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Advertência jurídica importante

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61995C0028

Conclusões apensas do advogado-geral Jacobs apresentadas em 17 de setembro de 1996. - A. Leur-Bloem contra Inspecteur der Belastingdienst/Ondernemingen Amsterdam 2. - Pedido de decisão prejudicial: Gerechtshof Amsterdam - Países Baixos. - Processo C-28/95. - Bernd Giloy contra Hauptzollamt Frankfurt am Main-Ost. - Pedido de decisão prejudicial: Hessisches Finanzgericht Kassel - Alemanha. - Processo C-130/95. - Artigo 177. - Competência do Tribunal de Justiça - Legislação nacional que retoma disposições comunitárias.

Colectânea da Jurisprudência 1997 página I-04161


Conclusões do Advogado-Geral


1 No processo C-28/95, Leur-Bloem contra Inspecteur der Belastingdienst/Ondernemingen Amsterdam 2, o Gerechtshof te Amsterdam apresenta ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação da Directiva 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções entre sociedades de Estados-Membros diferentes (a seguir «directiva fiscal» ou «directiva») (1). No processo C-130/95, Bernd Giloy contra Hauptzollamt Frankfurt am Main-Ost, o Hessisches Finanzgericht, Kassel, apresenta um pedido de decisão prejudicial sobre o Regulamento (CEE) n._ 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (a seguir «código aduaneiro» ou simplesmente «código») (2). Nestas conclusões analisarei os dois processos porque ambos levantam a questão de saber se o Tribunal de Justiça tem competência para se pronunciar a título prejudicial, nos termos do artigo 177._ do Tratado CE, no contexto de litígios que não caem na alçada do direito comunitário, mas a que se aplica o direito comunitário por força de disposições do direito nacional.

Matéria de facto e questões dos órgãos jurisdicionais nacionais

Processo C-28/95, Leur-Bloem

2 O Gerechtshof te Amsterdam solicitou ao Tribunal de Justiça que proferisse, pela primeira vez, uma decisão prejudicial relativa à interpretação da directiva fiscal, em especial da expressão «permuta de acções» do artigo 2._, alínea d), da directiva.

3 A directiva tem por objectivo eliminar os obstáculos fiscais às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções intracomunitárias. Na maior parte dos sistemas fiscais, a cessão de participações e as entradas de activos entre empresas implicam mais-valias tributáveis para os sócios ou para a sociedade contribuidora. Num contexto interno, concede-se muitas vezes uma redução da carga fiscal quando a transacção se relaciona com operações de agrupamento ou de reestruturação. No entanto, a redução concedida varia entre os Estados-Membros e, antes da adopção da directiva, muitas vezes nem sequer se aplicava a transacções intracomunitárias.

4 O preâmbulo da directiva afirma que «as fusões, as cisões, as entradas de activos e as permutas de acções entre sociedades de Estados-Membros diferentes podem ser necessárias para criar, na Comunidade, condições análogas às de um mercado interno e assegurar deste modo a realização e o bom funcionamento do mercado comum;... essas operações não devem ser entravadas por restrições, desvantagens ou distorções especiais resultantes das disposições fiscais dos Estados-Membros;... importa, por conseguinte, instaurar, para essas operações, regras fiscais neutras relativamente à concorrência, a fim de permitir que as empresas se adaptem às exigências do mercado comum, aumentem a sua produtividade e reforcem a sua posição concorrencial no plano internacional» (3).

5 O preâmbulo prossegue explicando que esse objectivo só pode ser atingido através da introdução de um regime fiscal comum. Esse regime deve «evitar a tributação das fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções, salvaguardando os interesses financeiros do Estado da sociedade contribuidora ou adquirida» (4).

6 Estes dois objectivos atingem-se basicamente pedindo aos Estados-Membros que adiem a tributação das mais-valias resultantes da cessão de activos ou de acções verificada nessas transacções, ao mesmo tempo que lhes permite cobrar o imposto adiado no momento da cessão posterior dos activos pela sociedade beneficiária ou da cessão pelos sócios das novas acções recebidas em troca.

7 O artigo 11._ da directiva permite que os Estados-Membros não apliquem a directiva sempre que o principal objectivo de uma transacção ou um dos seus principais objectivos seja a fraude ou a evasão fiscais.

8 A transacção em causa no processo principal não envolve sociedades de diferentes Estados-Membros, sendo meramente interna aos Países Baixos. A. Leur-Bloem é sócia única e directora da Phoenix Uitzendorganisatie BV (a seguir «Uitzendorganisatie») e da Phoenix Industrial BV (a seguir «Industrial»). Ambas as sociedades têm autorização para explorar empresas de trabalho temporário, tendo estas autorizações valor comercial. A. Leur-Bloem pretende adquirir as quotas de uma sociedade por quotas existente, Phoenix Holding BV (a seguir «Holding»), que tem um capital social subscrito e liberado de 35 000 HFL. Em 31 de Dezembro de 1991, a sociedade não possuía activos e tinha dívidas a curto prazo num montante de 2 779 HFL; em 31 de Dezembro de 1992, não tinha activos nem dívidas. A. Leur-Bloem pretende permutar as acções que possui na Uitzendorganisatie e na Industrial por quotas da Holding, que assim se tornará a única proprietária da Uitzendorganisatie e da Industrial.

9 No processo principal, A. Leur-Bloem contesta um parecer prévio das autoridades fiscais neerlandesas relativo à transacção. A. Leur-Bloem considera que a permuta de partes proposta constitui uma fusão de participações susceptível de beneficiar de uma redução de impostos nos termos do artigo 14._ b, n._ 1, da lei neerlandesa de 1964 relativa ao imposto sobre rendimentos. O artigo 14._ b, n._ 1, prevê que se excluam dos lucros tributáveis as mais-valias decorrentes da cessão de acções enquanto parte de uma fusão por permuta de acções. O artigo 14._ b, n._ 2, estabelece que uma fusão por permuta de acções inclui a situação na qual:

«a) Uma sociedade estabelecida nos Países Baixos adquire, mediante entrega das suas próprias acções ou títulos participativos, com eventual pagamento de uma compensação, algumas acções de outra sociedade estabelecida nos Países Baixos que lhe permitem exercer mais de metade dos direitos de voto nesta última sociedade, a fim de reunir de modo duradouro, de um ponto de vista financeiro e económico, a empresa dessa sociedade e a de outra numa mesma entidade.»

10 O artigo 14._ b, n._ 2, alínea b), contém uma definição idêntica de fusões por permuta de acções e que visa as operações intracomunitárias. O artigo 14._ b, n._ 2, alínea c), contém uma definição semelhante, estabelecendo uma exigência mais rigorosa no que toca aos direitos de voto («todos ou quase todos os direitos de voto»), para fusões por permuta de acções que envolvam uma ou mais sociedades estabelecidas fora da Comunidade.

11 O artigo 14._ b, n._ 7, permite que o ministro autorize as autoridades fiscais a aplicarem o disposto no artigo 14._ b por analogia, quando uma das duas sociedades (ou ambas) mencionada no artigo 14._ b, n._ 2, alíneas a) ou b), não explora (ou não exploram) uma empresa.

12 As autoridades fiscais consideram que a transacção em causa não preenche as exigências do artigo 14._ b, n._ 2, alínea a), porque a aquisição das acções das futuras filiais pela futura sociedade holding não visa reunir as filiais numa entidade maior de um ponto de vista financeiro e económico. Essa unidade já existe porque ambas as sociedades têm o mesmo director e único accionista.

13 Sendo puramente interna aos Países Baixos, a transacção em questão no processo principal não é abrangida pela directiva, que se aplica apenas a «permuta de acções que digam respeito a sociedades de dois ou mais Estados-Membros»: v. artigo 1._ da directiva. No entanto, o órgão jurisdicional nacional considera que o legislador neerlandês pretendeu que fosse dada a mesma interpretação ao artigo 14._ b, n._ 2, alíneas a) e b), no que se refere, respectivamente, às fusões de participações internas e intracomunitárias. Chega a esta conclusão baseando-se no teor literal dessas disposições, que é o mesmo para as transacções domésticas e intracomunitárias, e na sua história legislativa, em especial no segundo período do ponto 3.5 do memorando explicativo do secretário de Estado das Finanças (Kamerstukken II, 1991-1992, 22 338, n._ 3). Aí, o secretário de Estado, após explicar as alterações a efectuar na legislação neerlandesa para que respeite a directiva, afirma que, apesar de a lei comunitária não exigir formalmente que as fusões nacionais de participações beneficiem das mesmas condições (vantajosas) que as fusões intracomunitárias, é no entanto desejável, na perspectiva da realização do mercado interno, que o regime das duas categorias de transacções seja o mesmo.

14 O órgão jurisdicional nacional conclui que a questão de saber se no presente caso existe uma fusão por permuta de participações, na acepção do artigo 14._ b, n._ 2, alínea a), da lei, deve ser examinada na perspectiva das disposições e do alcance da directiva. Assim, apresenta as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

«1) Podem ser submetidas à apreciação do Tribunal de Justiça questões de interpretação das disposições e do alcance de uma directiva do Conselho das Comunidades Europeias, mesmo que esta directiva não se aplique directamente à situação concreta submetida ao órgão jurisdicional de reenvio, mas quando o legislador nacional pretende tratar esta situação concreta do mesmo modo que uma situação a que a directiva diz respeito?

Em caso de resposta afirmativa à questão formulada no ponto 1:

2) a) Existe permuta de acções na acepção do artigo 2._, parte inicial e alínea d), da Directiva 90/434/CEE do Conselho das Comunidades Europeias, de 23 de Julho de 1990 (a seguir `directiva'), se a própria sociedade adquirente, na acepção da alínea h) do mesmo artigo, não explora uma empresa?

b) O facto de ser a mesma pessoa singular que, antes da permuta, era o único sócio e o director das sociedades adquiridas e, na sequência da permuta, se tornará o director e o único sócio da sociedade adquirente constitui um obstáculo a uma permuta de acções na referida acepção?

c) Só existe permuta de acções na referida acepção se a sua finalidade for a de reunir duradouramente, de um ponto de vista financeiro e económico, numa entidade, a empresa da sociedade adquirente e a de outra sociedade?

d) Só existe permuta de acções na referida acepção se a sua finalidade for a de reunir duradouramente, de um ponto de vista financeiro e económico, numa entidade, as empresas de duas ou mais sociedades adquiridas?

e) Constitui uma razão económica válida para a permuta de acções, nos termos do artigo 11._ da directiva, o facto de a referida permuta se efectuar para realizar uma compensação fiscal horizontal de perdas entre as sociedades que formam uma entidade fiscal na acepção do artigo 15._ da Wet op de vennootschapsbelasting 1969?»

15 Note-se que o Governo neerlandês contesta as conclusões do órgão jurisdicional nacional de que as alíneas a) e b) do artigo 14._ b, n._ 2, da lei de 1964 devem ser interpretadas da mesma forma. Considera que o órgão jurisdicional nacional atribui demasiada importância à afirmação do secretário de Estado.

Processo C-130/95, Giloy

16 Neste processo o Hessisches Finanzgericht solicita uma decisão a título prejudicial do Tribunal de Justiça sobre a interpretação do artigo 244._ do código aduaneiro, que prevê o seguinte:

«A interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão contestada.

Todavia, as autoridades aduaneiras suspenderão, total ou parcialmente, a execução dessa decisão sempre que tenham motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão contestada com a legislação aduaneira ou que seja de recear um prejuízo irreparável para o interessado.

Quando a decisão contestada der origem à aplicação de direitos de importação ou de direitos de exportação, a suspensão da execução dessa decisão fica sujeita à existência ou à constituição de uma garantia. Contudo, essa garantia pode não ser exigida quando possa suscitar, por força da situação do devedor, graves dificuldades de natureza económica ou social.»

17 O processo submetido ao órgão jurisdicional nacional não se refere, no entanto, a direitos de importação, mas ao IVA, ao qual o código se aplica por força de disposições da lei alemã. Em 28 de Março de 1990, as autoridades aduaneiras alemãs adoptaram uma decisão exigindo a B. Giloy que pagasse 293 870,76 DM de IVA sobre bens importados. O recurso de anulação dessa decisão interposto por B. Giloy está ainda pendente.

18 Por despacho de 16 de Agosto de 1994, ordenou-se a penhora dos rendimentos de trabalho de B. Giloy. Depois de ter tomado conhecimento do montante da dívida, a sua entidade patronal rescindiu o contrato de trabalho por carta de 31 de Agosto de 1994. Desde então tem recebido auxílio da previdência social. B. Giloy solicitou ao órgão jurisdicional de reenvio a suspensão da execução da decisão de 28 de Março de 1990. Referindo-se ao seu processo principal, alega que existem boas razões para acreditar que a decisão é ilegal. Também alega que, independentemente do mérito do seu recurso, a execução da decisão deve ser suspensa porque pode causar, e já causou, prejuízos irreparáveis: as medidas adoptadas para cobrar a dívida através da penhora do seu salário resultaram no seu despedimento, obrigando-o a viver da previdência social. Afirma que a sua anterior entidade patronal lhe assegurou que voltaria a empregá-lo quando fosse certo que a decisão impugnada não seria executada. Alega ainda que, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 244._ do código, não lhe pode ser exigida a constituição de uma garantia, pois a sua situação económica não lhe permite prestar essa garantia.

19 As autoridades alemãs respondem que não há razões para crer que a decisão impugnada seja ilegal. Além disto, não existe um risco de prejuízos irreparáveis, pois resultou das investigações efectuadas até ao momento que quaisquer medidas para cobrar a dívida seriam infrutíferas. Só poderão ser tomadas novas medidas quando B. Giloy recomeçar a trabalhar e apenas dentro de limites estritos, dadas as disposições alemãs relativas aos bens impenhoráveis; consequentemente, mesmo que recomeçasse a trabalhar não sofreria prejuízos irreparáveis.

20 No sentido de obter um auxílio com vista à resolução do litígio, o órgão jurisdicional nacional apresentou as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

«1) As duas condições indicadas no segundo parágrafo do artigo 244._ do Regulamento (CEE) n._ 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário,

- dúvidas fundamentadas sobre a conformidade

ou

- prejuízo irreparável para o interessado,

são inteiramente independentes, pelo que a execução da decisão também deve ser suspensa caso não existam quaisquer dúvidas sobre a conformidade da decisão de liquidação em relação à qual é pedida a suspensão da execução, mas existe, contudo, a possibilidade de verificação de prejuízo irreparável para o interessado?

Caso a resposta à primeira questão seja afirmativa:

2) A presença do pressuposto indicado na segunda alternativa afasta necessariamente a exigência de constituição de garantia, ou são ainda necessárias para o efeito condições adicionais - e quais?

3) A ameaça de perda do lugar de trabalho - eventualmente já verificada, devido à execução da dívida decorrente do imposto - constitui uma `grave dificuldade de natureza económica ou social', ainda que as leis nacionais assegurem um mínimo de existência através, por exemplo, da previdência social?

4) A garantia a prestar em virtude da suspensão de execução deve ser fixada sempre no montante do imposto em dívida, ou é possível limitá-la a uma parte daquele valor, atendendo à situação económica global do requerente?»

21 Estas questões são apresentadas partindo do princípio de que o artigo 244._ do código aduaneiro se aplica à dívida de IVA em causa no processo principal. No entanto, o órgão jurisdicional nacional presume incorrectamente que o IVA na importação é um direito de importação na acepção do código. Nos termos do artigo 4._, n._ 10, do código, a expressão «direitos de importação» limita-se aos direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente, aos direitos niveladores agrícolas e a outras imposições à importação instituídas no âmbito da Política Agrícola Comum ou de outras disposições agrícolas. Não inclui o IVA.

22 Como já se afirmou, contudo, o artigo 244._ do código tornou-se aplicável ao presente caso em virtude de disposições do direito alemão. A norma relevante é o § 69 da Finanzgerichtsordnung. O § 69, n._ 2, enuncia as condições em que as autoridades fiscais podem suspender a execução, enquanto o § 69, n._ 3, afirma que essas condições devem ser aplicadas mutatis mutandis pelos tribunais financeiros. Nas observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça, a Comissão salienta que a redacção do § 69, n._ 2, que entrou em vigor antes do código, difere ligeiramente da do artigo 244._ do código e devia ter sido alterada para reflectir os termos desta disposição; acrescenta no entanto que a jurisprudência e a doutrina alemãs reconhecem que as autoridades aduaneiras estão obrigadas a aplicar o artigo 244._ do código. Nas suas respostas às duas perguntas escritas colocadas pelo Tribunal de Justiça, o Governo alemão observa que o § 69, n._ 3, da Finanzgerichtsordnung remete, para efeitos dos trâmites processuais nos tribunais financeiros, para as normas aplicáveis às autoridades aduaneiras; o § 21, n._ 2, da lei alemã relativa ao imposto sobre o volume de negócios enuncia uma regra geral no sentido de que as disposições sobre os direitos aduaneiros se aplicam mutatis mutandis ao IVA sobre as importações.

23 Ambos os casos levantam a questão de saber se o Tribunal de Justiça é competente, nos termos do artigo 177._ do Tratado, para responder às questões apresentadas por um órgão jurisdicional nacional relativas à interpretação do direito comunitário, quando essas questões surgem no contexto de um litígio a que não se aplica o direito comunitário enquanto tal, mas que foi transposto para um contexto não comunitário por uma lei nacional. Esta questão já surgiu em casos anteriores e pode ser útil recordar brevemente os anteriores acórdãos do Tribunal de Justiça.

Jurisprudência relevante

24 A questão foi analisada, pela primeira vez, pelo Tribunal de Justiça, em 1985, no processo Thomasdünger (5), tendo o Tribunal de Justiça sido convidado a pronunciar-se a título prejudicial sobre a interpretação da pauta aduaneira comum num processo relativo à importação de bens de França para a Alemanha, situação que não era abrangida pela pauta. Nas suas conclusões, o advogado-geral G. F. Mancini explicou que o interesse de Thomasdünger em obter um acórdão sobre a pauta se devia ao facto de algumas entidades alemãs, como os caminhos-de-ferro, utilizarem a classificação pautal na determinação dos preços. Concluiu que o Tribunal de Justiça não devia responder às questões do órgão jurisdicional nacional porque «o Tribunal de Justiça estaria aparentemente a interpretar as disposições mencionadas nessas questões, mas, de facto, expressaria uma opinião sobre as normas internas que integraram essas disposições e que, desse modo, perderam a sua força obrigatória».

25 No entanto, o Tribunal de Justiça respondeu a esta objecção com uma simples remissão para o princípio bem conhecido de que, «excepto em casos excepcionais em que é manifesto que as disposições de direito comunitário que o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar não se aplicam aos factos do processo principal, o Tribunal de Justiça deixa ao órgão jurisdicional nacional a competência para determinar, à luz dos factos de cada caso, se é necessário uma decisão prejudicial para decidir do litígio pendente».

26 O Tribunal de Justiça abordou mais directamente a questão, em 1990, nos processos Dzodzi (6) e Gmurzynska-Bscher (7). M. Dzodzi, de nacionalidade togolesa, casou com um nacional belga pouco antes de este falecer. Após o falecimento do seu marido, M. Dzodzi solicitou uma autorização de residência na Bélgica, na sua qualidade de cônjuge de um nacional de um Estado-Membro da Comunidade. A situação era claramente interna, não existindo qualquer elemento de ligação com o direito comunitário. No entanto, nos termos de uma norma de direito belga, o cônjuge estrangeiro de um nacional belga deveria ser tratado como se fosse um cidadão comunitário. Afigura-se que o órgão jurisdicional nacional interpretou esta norma como alargando aos estrangeiros casados com nacionais belgas o benefício de normas comunitárias aplicáveis aos cônjuges de nacionais de outros Estados-Membros residentes na Bélgica. Deste modo, e para o ajudar na resolução do litígio, o órgão jurisdicional nacional perguntou se M. Dzodzi teria o direito de residir e de permanecer na Bélgica se o seu marido fosse um nacional de um Estado-Membro que não a Bélgica.

27 Os factos no processo Gmurzynska-Bscher não eram diferentes dos no processo Giloy. As normas alemãs relativas ao IVA remetiam para a nomenclatura da pauta aduaneira comum para efeitos de isenções e reduções fiscais. K. Gmurzynska-Bscher, que pretendia importar uma obra de arte dos Países Baixos para a Alemanha, solicitou uma decisão oficial de classificação pautal para determinar a sua sujeição ao IVA.

28 O advogado-geral M. Darmon, seguindo a perspectiva do advogado-geral G. F. Mancini no processo Thomasdünger, concluiu que em ambos os casos o Tribunal de Justiça não era competente para responder às questões do órgão jurisdicional nacional (8). Considerou que o objectivo do processo de decisão prejudicial, nomeadamente o de garantir a uniformidade dos efeitos do direito comunitário, só se referia ao âmbito de aplicação do direito comunitário, tal como definido por ele mesmo, e só por ele; uma remissão para o direito comunitário não pode alargar o âmbito de aplicação do direito comunitário e, deste modo, da competência do Tribunal de Justiça. Seria inaceitável que o papel do Tribunal de Justiça fosse reduzido ao de emitir pareceres ou respostas a consultas do tipo das que um jurisconsulto qualificado é por vezes levado a fornecer ao juiz do foro quando este tem de aplicar a lei estrangeira.

29 No entanto, o Tribunal de Justiça afastou-se, pela segunda vez, da opinião do advogado-geral e, tanto no processo Dzodzi como no processo Gmurzynska-Bscher, respondeu às questões dos órgãos jurisdicionais nacionais. No processo Dzodzi, o Tribunal de Justiça afirmou:

«Não resulta nem dos termos do artigo 177._ nem do objecto do processo instituído por esse artigo que os autores do Tratado tenham entendido excluir da competência do Tribunal de Justiça os reenvios prejudiciais que se referem a uma disposição comunitária no caso particular em que o direito nacional de um Estado-Membro remete para o conteúdo dessa disposição para determinar as regras aplicáveis a uma situação puramente interna desse Estado.

Pelo contrário, existe um interesse manifesto para a ordem jurídica comunitária em que, para evitar divergências de interpretação futuras, qualquer disposição de direito comunitário seja interpretada de forma uniforme, quaisquer que sejam as condições em que se deve aplicar» (9).

30 O Tribunal de Justiça salientou que o seu papel se limitava a deduzir o significado das normas comunitárias a partir da sua letra e do seu espírito, competindo aos órgãos jurisdicionais nacionais, e só a estes, aplicar as normas comunitárias interpretadas deste modo à luz das circunstâncias factuais e legais do caso. Em princípio, o Tribunal de Justiça não era obrigado a atender às circunstâncias que levam os órgãos jurisdicionais nacionais a submeter-lhe questões e a pretender aplicar as disposições comunitárias cuja interpretação é solicitada. O Tribunal de Justiça acrescentou:

«Só seria diferente na hipótese de se revelar que o processo do artigo 177._ foi desviado do seu objectivo e visa, na realidade, conduzir o Tribunal de Justiça a decidir através de um litígio inventado, ou na hipótese de ser manifesto que a disposição de direito comunitário submetida à interpretação do Tribunal de Justiça não pode aplicar-se.

No caso de o direito comunitário ser aplicável em virtude de disposições do direito nacional, compete apenas ao órgão jurisdicional nacional apreciar o alcance exacto dessa remissão para o direito comunitário. Se considerar que o conteúdo de uma disposição do direito comunitário é aplicável, em virtude dessa remissão, à situação puramente interna que está na origem do litígio que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional nacional tem fundada razão para submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial nas condições previstas pelas disposições do artigo 177._ do Tratado, tal como vêm sendo interpretadas pela jurisprudência do Tribunal.

A competência do Tribunal é, todavia, limitada apenas à análise das disposições do direito comunitário. Não pode, na resposta ao órgão jurisdicional nacional, considerar a economia geral das disposições do direito interno que, ao mesmo tempo que remetem para o direito comunitário, determinam a amplitude dessa remissão. A tomada em consideração dos limites que o legislador nacional estabeleceu para aplicação do direito comunitário a situações meramente internas, às quais o direito comunitário só é aplicável por intermédio da lei nacional, releva do direito interno e, por conseguinte, é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro» (10).

31 Pouco tempo depois dos acórdãos Dzodzi e Gmurzynska-Bscher, o Tribunal decidiu no mesmo sentido no processo Tomatis e Fulchiron (11), em que o órgão jurisdicional nacional solicitou uma decisão sobre a pauta aduaneira comum para determinar a taxa de IVA aplicável a certos bens nos termos da lei nacional. Os princípios dos acórdãos Dzodzi e Gmurzynska-Bscher foram também aplicados, em circunstâncias bastante diferentes, nos processos Fournier (12) e Federconsorzi (13). No processo Fournier, o Tribunal de Justiça foi chamado a interpretar uma directiva comunitária que - facto pouco usual - fora aplicada por força de acordos de direito privado. O órgão jurisdicional nacional deveria decidir qual era o serviço nacional de seguros responsável perante os Fournier relativamente a um acidente de viação ocorrido em França. O artigo 2._, n._ 2, da Directiva 72/166/CEE do Conselho (14) previa que os seis serviços nacionais de seguros celebrassem um acordo nos termos do qual cada serviço se responsabilizava pela regularização, nas condições fixadas pela respectiva legislação nacional, dos sinistros ocorridos no seu território e provocados pela circulação de veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território de um outro Estado-Membro. A maior parte das disposições da directiva só produzia efeitos após a celebração do acordo. O órgão jurisdicional nacional solicitou uma decisão relativa ao significado da expressão «território onde o veículo tem o seu estacionamento habitual» do artigo 1._, n._ 4, da directiva, para o auxiliar a interpretar esta expressão no acordo celebrado entre os serviços.

32 Nas conclusões que apresentei nesse processo, sugeri que o Tribunal de Justiça se considerasse competente de acordo com o princípio enunciado no processo Dzodzi. Apesar de esse princípio não se aplicar necessariamente a todos os casos cuja resolução depende da interpretação dos termos de um contrato privado que incorporou conceitos do direito comunitário, o acordo em questão nesse processo era um elemento essencial no sistema instituído pela Directiva 72/166. A celebração do acordo estava não apenas prevista na directiva mas era também uma condição para a entrada em vigor de muitas das suas disposições (15).

33 No seu acórdão, o Tribunal de Justiça respondeu à questão do órgão jurisdicional nacional, sem no entanto se referir expressamente à questão de competência. Contudo, em resposta a um argumento relativo à interpretação da directiva, o Tribunal salientou que «Incumbe... exclusivamente, ao órgão jurisdicional de reenvio interpretar o acordo entre gabinetes nacionais, dar aos termos neste utilizados o sentido que considera adequado, sem estar limitado, neste aspecto, pelo significado que deve ser atribuído a idêntica expressão constante da directiva» (16).

34 No processo Federconsorzi, um tribunal italiano solicitou uma decisão sobre a interpretação de algumas disposições de regulamentos do Conselho e da Comissão relativos à agricultura, no contexto de um litígio entre a agência italiana de intervenção e a Federconsorzi, adjudicatária das operações de intervenção no sector do azeite, quanto à responsabilidade da Federconsorzi, perante a agência, na sequência do furto de determinada quantidade de azeite de um dos armazéns da Federconsorzi. O contrato entre as partes previa que a adjudicatária suportasse «as perdas devidas a factos pelos quais seja responsável até ao limite do valor fixado pela legislação comunitária em vigor».

35 O Tribunal de Justiça, seguindo as conclusões do advogado-geral W. Van Gerven, afirmou que se aplicava o princípio enunciado no processo Dzodzi; a disposição contratual em causa remetia para o conteúdo das normas comunitárias para determinar o limite da responsabilidade de uma das partes.

36 No mais recente processo sobre esta questão, Kleinwort Benson (17), um processo submetido ao Tribunal de Justiça não ao abrigo do artigo 177._ do Tratado mas do Protocolo relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de Bruxelas (18), o Tribunal de Justiça interpretou de forma mais restrita os limites da sua competência. A Court of Appeal inglesa solicitou uma interpretação da expressão «em matéria contratual», constante do artigo 5._, ponto 1, da convenção, e da expressão «em matéria extracontratual», constante do artigo 5._, ponto 3. A questão da Court of Appeal visava auxiliá-la a aplicar não a própria convenção mas o anexo 4 da Civil Jurisdiction and Judgements Act 1982, que contém normas inspiradas na convenção e que prevê um sistema de repartição de competências entre os tribunais de diferentes partes do Reino Unido. No entanto, as disposições do anexo 4 nem sempre eram idênticas às da versão da convenção em vigor nesse momento. Isto verificava-se no artigo 5._, ponto 3, do anexo 4 (apesar de incluir a expressão «em matéria extracontratual» que surge no artigo 5._, ponto 3, da convenção, cuja interpretação era solicitada). A Section 47(1) e (3) do Act previam a possibilidade de se alterar o anexo 4, incluindo «alterações destinadas a criar divergências entre as disposições do anexo 4... e as disposições correspondentes do título II da convenção de 1968». A lei também previa diferentes normas relativas à interpretação da convenção e do anexo 4. A Section 3(1) da lei enunciava que «qualquer questão relativa ao sentido ou ao efeito de qualquer disposição da convenção, se não for submetida ao Tribunal de Justiça nos termos do protocolo de 1971, deve ser decidida em conformidade com os princípios consagrados pelo Tribunal de Justiça e com as suas decisões». Ao invés, a Section 16(3)(a) do Act previa que, ao analisar qualquer questão relacionada com o sentido ou com o efeito de qualquer disposição incluída no anexo 4, «devem ser tomados em consideração qualquer princípio relevante consagrado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativo ao título II da convenção de 1968 e qualquer decisão relevante daquele Tribunal relativa ao conteúdo ou aos efeitos de qualquer norma daquele título».

37 Na sequência de uma análise pormenorizada das questões, o advogado-geral G. Tesauro considerou que o Tribunal de Justiça não tinha competência para responder às questões apresentadas pela Court of Appeal relativas à interpretação da convenção e, sobretudo, propôs que o Tribunal de Justiça reconsiderasse a linha jurisprudencial criada com o processo Dzodzi. Nas presentes conclusões, mencionarei directa ou indirectamente alguns dos pontos levantados pelo advogado-geral G. Tesauro.

38 Apesar de não ter seguido a opinião do advogado-geral no sentido de reconsiderar a sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça considerou que não era competente para responder às questões apresentadas pela Court of Appeal. O Tribunal de Justiça afirmou que a legislação do Reino Unido não incluía uma remissão directa e incondicional para as disposições do direito comunitário no sentido de as incorporar no ordenamento jurídico interno, limitando-se a tomá-las, enquanto modelo, sem reproduzir integralmente os seus termos. Além disso, tinha-se adoptado uma disposição que previa expressamente alterações destinadas a criar divergências entre as disposições internas e as disposições correspondentes da convenção. Assim, a lei do Estado contratante em causa não declarou aplicáveis as disposições da convenção, enquanto tais, a casos não abrangidos pela convenção.

39 O Act de 1982 não exigia que os tribunais do Reino Unido decidissem os litígios, aplicando absoluta e incondicionalmente a interpretação da convenção feita pelo Tribunal de Justiça; nos casos em que a convenção não era aplicável, os tribunais britânicos eram livres para decidir se uma interpretação do Tribunal de Justiça era igualmente válida para efeitos da lei nacional inspirada na convenção. Consequentemente, a interpretação do Tribunal de Justiça não era obrigatória para os tribunais do Reino Unido. Referindo-se ao parecer 1/91 (19), o Tribunal de Justiça observou que era impossível admitir que as respostas dadas pelo Tribunal de Justiça aos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes tivessem um valor meramente consultivo, sem efeitos obrigatórios; isto podia desnaturar a função do Tribunal de Justiça tal como foi concebida pelo protocolo de 1971, concretamente, a de um tribunal cujas decisões são vinculativas.

Os argumentos apresentados nos casos em apreço

A. Leur-Bloem

40 A. Leur-Bloem, os Governos alemão e neerlandês e a Comissão apresentaram observações escritas neste processo.

41 A. Leur-Bloem considera que o pedido é admissível. Uma vez que a directiva tem por objectivo «criar, na Comunidade, condições análogas às de um mercado interno», não é possível, segundo A. Leur-Bloem, dar um tratamento menos favorável às transacções internas do que às transacções intracomunitárias. A legislação neerlandesa aceita o princípio de que ambas as categorias de transacções devem ser tratadas de forma igual.

42 Os Governos alemão e neerlandês e a Comissão consideraram que o Tribunal de Justiça não tem competência para responder às questões. O Governo neerlandês alega que, apesar de as disposições nacionais em questão também abrangerem transacções internas, o memorando explicativo do secretário de Estado indica apenas que se considerou desejável que as transacções internas beneficiassem do mesmo tratamento que as transacções intracomunitárias. Nem esse memorando nem a própria disposição prevêem explicitamente a aplicação das disposições da directiva às transacções internas. Considera assim que o Tribunal se deve declarar incompetente pelas razões que apresentou no processo Kleinwort Benson.

43 A Comissão considera que, sendo embora desejável que os Estados-Membros elaborem as suas disposições nacionais de acordo com o direito comunitário, garantindo assim uma harmonização espontânea, isto não significa que as normas nacionais estejam sujeitas às regras institucionais do Tratado, nomeadamente ao artigo 177._, ainda que a interpretação do conceito de permuta de acções seja necessária para a resolução do litígio. A Comissão salienta que o artigo 14._ b, n._ 2, da lei não se refere à directiva, nem a torna aplicável, antes se limitando a reproduzir - e nem sequer integralmente - os termos do artigo 2._, alínea d). Nada impede o legislador neerlandês de alterar a sua legislação. Ao contrário da legislação em causa no processo Kleinwort Benson, a legislação neerlandesa nem sequer exige que o órgão jurisdicional nacional tenha em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

44 A Comissão considera que o argumento em contrário, baseado na necessidade de garantir uma aplicação uniforme do direito comunitário, não é convincente nem em teoria nem na prática. Os limites da competência do Tribunal de Justiça coincidem necessariamente com os limites do direito comunitário. Existem objecções institucionais sérias à perspectiva contrária. A competência do Tribunal de Justiça seria determinada por uma opção legislativa de um Estado-Membro. Além disto, uma vez que a legislação dos Países Baixos utiliza a mesma definição de permuta de acções para transacções que envolvem sociedades estabelecidas fora da Comunidade, a competência do Tribunal de Justiça alargar-se-ia a permutas de acções envolvendo uma ou mais sociedades de Estados não membros. A Comissão acrescenta, por fim, que só muito dificilmente poderia instaurar um processo aos Países Baixos nos termos do artigo 169._ do Tratado, em virtude, apenas, de uma opção do legislador neerlandês.

B. Giloy

45 Neste caso, apenas a Comissão apresentou observações escritas. Adoptando uma posição contrária à que tomou no processo Leur-Bloem, a Comissão considera que, não obstante o artigo 244._ do Código Aduaneiro não ser expressamente referido na legislação alemã, é claro que este artigo se aplica na ordem jurídica alemã. A norma comunitária foi, portanto, absoluta e incondicionalmente incorporada na legislação alemã, como o exigiu o Tribunal de Justiça no acórdão Kleinwort Benson.

46 Nas suas respostas às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, o Governo alemão também adoptou uma posição diferente da que tomou no processo Leur-Bloem. Distingue a legislação alemã da legislação neerlandesa em causa no processo Leur-Bloem, pelo facto de o código aduaneiro ser uma componente dinâmica da lei alemã por força do § 21, n._ 2, da lei alemã relativa ao volume de negócios. O legislador alemão optou pela aplicação do código e reconheceu a competência do Tribunal de Justiça, uma vez que o IVA na importação e os direitos aduaneiros são muitas vezes cobrados de acordo com um único processo e através de uma única decisão. É portanto essencial que as disposições relativas aos direitos aduaneiros e ao IVA sejam interpretadas da mesma forma.

Análise da questão jurisdicional

O alcance do direito comunitário e objectivos do artigo 177._

47 Poderá parecer, à primeira vista, surpreendente que o Tribunal de Justiça, cuja função, nos termos do Tratado, é garantir «o respeito do direito na interpretação e aplicação do... Tratado» (artigo 164._), se tenha reconhecido competente em casos onde não se aplica o direito comunitário. Como outros sistemas jurídicos, o direito comunitário define o seu próprio âmbito de aplicação, e afigura-se razoável pensar que o direito comunitário, incluindo o artigo 177._, se deve aplicar apenas nesse domínio. O objectivo do artigo 177._, dentro do sistema do Tratado, é garantir a aplicação uniforme do direito comunitário em todos os Estados-Membros. Não é muito claro como é que o Tribunal de Justiça prossegue este objectivo ao conhecer de litígios em que uma norma comunitária é utilizada por um Estado-Membro e transposta para um contexto não comunitário. Nesses litígios, as normas que os órgãos jurisdicionais nacionais devem aplicar são normas de direito nacional e não de direito comunitário; não existe portanto uma ameaça imediata à aplicação uniforme do direito comunitário.

48 No processo Dzodzi, o Tribunal pretendeu ultrapassar esta dificuldade, argumentando que «existe um interesse manifesto para a ordem jurídica comunitária em que, para evitar divergências de interpretação futuras, qualquer disposição de direito comunitário seja interpretada de forma uniforme, quaisquer que sejam as condições em que se deve aplicar» (20). Por outras palavras, decidindo em litígios que surgem num contexto não comunitário, o Tribunal de Justiça pode evitar que, no futuro, o direito comunitário seja incorrectamente aplicado. À primeira vista, este argumento é relevante. Se um órgão jurisdicional nacional considerar necessário interpretar uma norma comunitária para tomar uma decisão, esforçar-se-á por ser ele próprio a interpretá-la, se não houver uma orientação autorizada do Tribunal de Justiça. Se se fizer uma interpretação incorrecta da norma comunitária, pode comprometer-se indirectamente a própria aplicação do direito comunitário: apesar de ser efectuada num contexto não comunitário, a interpretação pode ser seguida no Estado-Membro em causa por outros tribunais e pelas autoridades administrativas sempre que a norma em questão se aplicar num contexto comunitário.

49 Mas este argumento não é, em definitivo, convincente. Nessas circunstâncias, a ameaça à aplicação correcta do direito comunitário no Estado em causa seria, no máximo, apenas indirecta e temporária. É evidente que qualquer interpretação de uma norma comunitária feita por um órgão jurisdicional nacional não se basearia numa decisão do Tribunal de Justiça e que, mal essa interpretação fosse aplicada no contexto comunitário, poderia ser posta em causa. Além disto, a preocupação do Tribunal de Justiça com esta remota ameaça à aplicação uniforme do direito comunitário é de difícil conciliação com o facto de o artigo 177._ prever que o direito comunitário deve ser interpretado e aplicado em primeiro lugar pelos órgãos jurisdicionais nacionais. O direito comunitário é aplicado quotidianamente pelos órgãos jurisdicionais nacionais; a obrigação de reenvio prejudicial existe apenas num número relativamente restrito de casos pendentes em tribunais de última instância.

50 Ademais, não é fácil perceber de que forma qualquer norma jurídica pode ser interpretada fora do seu contexto ou, para utilizar uma frase do processo Dzodzi, «quaisquer que sejam as condições em que se deve aplicar». O acórdão do Tribunal de Justiça no processo Dzodzi pode talvez ser parcialmente explicado pela abordagem tolerante que o Tribunal de Justiça adoptou nessa altura face aos pedidos dos órgãos jurisdicionais nacionais em geral. O Tribunal, só muito excepcionalmente, se interrogava sobre a necessidade da decisão solicitada pelo órgão jurisdicional nacional, em especial, quando se afigurava que a decisão havia sido incorrectamente solicitada no caso de um litígio inventado ou que a disposição cuja interpretação era solicitada era manifestamente inaplicável ao litígio.

51 No entanto, o acórdão Dzodzi já não reflecte a posição do Tribunal de Justiça. Numa série de casos recentes, iniciada com o acórdão de 1993 no processo Telemarsicabruzzo (21), o Tribunal de Justiça acentuou a necessidade de proferir um acórdão no contexto da situação factual do caso e foi assim mais firme ao solicitar aos órgãos jurisdicionais nacionais que especificassem claramente o enquadramento factual e legislativo em que a decisão era solicitada (22). É importante que o façam não apenas para garantir que o Tribunal de Justiça dê ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil para o litígio em causa mas também porque é muitas vezes difícil ou mesmo impossível interpretar uma norma em abstracto.

Os diferentes contextos das normas comunitárias e nacionais

52 O acórdão Dzodzi é incompatível com a jurisprudência referida. Quando a situação factual que está na base do reenvio nem sequer cai na alçada de uma norma comunitária, o Tribunal de Justiça é solicitado ex hypothesi a interpretar essa norma fora do seu contexto correcto. Consequentemente, o Tribunal de Justiça arrisca-se não só a não considerar todas as questões relevantes mas também a ser induzido em erro por factores estranhos.

53 Mesmo quando existe um nexo estreito entre as normas comunitárias e as nacionais, o contexto em que se pede a interpretação de uma norma comunitária pode ser materialmente diferente do seu próprio contexto. Por exemplo, no processo Leur-Bloem, em que o órgão jurisdicional nacional considera que o legislador neerlandês alargou, de facto, o âmbito de aplicação da norma comunitária, a transacção em causa é uma transacção interna que envolve uma reestruturação puramente jurídica da propriedade de sociedades, possivelmente levada a cabo por razões relacionadas com o direito fiscal neerlandês. Tenho sérias dúvidas quanto a interpretar os termos usados na directiva fiscal - especialmente pela primeira vez - no contexto de uma transacção deste tipo, que parece ter muito pouco a ver com o tipo de transacções previstas na directiva, nomeadamente, fusões transnacionais e permutas de acções previstas para promover agrupamentos transnacionais de empresas. Ao responder às questões do órgão jurisdicional nacional, seria necessário, para colocar as disposições relevantes da directiva no seu próprio contexto, analisar até que ponto as condições impostas pelas normas neerlandesas podiam impedir a criação de estruturas empresariais transnacionais que podiam ser adoptadas em caso de agrupamento de empresas por razões comerciais. A situação de facto no processo Leur-Bloem dificilmente forneceu qualquer elemento sobre estas questões, de acordo com os argumentos escritos e orais apresentados ao Tribunal de Justiça.

54 No que se refere, mais especificamente, à última questão do órgão jurisdicional nacional sobre a interpretação do conceito de evasão fiscal do artigo 11._ da directiva, parece-me que não se deduz claramente dos documentos apresentados ao Tribunal de Justiça se a vantagem fiscal referida, nomeadamente a compensação fiscal horizontal das perdas, poderia surgir num contexto intracomunitário. Para colocar firmemente no seu contexto a questão de interpretação submetida ao Tribunal de Justiça, pode ser necessário imaginar uma situação comparável, que possa seguramente verificar-se num contexto intracomunitário, comparável no sentido de que a vantagem fiscal decorreria não da própria permuta de acções mas da consequente estrutura empresarial daí resultante. Por exemplo, pode imaginar-se uma situação na qual uma operação de agrupamento transnacional por razões comerciais incluiria a constituição de uma empresa holding num Estado-Membro nomeadamente por motivos fiscais para, por exemplo, equilibrar a taxa fiscal aplicada aos lucros das filiais dos vários países ou para beneficiar de um tratamento fiscal concedido no Estado-Membro em causa. Mais uma vez se verifica que a situação de facto do processo Leur-Bloem só muito dificilmente constitui uma base para debater todas as questões que podem ser relevantes para a interpretação do conceito de evasão fiscal do artigo 11._, um conceito cujo alcance tem importantes consequências na aplicação da directiva.

55 É verdade que nunca existe a garantia de que os factos de um caso permitirão considerar todas as questões relevantes; em ocasiões em que o Tribunal de Justiça considerou necessário modificar ou afastar-se de decisões anteriores, foi sobretudo porque não era possível prever exaustivamente as consequências de um acórdão. Os riscos aumentariam significativamente, no entanto, se o Tribunal de Justiça admitisse a sua competência numa categoria de casos em que lhe seria sistematicamente solicitado que interpretasse disposições fora do seu contexto próprio. Parece-me intrinsecamente insatisfatório que seja necessário ter em conta, por um processo de extrapolação, situações fictícias - que não tenham uma conexão real com a do processo principal - para chegar à perspectiva necessária. Em alguns casos, seria mais fácil imaginar um contexto genuinamente comunitário. Mesmo assim, subsistiria o risco de, inadvertidamente, não se ter em conta factores relevantes ou de se ser induzido em erro por factores estranhos. Por exemplo, como explicarei a seguir, mesmo nos contextos relacionados e aparentemente semelhantes dos direitos de importação e do IVA, podem aplicar-se diferentes considerações. Além disto, é muitas vezes necessário permitir que um processo apresentado ao Tribunal de Justiça siga os seus trâmites para que este Tribunal possa determinar com um grau suficiente de certeza que está em condições de decidir.

A importância do acórdão do Tribunal de Justiça para a interpretação de uma norma nacional

56 Mesmo admitindo que o Tribunal de Justiça pode fazer uma interpretação adequada do direito comunitário num litígio inserido num contexto não comunitário, não é certo que o acórdão do Tribunal de Justiça seja útil para esse litígio. O Tribunal de Justiça tem realçado de forma consistente a importância de interpretar disposições comunitárias no seu contexto e é evidente que mesmo duas disposições de direito comunitário redigidas de forma idêntica podem ter diferentes interpretações em razão dos seus diferentes contextos. Como o Tribunal de Justiça afirmou no processo Metalsa (23):

«... resulta que, o alargamento da interpretação duma disposição do Tratado a uma disposição, redigida em termos comparáveis, similares ou mesmo idênticos, constante de um acordo concluído pela Comunidade com um país terceiro, depende nomeadamente da finalidade prosseguida por cada uma das disposições no âmbito que lhe é próprio e que a comparação dos objectivos e do contexto do acordo, por um lado, com os do Tratado, por outro, reveste a este respeito uma importância considerável».

57 Parece-me que o mesmo se aplica a fortiori a normas similares ou idênticas de direito comunitário e nacional. Considerações importantes para a interpretação de uma norma comunitária, como a sua finalidade e o seu lugar na economia e nos objectivos do Tratado, podem ser irrelevantes para a interpretação de uma norma nacional. Os diferentes contextos em que se aplicam as normas comunitárias e as normas nacionais podem assim impor diferentes interpretações dessas normas.

58 Por exemplo, o duplo objectivo da directiva em questão no processo Leur-Bloem é remover os obstáculos fiscais aos agrupamentos transfronteiriços de empresas através da elaboração de normas comuns relativas ao desagravamento fiscal, salvaguardando ao mesmo tempo os interesses financeiros de um Estado-Membro, permitindo-lhe recuperar o imposto adiado não obstante o elemento transnacional. Estes objectivos não têm qualquer relevância num contexto interno.

59 O mesmo se aplica ao alargamento das normas comunitárias que regulamentam uma área jurídica a outra área não harmonizada a nível comunitário. Por exemplo, no processo Giloy, a legislação alemã estabelece um nexo estreito entre os direitos de importação e o IVA na importação. Mesmo aí, contudo, como se vê no recente acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo Pezzullo (24), pode todavia atender-se a diferentes considerações. Nesse caso o Tribunal de Justiça afirmou que a directiva comunitária relevante (25) permitia que os Estados-Membros previssem que, no caso de serem comercializados para uso interno na Comunidade bens previamente sujeitos ao regime do aperfeiçoamento activo, o direito nivelador agrícola devido na importação deveria ser acrescido de juros de mora relativamente ao período compreendido entre a importação temporária e a importação definitiva. Ao invés, nos termos da Sexta Directiva IVA, os juros podem começar a contar apenas a partir do momento em que os bens deixaram de estar sujeitos ao regime do aperfeiçoamento activo e foram declarados para utilização interna. Nas minhas conclusões, sugeri que a razão para a distinção podia residir num mecanismo de dedução que se aplica no caso do IVA, mas não se aplica no caso dos direitos de importação. O acórdão também demonstra que a diferença nos contextos pode tornar-se aparente apenas quando o Tribunal de Justiça tenha interpretado a disposição em questão.

60 O facto de um órgão jurisdicional nacional poder, após ter obtido uma decisão do Tribunal de Justiça, optar por não a seguir, por serem diferentes os contextos das normas comunitárias e das normas nacionais, foi um factor que influenciou o Tribunal de Justiça no acórdão Kleinwort Benson. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça afirmou que, uma vez que a legislação do Reino Unido não tinha tornado as disposições da Convenção de Bruxelas aplicáveis enquanto tais em situações internas, os tribunais do Reino Unido podiam livremente decidir se a interpretação do Tribunal de Justiça era igualmente válida para efeitos das disposições nacionais. O Tribunal de Justiça referiu-se a isto na seguinte passagem do parecer 1/91:

«... é impossível admitir que as respostas que o Tribunal de Justiça dê aos órgãos jurisdicionais dos Estados da EFTA tenham um valor meramente consultivo e sejam desprovidos de efeitos obrigatórios. Semelhante situação desnaturaria a função do Tribunal de Justiça, tal como ela é concebida pelo Tratado CEE, ou seja, a de uma jurisdição cujos acórdãos são vinculativos. Mesmo no caso muito particular do artigo 228._, o parecer do Tribunal de Justiça tem o efeito vinculativo precisado nesse artigo».

61 Mesmo que não seja total a analogia com o acordo EEE, não se pode negar que o princípio de que os acórdãos do Tribunal de Justiça são obrigatórios para os tribunais nacionais é fundamental para se garantir uma aplicação uniforme do direito comunitário. Este princípio seria seriamente afectado se o Tribunal de Justiça aceitasse que, na prática, um órgão jurisdicional nacional pudesse ignorar os seus acórdãos em certos tipos de processos por se inscreverem em contextos diferentes.

62 Além disto, a ausência de qualquer garantia quanto à utilidade do acórdão do Tribunal de Justiça para o litígio, juntamente com o facto de não existir uma ameaça imediata à aplicação uniforme do direito comunitário, enfraquece substancialmente os argumentos a favor do alargamento do processo do artigo 177._ - que atrasa a resolução dos litígios e aumenta os custos para as partes, a Comissão, os Estados-Membros e o Tribunal de Justiça - a um número potencialmente maior de processos nos quais os Estados-Membros decidiram recorrer a normas comunitárias.

63 Finalmente, neste ponto, pode perguntar-se que interesse terá um acórdão quando a norma nacional em questão não suportar a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça à correspondente norma comunitária. Parece ser este o caso do processo Leur-Bloem. Imagine-se que o Tribunal de Justiça, aceitando os argumentos de A. Leur-Bloem, interpreta a directiva fiscal de tal modo que dela resulta que as condições impostas pela legislação neerlandesa sobre a fusão por permuta de acções são demasiado restritivas. No caso de uma transacção intracomunitária abrangida pela directiva, o órgão jurisdicional nacional seria obrigado, na presunção de que as disposições relevantes da directiva tinham efeito directo, a não aplicar a legislação neerlandesa e a aplicar as disposições comunitárias. Não existiria tal obrigação nas circunstâncias do presente caso. Estar-se-ia portanto perante uma situação curiosa em que o acórdão do Tribunal de Justiça só seria, no máximo, relevante para um órgão jurisdicional nacional se, de acordo com os princípios de interpretação enunciados pela legislação nacional, a norma nacional pudesse suportar a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça.

Outras dificuldades teóricas e práticas da aplicação do artigo 177._

64 Existem no entanto vários outros problemas associados ao alargamento do processo do artigo 177._ a litígios que surgem num contexto não comunitário. Em primeiro lugar, nesses casos, só mediante ginástica jurídica é possível encontrar, relativamente a tribunais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso, uma obrigação de reenvio nos termos do terceiro parágrafo do artigo 177._ Seria necessário alegar que o artigo 177._ impõe essa obrigação, mesmo se a necessidade de interpretação do direito comunitário surgir não no contexto do direito comunitário mas no do direito nacional. Além disso, os tribunais superiores terão provavelmente sérias dúvidas quanto ao alcance da sua obrigação de colocar uma questão prejudicial.

65 Em segundo lugar, o artigo 177._ também prevê recursos para a apreciação da validade dos actos comunitários. Seria particularmente inadequado para o Tribunal de Justiça pronunciar-se a esse título num litígio que fica fora do âmbito de aplicação de um acto. De resto, o interesse de tal acórdão para o litígio seria ainda mais indirecto do que no caso de um acórdão de interpretação.

66 Finalmente, num nível prático, partilho das dúvidas expressas pelo advogado-geral G. Tesauro (26) relativamente ao potencial volume de processos em que o órgão jurisdicional nacional poderia identificar uma relação entre normas nacionais e comunitárias e decidir submeter o processo à apreciação do Tribunal de Justiça. Como o advogado-geral G. Tesauro salienta é cada vez mais comum as normas nacionais ou as convenções com Estados não membros basearem-se ou inspirarem-se no direito comunitário.

O acórdão Kleinwort Benson

67 No processo Kleinwort Benson, o Tribunal de Justiça procurou uma solução intermédia ao introduzir a exigência de que a norma nacional deve conter uma remissão directa e incondicional para as disposições de direito comunitário, de forma a incorporá-las no ordenamento jurídico interno. Isto terá possivelmente algumas vantagens: evitará que sejam submetidos ao Tribunal de Justiça casos que apenas têm uma relação ténue com o direito comunitário e nos quais é mais evidente a disparidade de contextos.

68 Contudo, a solução no processo Kleinwort Benson constitui um compromisso complicado. Não tem, em primeiro lugar, nenhum fundamento teórico sólido. Não creio que os critérios enunciados distingam entre categorias conceptuais diferentes. Pode acontecer que os autores do Tratado ou da legislação comunitária decidam não alargar o direito comunitário a uma área específica e que os Estados-Membros adoptem diferentes perspectivas sobre a necessidade de o fazerem, unilateralmente, a nível da sua legislação interna. Uma norma comunitária que, para um Estado-Membro, impõe o conteúdo das normas nacionais relacionadas com aquela pode ser vista por outro Estado-Membro apenas como modelo potencialmente interessante que tem uma construção jurisprudencial conveniente.

69 Qualquer que seja a opção legislativa de um Estado-Membro, as ordens jurídicas comunitária e nacional permanecem distintas. Na ausência de uma indicação expressa no artigo 177._, não creio que o Tribunal possa permitir que os limites da sua competência sejam determinados pela legislação nacional. Se assim o fizesse, a sua competência variaria muito entre os Estados-Membros.

70 Em segundo lugar, não considero que o acórdão Kleinwort Benson atinja aquilo que enuncia, nomeadamente, a garantia de que o acórdão do Tribunal de Justiça será aplicado pelo órgão jurisdicional nacional. Mesmo quando a legislação nacional contém uma remissão expressa para o direito comunitário, sendo igual a redacção das normas comunitárias e nacionais, os órgãos jurisdicionais nacionais são, ainda assim, livres para considerar que os diferentes contextos das duas disposições exigem diferentes interpretações. Como já se afirmou, mesmo duas disposições idênticas de direito comunitário podem ter diferentes interpretações em função dos respectivos contextos.

71 Em terceiro lugar, como já expliquei, não obstante o nexo directo entre as normas comunitárias e as nacionais, existem riscos e dificuldades inerentes à interpretação das normas comunitárias fora do seu próprio contexto.

72 Em quarto lugar, como prova o presente caso, a exigência de um reenvio directo e incondicional para o direito comunitário é dificilmente aplicável e é arbitrário. No processo Giloy, parece ser ponto assente que as autoridades aduaneiras alemãs devem aplicar o artigo 244._ do código aquando da cobrança do IVA na importação; contudo, esta exigência não decorre claramente da própria legislação, mas parcialmente da jurisprudência e da doutrina. De qualquer modo, não compete ao Tribunal de Justiça interpretar a legislação alemã - que compete apenas aos tribunais nacionais. No processo Leur-Bloem, na verdade, não existe um reenvio directo e incondicional da legislação neerlandesa para o direito comunitário. Porém, isto pode dever-se simplesmente à natureza do instrumento comunitário. Enquanto se pode admitir que uma norma nacional contenha uma referência expressa a um regulamento ou a uma convenção comunitários, um Estado-Membro que pretenda transpor as normas contidas numa directiva para um contexto não comunitário pode apenas alargar o âmbito da sua legislação nacional que transponha essa directiva. Como no processo Leur-Bloem, o nexo com a norma comunitária pode ser inferido pelo órgão jurisdicional nacional a partir da redacção e dos objectivos das disposições nacionais, com eventual referência aos travaux préparatoires. O facto de o artigo 14._ b, n._ 2, alínea a), da lei neerlandesa de 1964 não reproduzir, como salienta a Comissão, literalmente o texto da directiva fiscal, não é surpreendente; o próprio artigo 14._ b, n._ 2, alínea b), que pretende executar a directiva, também não o faz.

73 De forma mais geral, considero que seria arbitrário basear qualquer distinção na forma pela qual um Estado-Membro transpõe uma norma comunitária para o contexto nacional. Por exemplo, o resultado atingido através da aplicação a situações internas de certas vantagens concedidas por uma directiva aplicável apenas a situações intracomunitárias pode igualmente ser conseguido através de uma norma adequadamente redigida que proíba a discriminação invertida. Quaisquer que sejam os meios utilizados, a verdade é que, em litígios como o em apreço, a norma aplicável é, em última instância, de direito nacional. Estes litígios não se referem a direitos ou obrigações decorrentes do direito comunitário.

74 Finalmente, como se viu nos presentes casos, uma solução intermédia como a adoptada no processo Kleinwort Benson cria provavelmente uma considerável incerteza. O resultado será inevitavelmente a contestação sistemática da competência do Tribunal de Justiça que, em muitos casos, só será susceptível de ser resolvida depois de o processo pendente no Tribunal de Justiça ter sido concluído. Além disto, existirá ainda incerteza, se o Tribunal de Justiça exercer a sua competência, quanto a saber se os órgãos jurisdicionais nacionais deverão aplicar o acórdão, tendo em conta os diferentes contextos.

Os limites da competência do Tribunal de Justiça nos termos do artigo 177._

75 Considero, portanto, que o Tribunal de Justiça deve apenas decidir nos casos em que tem conhecimento do contexto factual e legal do litígio e em que esse contexto é contemplado por uma norma comunitária. Parece-me que esta posição é a única consistente com o princípio jurídico e com o objectivo do artigo 177._; que garante a utilidade do acórdão do Tribunal de Justiça para a resolução do litígio; e que evita o risco de se solicitar ao Tribunal de Justiça que interprete uma norma comunitária fora do seu próprio contexto. Também fornece critérios exequíveis e claros que darão aos órgãos jurisdicionais nacionais o grau de certeza exigido quanto ao alcance da competência do Tribunal de Justiça.

76 Consequentemente, creio que o Tribunal de Justiça não deve decidir em nenhum dos casos. Em ambos os processos o legislador nacional utilizou uma norma comunitária, transpondo-a para um contexto para o qual não estava prevista.

77 No que se refere a casos precedentes, partilho da opinião do advogado-geral G. Tesauro de que o Tribunal de Justiça não deve decidir em casos como os dos processos Thomasdünger, Dzodzi, Gmurzynska-Bscher e Tomatis e Fulchiron. Por outro lado, parece-me que foi correctamente que decidiu nos processos Fournier e Federconsorzi. Nesses casos, existia a diferença fundamental de os acordos contratuais em questão terem sido celebrados em virtude de normas comunitárias. Assim, os factos de ambos os casos eram directamente abrangidos pelas normas comunitárias e adaptavam-se quer aos objectivos do artigo 177._ quer à exigência de que o Tribunal de Justiça só deve decidir quando seja útil para a solução do litígio que o Tribunal de Justiça responda às questões dos órgãos jurisdicionais nacionais.

78 É verdade, como o advogado-geral G. Tesauro salientou no processo Kleinwort Benson, que a interpretação dos contratos em questão nos processos Fournier e Federconsorzi era uma questão de direito nacional. Todavia, isto também é verdade quando a interpretação que deve ser feita de uma norma comunitária é importante para a interpretação da norma nacional de transposição. De qualquer modo, existe em ambos os casos o ponto comum de uma norma ou de uma disposição contratual se aplicar num contexto comunitário.

79 Realço que não estou a propor que o Tribunal de Justiça se considere incompetente em todos os casos em que a relevância de uma questão se deve a uma possível violação do direito nacional. Veja-se, por exemplo, a situação de um Estado-Membro ter exercido uma faculdade que uma directiva lhe atribui, de impor exigências mais estritas do que as previstas nessa directiva, apesar de a legislação nacional de transposição só atribuir à autoridade competente de um Estado-Membro capacidade para adoptar disposições que sejam absolutamente necessárias, na perspectiva do direito comunitário, à transposição da directiva (situação que é similar à do processo RTI (27)). Numa situação destas, o órgão jurisdicional nacional pode querer assegurar-se das exigências mínimas impostas pela directiva e submeter ao Tribunal de Justiça uma questão nesse sentido, para poder analisar o argumento de que o Estado-Membro actuou para além dos poderes que lhe conferia a legislação nacional. Nessas circunstâncias, entendo que o Tribunal de Justiça deve considerar-se competente, uma vez que a lei nacional não transpôs as normas comunitárias para um contexto diferente; não existe portanto o perigo de o Tribunal de Justiça estar a responder a uma questão fora do contexto.

80 Pode ser útil pensar em termos de uma distinção entre os efeitos «verticais» e «horizontais» do direito comunitário num sistema jurídico nacional. No caso de o direito nacional ter transposto o direito comunitário para um contexto interno a que o próprio direito comunitário não se aplica, está-se perante o que se pode denominar uma situação «horizontal»: o direito comunitário só é relevante porque foi aplicado, devido a uma opção da lei nacional, a uma situação interna à qual não se pretendia aplicar; este alargamento pode ser efectuado através de uma extensão expressa ou de uma reprodução das normas comunitárias, ou através de uma disposição geral de direito nacional que proíba a discriminação invertida ou a concorrência desleal. Por outro lado, quando o direito comunitário é transposto apenas dentro dos limites previstos pela legislação comunitária, os efeitos que previsivelmente decorrem dessa transposição através da legislação nacional, ainda que remotos, podem ser considerados como estando previstos pelo direito comunitário. Estes serão os efeitos «verticais». Em meu entender, por exemplo, o Tribunal de Justiça devia ter competência num caso como o do Federconsorzi, ainda que o litígio tivesse surgido mais tarde na cadeia dos eventos, isto é, se uma empresa em circunstâncias semelhantes tivesse pago sem discutir, sendo a soma paga contestada pelos seguradores quando a empresa pretendesse beneficiar do seu contrato de seguro, o que conduziria a que se colocasse ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial acerca do significado da disposição comunitária igual à que estava em causa no processo Federconsorzi.

81 Ao utilizar a expressão «abrangido pelo direito comunitário», não pretendo limitar a categoria dos pedidos prejudiciais a situações especificamente previstas pelos autores da legislação comunitária: creio que não devem ter previsto, por exemplo, a necessidade de, devido a um furto de azeite no processo Federconsorzi, interpretar um termo contratual que remete para a disposição comunitária. Pretendo apenas referir as situações que podem ter resultado naturalmente da transposição da legislação comunitária e não do facto de esta ter sido desviada para regular situações a que nunca pretendeu aplicar-se.

Conclusão

82 Deste modo, considero que o Tribunal de Justiça deve responder da seguinte forma às questões submetidas pelo Gerechtshof te Amsterdam, no processo T-28/95, Leur-Bloem, e pelo Hessisches Finanzgericht, no processo C-130/95, Giloy:

«O Tribunal de Justiça não tem competência, nos termos do artigo 177._ do Tratado, para responder às questões que lhe foram submetidas.»

(1) - JO L 225, p. 1.

(2) - JO L 302, p. 1.

(3) - Primeiro considerando.

(4) - Quarto considerando.

(5) - Acórdão de 26 de Setembro de 1985 (166/84, Recueil, p. 3001).

(6) - Acórdão de 18 de Outubro de 1990 (C-297/88 e C-197/89, Colect., p. I-3763).

(7) - Acórdão de 8 de Novembro de 1990 (C-231/89, Colect., p. I-4003).

(8) - Conclusões apresentadas em 3 de Julho de 1990 no processo Dzodzi (já referido na nota 6, p. I-3778) e no processo Gmurzynska-Bscher (já referido na nota 7, p. I-4009).

(9) - N.os 36 e 37 do acórdão.

(10) - N.os 40 a 42 do acórdão.

(11) - Acórdão de 24 de Janeiro de 1991 (C-384/89, Colect., p. I-127).

(12) - Acórdão de 12 de Novembro de 1992 (C-73/89, Colect., p. I-5621).

(13) - Acórdão de 25 de Junho de 1992 (C-88/91, Colect., p. I-4035).

(14) - Directiva de 24 de Abril de 1972 relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113).

(15) - N._ 19 das conclusões.

(16) - N._ 23 do acórdão.

(17) - Acórdão de 28 de Março de 1995 (C-346/93, Colect., p. I-615).

(18) - Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

(19) - Colect. 1991, p. I-6079.

(20) - N._ 37.

(21) - Acórdão de 26 de Janeiro de 1993 (C-320/90, C-321/90 e C-322/90, Colect., p. I-393); v. também os despachos de 19 de Março de 1993, Banchero (C-157/92, Colect., p. I-1085); de 26 de Abril de 1993, Monin Automobiles (C-386/92, Colect., p. I-2049); de 9 de Agosto de 1994, La Pyramide (C-378/93, Colect., p. I-3999); e de 23 de Março de 1995, Saddik (C-458/93, Colect., p. I-511).

(22) - V. o despacho mais recente do Tribunal de Justiça, de 19 de Julho de 1996, Modesti (C-191/96, Colect., p. I-3937).

(23) - Acórdão de 1 de Julho de 1993 (C-312/91, Colect., p. I-3751, n._ 11); v. também o acórdão de 9 de Fevereiro de 1982, Polydor e RSO (270/80, Recueil, p. 329).

(24) - Acórdão de 8 de Fevereiro de 1996 (C-166/94, Colect., p. I-331).

(25) - Directiva 69/73/CEE do Conselho, de 4 de Março de 1969, relativa à harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas ao regime do aperfeiçoamento activo (JO L 58, p. 1; EE 02 F1 p. 19).

(26) - V. o n._ 26 das suas conclusões no processo Kleinwort Benson (já referido na nota 17).

(27) - V. as conclusões que apresentei em 11 de Julho de 1996 relativas ao acórdão de 12 de Dezembro de 1996, RTI e o. (C-320/94, C-328/94, C-329/94, C-337/94, C-338/94 e C-339/94, Colect., p. I-6471).