membros [v., por analogia, Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 34].

43

No entanto, é necessário que tal regulamentação não vá além do necessário para alcançar o objetivo prosseguido.

44

É esse o caso se for dada ao sujeito passivo a possibilidade, sem o sujeitar a exigências administrativas excessivas, de apresentar os elementos relevantes das operações comerciais transfronteiriças com as empresas com as quais têm relações de interdependência [v., por analogia, Acórdão de 8 de outubro de 2020, Impresa Pizzarotti (Empréstimo em condições anormais concedido a uma sociedade não residente), C-558/19, EU:C:2020:806, n.o 36].

45

No caso em apreço, resulta da própria redação da questão submetida que a obrigação de documentação fiscal diz respeito «[à] natureza e [ao] conteúdo» das relações comerciais mas também «[à]s bases económicas e jurídicas para um acordo sobre preços e outras condições comerciais». O § 90, n.o 3, do Código Tributário precisa, no entanto, que a natureza, o conteúdo e o alcance dos registos a efetuar devem ser precisados por um decreto de execução cujo teor não é especificado na decisão de reenvio, competindo ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o mesmo não é suscetível de gerar exigências administrativas excessivas para o sujeito passivo.

46

Por outro lado, resulta da decisão de reenvio que a autoridade fiscal só deve, regra geral, exigir a apresentação desses documentos para a realização de um controlo fiscal e que, em princípio, essa apresentação deve ter lugar no prazo de 60 dias, que pode, em casos específicos devidamente justificados, ser prorrogado.

47

Por conseguinte, sem prejuízo das verificações que incumbem a este respeito ao órgão jurisdicional de reenvio, não se afigura que essa obrigação de documentação fiscal vá além do que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido.

48

Daqui resulta que o artigo 49.o TFUE não se opõe, em princípio, a essa obrigação.

Quanto à sobretaxa fiscal

49

Quanto à sobretaxa fiscal, que sanciona a inobservância da obrigação de documentação fiscal, cabe recordar que, embora os regimes de sanções em matéria fiscal, na falta de harmonização ao nível da União, sejam da competência dos Estados-Membros, esses regimes não podem ter por efeito comprometer as liberdades previstas no Tratado FUE (v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2020, Google Ireland, C-482/18, EU:C:2020:141, n.o 37 e jurisprudência referida).

50

No caso em apreço, uma vez que a sobretaxa fiscal sanciona a inobservância da obrigação de documentação fiscal, que é suscetível de constituir uma restrição à liberdade de estabelecimento, é ela própria suscetível de constituir uma tal restrição.

51

Todavia, como foi recordado no n.o 35 do presente acórdão, essa restrição pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral e desde que, nesse caso, a sua aplicação seja adequada para garantir a realização do objetivo prosseguido e não vá além do que é necessário para o alcançar.

52

O Tribunal de Justiça declarou igualmente que a aplicação de sanções, incluindo de natureza penal, pode ser considerada necessária para garantir o respeito efetivo de uma regulamentação nacional, desde que a natureza e o montante da sanção aplicada sejam, em cada caso, proporcionados à gravidade da infração que essa sanção visa punir (Acórdão de 3 de março de 2020, Google Ireland, C-482/18, EU:C:2020:141, n.o 47 e jurisprudência referida).

53

Quanto à questão de saber se a sobretaxa fiscal é adequada para garantir o objetivo prosseguido pelo legislador nacional, há que salientar que a aplicação de uma sobretaxa de um montante suficientemente elevado parece suscetível de dissuadir o sujeito passivo submetido à obrigação de documentação fiscal de se subtrair à mesma e, assim, evitar que o Estado-Membro de tributação seja privado da possibilidade de controlar eficazmente as operações transfronteiriças entre as sociedades que apresentam uma relação de interdependência para efeitos de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros.

54

O argumento da recorrente no processo principal e da Comissão Europeia segundo o qual tal sobretaxa poderia não ser necessária se já existissem sanções aplicáveis, menos severas, em situações nacionais comparáveis parece, na realidade, ter mais em vista o caráter adequado do montante da sobretaxa fiscal. Em todo o caso, há que observar que a existência dessas sanções não resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe. Além disso, importa salientar que o facto de a legislação alemã prever sanções menos severas quando o sujeito passivo não respeita, em situações puramente internas, obrigações de cooperação no âmbito da luta contra a evasão fiscal e a concorrência fiscal desleal, é, a priori, irrelevante para apreciar o caráter necessário da sobretaxa fiscal que prossegue um objetivo diferente, a saber, preservar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros.

55

Quanto à proporcionalidade desta sobretaxa, há que observar que a aplicação de uma sanção igual a, pelo menos, 5 % e, no máximo, 10 % do montante adicional dos rendimentos resultante da correção efetuada pela Administração Fiscal em caso de violação da obrigação de documentação fiscal, sem limite do montante máximo absoluto, e com um montante mínimo de 5000 euros, incluindo no caso de a Administração Fiscal não ter finalmente constatado nenhum montante adicional de rendimento, não se afigura, por si só, suscetível de conduzir à aplicação de uma sanção de um montante desproporcionado.

56

Com efeito, como indica a Comissão, a fixação do montante dessa sanção em função de uma percentagem da tributação dos rendimentos de aplicação permite estabelecer uma correlação entre o montante da coima e a gravidade do incumprimento. O facto de se prever uma sanção mínima de 5000 euros permite, além disso, preservar o efeito dissuasivo da sobretaxa fiscal quando o seu montante mínimo é demasiado baixo, ao passo que a fixação de um limite de 10 % garante que o montante dessa sobretaxa não seja excessivo.

57

A circunstância de a sobretaxa fiscal não ser aplicável se a violação da obrigação de documentação fiscal for desculpável ou se a culpa for leve milita a favor desta análise.

58

Por último, a circunstância de a legislação alemã prever igualmente, em caso de violação da obrigação de declaração fiscal, a correção dos rendimentos de tributação do sujeito passivo, que se presumem, ilidivelmente, como estando subavaliados, não pode justificar uma interpretação diferente.

59

Efetivamente, essas regras têm uma natureza distinta da sobretaxa fiscal, uma vez que não visam sancionar a inobservância da obrigação de documentação fiscal, mas retificar o montante dos rendimentos tributáveis do sujeito passivo.

60

Por conseguinte, o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que também não se opõe a uma sobretaxa fiscal como a que está em causa no processo principal.

61

Tendo em conta o que precede, há que responder à questão submetida que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual, em primeiro lugar, o sujeito passivo está submetido a uma obrigação de documentação sobre a natureza e o conteúdo, bem como sobre as bases económicas e jurídicas do preço e das outras condições comerciais das suas operações comerciais transfronteiriças com pessoas com as quais mantém uma relação de interdependência, de capital ou outra, que permite a esse sujeito passivo ou a essas pessoas exercerem sobre o outro uma influência efetiva e que prevê, em segundo lugar, em caso de violação dessa obrigação, não só que esses rendimentos tributáveis no Estado-Membro em causa se presumem, ilidivelmente, superiores aos que foram declarados, uma vez que a Administração Fiscal pode proceder a uma estimativa em detrimento do sujeito passivo, mas também a imposição de uma sobretaxa de um montante equivalente a, pelo menos, 5 % e, no máximo, 10 % do montante adicional dos rendimentos calculados, com um montante mínimo de 5000 euros, salvo se o incumprimento desta obrigação for desculpável ou a culpa for leve.

Quanto às despesas

62

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual, em primeiro lugar, o sujeito passivo está submetido a uma obrigação de documentação sobre a natureza e o conteúdo, bem como sobre as bases económicas e jurídicas do preço e das outras condições comerciais das suas operações comerciais transfronteiriças com pessoas com as quais mantém uma relação de interdependência, de capital ou outra, que permite a esse sujeito passivo ou a essas pessoas exercerem sobre o outro uma influência efetiva e que prevê, em segundo lugar, em caso de violação dessa obrigação, não só que esses rendimentos tributáveis no Estado-Membro em causa se presumem, ilidivelmente, superiores aos que foram declarados, uma vez que a Administração Fiscal pode proceder a uma estimativa em detrimento do sujeito passivo, mas também a imposição de uma sobretaxa de um montante equivalente a, pelo menos, 5 % e, no máximo, 10 % do montante adicional dos rendimentos calculados, com um montante mínimo de 5000 euros, salvo se o incumprimento desta obrigação for desculpável ou a culpa for leve.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.