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Advertência jurídica importante

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61998C0415

Conclusões do advogado-geral Saggio apresentadas em 13 de Abril de 2000. - Laszlo Bakcsi contra Finanzamt Fürstenfeldbruck. - Pedido de decisão prejudicial: Bundesfinanzhof - Alemanha. - IVA - Artigos 2.º, ponto 1, 5.º, n.º 6, e 11.º, parte A, n.º 1, alínea a), da Sexta Directiva IVA - Bem de utilização mista - Integração no património privado ou profissional do sujeito passivo - Venda de um bem da empresa - Bem usado comprado a um particular. - Processo C-415/98.

Colectânea da Jurisprudência 2001 página I-01831


Conclusões do Advogado-Geral


1. Por despacho de 24 de Setembro de 1998, o Bundesfinanzhof (Alemanha) submeteu ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais relativas à interpretação da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (a seguir «Sexta Directiva») . Estas questões foram colocadas no quadro de um processo no qual L. Bakcsi (a seguir «demandante») pediu que a cessão de um veículo que tinha adquirido a um particular e que tinha afectado a uma utilização profissional e privada não fosse declarada sujeita ao IVA.

A Sexta Directiva em matéria de IVA

2. A Sexta Directiva relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios organizou a última fase da introdução do IVA na Comunidade Europeia, definindo, de modo pormenorizado, o regime relativo à determinação da matéria colectável.

3. O artigo 2.° , n.° 1, da directiva supracitada prevê que estão sujeitas ao IVA «... as entregas de bens e as prestações de serviços efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade».

4. O artigo 4.° define o que se deve entender por sujeito passivo. Os dois primeiros números determinam que: «Por sujeito passivo entende-se qualquer pessoa que exerça, de modo independente, em qualquer lugar, uma das actividades económicas referidas no n.° 2, independentemente do fim ou do resultado dessa actividade» e que «As actividades económicas referidas no n.° 1 são todas as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. A exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência é igualmente considerada uma actividade económica.»

5. O artigo 5.° da Sexta Directiva diz respeito à noção de entrega de bens. O seu n.° 6 define os casos em que a afectação de um bem da empresa pelo empresário é considerada como equivalente a uma entrega com vista à sujeição ao IVA. Determina que «É equiparada a entrega efectuada a título oneroso a afectação, por um sujeito passivo, de bens da própria empresa a seu uso privado ou do seu pessoal, ou a disposição de bens a título gratuito, ou, em geral, a sua afectação a fins estranhos à empresa, sempre que, relativamente a esses bens ou aos elementos que os compõem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado. Todavia, não será assim considerada a afectação a ofertas de pequeno valor e a amostras, para os fins da própria empresa.»

6. O artigo 6.° da directiva em questão define, sempre com vista à sujeição ao IVA, a prestação de serviços. Nos termos das disposições do n.° 2, alínea a), é equiparada a uma prestação de serviços efectuada a título oneroso «a utilização de bens afectos à empresa para uso privado do sujeito passivo ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado».

7. O artigo 10.° , n.° 1, alínea a), define o facto gerador do imposto como «... o facto mediante o qual são preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto».

8. O artigo 11.° da Sexta Directiva diz respeito à determinação da matéria colectável. Nos termos do artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), é constituída «... no caso de entregas de bens e de prestações de serviços... por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações...».

9. Em matéria de isenção, o artigo 13.° , B, determina que: «Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso:

...

c) As entregas de bens afectos exclusivamente a uma actividade isenta por força do presente artigo ou do n.° 3, alínea b), do artigo 28.° , quando esses bens não tenham conferido direito à dedução, e bem assim as entregas de bens cuja aquisição ou afectação tenha sido excluída do direito à dedução...» .

10. Quanto às deduções, o artigo 17.° , n.° 1 dispõe que «O direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.»

11. Por fim, o artigo 32.° , primeiro parágrafo, da versão de original da directiva (revogado pela Directiva 94/5/CE ) determinava que: «O Conselho deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, adoptará, até 31 de Dezembro de 1977, o regime comunitário de tributação aplicável no sector dos bens em segunda mão, objectos de arte, antiguidades e objectos de colecção.»

Só foi dada aplicação a este artigo em Fevereiro de 1994 através da Directiva 94/5. O artigo 1.° , n.° 3, A, alínea e), desta directiva (que passou a ser o artigo 26.° -A da Sexta Directiva) define o «sujeito passivo revendedor» como aquele que:

«... no âmbito da sua actividade económica, compra ou afecta às necessidades da sua empresa, ou importa para revenda, bens em segunda mão, objectos de arte e de colecção ou antiguidades, quer esse sujeito passivo actue por conta própria ou por conta de outrem nos termos de um contrato de comissão de compra e venda».

Além disso, na parte B, lê-se:

«1. Os Estados-Membros aplicarão às entregas de bens em segunda mão, de objectos de arte e de colecção ou de antiguidades, efectuadas por sujeitos passivos revendedores, um regime especial de tributação da margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor nos termos das disposições seguintes.

2. As entregas de bens referidos no n.° 1 são as entregas, efectuadas por um sujeito passivo revendedor, de bens em segunda mão, de objectos de arte, de colecção ou de antiguidades que lhe sejam entregues no interior da Comunidade:

- por quem não seja sujeito passivo...

3. A matéria colectável das entregas de bens referidas no n.° 2 é constituída pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, deduzido o montante do imposto sobre o valor acrescentado correspondente à própria margem de lucro. Esta margem de lucro é igual à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o seu preço de compra.»

A regulamentação nacional

12. A regulamentação nacional pertinente para os fins da solução do litígio na instância principal figura na Umsatzsteuergesetz de 1980 (lei relativa ao imposto sobre o volume de negócios, a seguir «UStG 1980»). Em aplicação do artigo 1.° , n.° 1, primeiro parágrafo, primeiro período, todas as entregas de bens efectuadas a título oneroso por um sujeito passivo no interior do país no âmbito da sua empresa estão sujeitas ao IVA. Por força do artigo 10.° , n.° 1, primeiro período, da UStG 1980, o volume de negócios referente a estas entregas é calculado com base na contrapartida recebida.

A matéria de facto e as questões prejudiciais

13. Em 1990, o demandante exercia uma actividade de transportador independente. Para este efeito, utilizava um veículo da marca Mercedes, modelo 300 D, que, como resulta do despacho de reenvio, era utilizado em cerca de 70% para fins profissionais e de 30% para fins privados.

14. O demandante tinha adquirido o referido veículo a um particular. Esta circunstância tinha-o impedido de deduzir o IVA do preço pago pela aquisição. Em 1989, efectuou reparações no veículo, deduzindo o IVA relativo às despesas efectuadas. Por fim, em Maio de 1990, o demandante vendeu o veículo Mercedes pelo preço de 19 000 DEM, sem facturar separadamente o montante do IVA incluído no preço do automóvel.

15. A seguir à venda e com base nas disposições nacionais em matéria do imposto sobre o volume de negócios, a administração fiscal alemã, durante um controlo fiscal relativo ao ano de 1990, sujeitou a venda da viatura ao IVA, tomando como matéria colectável o preço de venda (19 000 DEM) reduzida do montante do IVA incluído (2 334 DEM). Por conseguinte, a administração fiscal, por decisão de 24 de Maio de 1994, intimou o demandante a pagar o imposto supracitado.

16. O demandante apresentou uma reclamação administrativa contra este controlo e, após esta ter sido indeferida, interpôs recurso no Finanzgericht. Este último só deu provimento ao recurso parcialmente, reduzindo a matéria colectável para ter em conta no uso privado do veículo o montante das despesas e das prestações para as quais o demandante não tinha podido obter a dedução do IVA. Todavia, a título de princípio, o Finanzgericht julgou que a venda estava sujeita ao IVA pelo facto de em 1989 o demandante ter reclamado a dedução das despesas de reparação da viatura. Desta maneira, ainda de acordo com o Finanzgericht, o demandante tinha de facto revelado a sua decisão de afectar o bem à sua empresa.

17. O demandante interpôs recurso desta decisão para o Bundesfinanzhof (órgão jurisdicional supremo em matéria fiscal), pedindo a sua revogação e, por conseguinte, a redução de 2 334 DEM do IVA calculado para o exercício de 1990.

18. No despacho de reenvio, o Bundesfinanzhof assinala em primeiro lugar que, com base na regulamentação nacional em matéria de IVA, a entrega do veículo pelo demandante deve ser considerada como sujeita ao IVA se tiver tido lugar «no âmbito da empresa». Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio não tem a certeza de que, no caso em apreço, a venda teve realmente lugar «no âmbito da empresa». Com efeito e no que diz respeito aos bens destinados a um uso misto, parece que a regulamentação alemã, à luz da jurisprudência nacional e nomeadamente de um acórdão do Bundesfinanzhof de 25 de Março de 1988, não exclui que um veículo, mesmo quando seja utilizado simultaneamente como um bem para uso profissional e para uso privado, possa estar afectado, na sua totalidade, ao património privado do sujeito passivo. No entanto, ainda segundo o Bundesfinanzhof, existiriam dúvidas relativamente à compatibilidade desta possibilidade com a Sexta Directiva, como foi interpretada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

19. O órgão jurisdicional nacional interroga-se, além disso, se, mesmo no caso de o veículo em questão dever ser considerado como parte do património da empresa, a sua entrega deve ser sujeita ao IVA em todos os casos. A este respeito, o demandante alegou na instância principal que uma situação semelhante conduz não só a uma dupla tributação, mas também a uma contradição no quadro do regime previsto pela Sexta Directiva. O artigo 5.° , n.° 6, desta última, determina com efeito que a afectação por um empresário de um bem da sua empresa para o seu uso privado só está sujeita ao IVA quando esse bem tenha previamente dado lugar a uma dedução completa ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado. Em consequência, submeter ao imposto sobre o valor acrescentado a venda de um veículo adquirido a um particular sem possibilidade de dedução acarretaria uma disparidade de tratamento injustificada entre o regime das entregas e o das afectações que, ainda segundo o demandante, deveria ser resolvida no sentido de excluir a sujeição ao imposto sobre o valor acrescentado quando da entrega de veículos em segunda mão.

O Bundesfinanzhof considera por último que, embora tanto o artigo 13.° como o artigo 26.° -A da Sexta Directiva prevejam casos de isenção de IVA para as entregas efectuadas por um sujeito passivo de bens cuja aquisição tenha sido objecto da exclusão do direito à dedução, estes casos não incluem o caso em apreço que é objecto da instância em causa.

20. Por conseguinte, considerando que a solução do litígio depende da interpretação das disposições da Sexta Directiva, o Bundesfinanzhof submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Pode um empresário afectar completamente ao seu património pessoal um bem utilizado de forma mista (para a empresa e para efeitos privados), independentemente da importância do uso empresarial?

2) Está totalmente sujeita ao imposto sobre o volume de negócios a alienação de um bem que o vendedor adquiriu, sem direito a dedução do imposto pago a montante, a um particular para a sua empresa, em conformidade com o artigo 2.° , n.° 1, e com o artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), da Directiva 77/388/CEE?»

Quanto à primeira questão prejudicial

21. Com a primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende, essencialmente, saber se, à luz das disposições da Sexta Directiva em matéria de IVA, um sujeito passivo pode afectar integralmente ao seu património privado um bem de uso misto ou utilizá-lo em parte para fins profissionais e em parte para fins privados.

22. Segundo a Comissão, uma tal possibilidade estará excluída e isto pelo motivo de que, mesmo admitindo que o sujeito passivo tem a faculdade de escolher se e em que proporção afecta um bem ao seu património privado ou profissional, a Comissão considera que esta escolha se efectua por intermédio da utilização do bem. Por consequência, ainda segundo a Comissão, uma vez que o sujeito passivo utiliza o bem total ou parcialmente para fins profissionais, escolhe de facto afectá-lo total ou parcialmente à empresa.

23. O Governo alemão, em contrapartida, considera que o simples facto de o sujeito passivo utilizar um bem, total ou parcialmente, para fins profissionais não significa necessariamente que queira afectá-lo total ou parcialmente à empresa. Com efeito, a afectação do bem dependerá inteiramente da vontade do sujeito passivo, que a exprimirá através do exercício do direito à dedução que a Sexta Directiva reserva exclusivamente à aquisição de bens para fins profissionais. Se esta possibilidade não existe, como no caso em apreço que é objecto do litígio que discutimos hoje, a escolha do sujeito passivo poderá resultar de outras circunstâncias que estarão sempre relacionadas com o exercício da faculdade de dedução, como a dedução do IVA pago pelas despesas relacionadas com o bem.

24. Em primeiro lugar, convém dizer que resulta claramente tanto do despacho de reenvio como das observações apresentadas pelas partes que a primeira questão prejudicial não põe em causa o princípio segundo o qual o sujeito passivo, quando adquire um bem, é livre de escolher se o atribuirá ao seu património privado ou à empresa. Não acreditamos que possam existir dúvidas quanto à existência desta liberdade. É verdade que a referida questão diz respeito aos critérios a seguir para estabelecer, concretamente, qual foi a escolha do sujeito passivo. A resposta a dar ao órgão jurisdicional de reenvio, com efeito, será negativa ou positiva consoante se considere, como faz a Comissão, que o uso do bem determina o património a que pertence (excluindo assim a priori que um bem utilizado de uma maneira mista possa fazer parte exclusivamente do património privado do empresário) ou então, como faz o Governo alemão, que a afectação de um bem a um determinado património resulta de outros elementos para além do uso do bem e, nomeadamente, do exercício do direito à dedução do imposto pago a montante (admitindo que um empresário inclui no seu património privado um bem que utiliza para fins mistos).

25. De uma maneira geral, partilhamos da posição do Governo alemão. Na Sexta Directiva, com efeito, não existe qualquer disposição que corrobore a tese da Comissão quanto à existência de uma relação entre o uso de um bem e o património a que deve ser afectado. Pelo contrário, como sustentou igualmente o Governo alemão durante a audiência, uma prova indirecta a favor da tese contrária decorre da formulação do artigo 6.° , n.° 2, da Sexta Directiva . Este artigo, com efeito, ao definir o regime aplicável à utilização privada dos bens profissionais pelo sujeito passivo, confirma que o património do qual um bem faz parte não depende necessariamente da utilização a que está afectado para os fins da aplicação da Sexta Directiva.

26. Esta solução encontra uma confirmação na jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual em princípio o facto de saber se «... um sujeito passivo, num caso concreto, adquiriu bens para os fins das suas actividades económicas, na acepção do artigo 4.° da Sexta Directiva, constitui uma questão de facto cuja apreciação deve ter em conta o conjunto dos dados do caso concreto...» . Quase não vale a pena acrescentar que esta apreciação incumbe ao órgão jurisdicional nacional, o qual dispõe de todos os elementos de facto necessários. No que diz respeito mais particularmente aos bens para fins mistos, o Tribunal de Justiça disse expressamente, além disso, que o sujeito passivo tem a liberdade de escolher, «... para efeitos de aplicação da [sexta] directiva, entre integrar ou não na sua empresa a parte de um bem que está afecta ao seu uso privado» e que, por conseguinte, «... os bens de investimento utilizados ao mesmo tempo para fins profissionais e para fins privados podem, todavia, ser tratados como bens da empresa sobre os quais o imposto sobre o valor acrescentado é, em princípio, integralmente dedutível» .

Portanto, parece-nos que resulta mesmo da jurisprudência, em particular do acórdão citado em último lugar, e de forma bem clara, que, no quadro do sistema do imposto sobre o valor acrescentado, não existe qualquer relação directa e necessária entre a utilização de um bem e o património a que está afectado. É verdade, como o próprio órgão jurisdicional de reenvio assinalou, que o Tribunal de Justiça nunca se pronunciou especificamente sobre o caso de um bem de uso misto afectado inteiramente ao património privado do empresário, mas não vemos razões para excluir esta possibilidade.

27. À luz do que expusemos até aqui e para responder mais directamente à questão colocada pelo tribunal nacional, consideramos que não há dúvida que a liberdade de que goza o sujeito passivo no que toca à escolha do património ao qual afecta os bens adquiridos implica que este pode decidir afectar exclusivamente ao seu património privado um bem que utiliza, em parte, para fins profissionais.

28. No entanto e uma vez isto estabelecido, parece-nos igualmente oportuno acrescentar algumas considerações a propósito do critério, sublinhado pelo Governo alemão, que diz respeito ao exercício do direito à dedução. Com efeito e pelas razões que estamos agora prestes a explicar, consideramos que, entre os diferentes elementos que é necessário tomar em conta para interpretar o comportamento do empresário no que respeita à escolha do património ao qual afecta um bem, este critério reveste uma importância particular.

Como é sabido, o sistema do IVA caracteriza-se pelo facto de se destinar a fazer incidir o imposto sobre os consumidores finais e de os principais devedores do imposto (isto é, os que devem preencher as formalidades previstas pela regulamentação) serem os sujeitos passivos. Para ter a certeza que o sistema funciona e, em particular, que os sujeitos passivos, apesar de cobrarem e de pagarem o IVA, não suportam a sua carga, foi criado um mecanismo de tributação e de dedução que tem por fim tornar o imposto «neutro» a seu respeito. Por conseguinte, no quadro do regime comunitário do IVA, a situação do sujeito passivo distingue-se da situação do consumidor final justamente pelo facto de apenas o primeiro poder beneficiar do referido mecanismo. Daí resulta que, no momento em que uma pessoa exerce a sua liberdade de optar por afectar um bem à sua empresa ou ao seu património privado, escolhe ao mesmo tempo se integra o bem no sistema do imposto, fazendo-o entrar no mecanismo de tributação e de dedução acima descrito, ou então se age na qualidade de consumidor final, renunciando completamente ao referido sistema. Portanto, parece-nos que o facto de uma pessoa exercer o seu direito à dedução do imposto pago quando da aquisição de um bem pode ser considerado como uma razão perfeitamente legítima para julgar que decidiu afectar esse bem à empresa.

Embora no processo hoje em análise não tenha sido possível recuperar o IVA pago pela aquisição do veículo, na medida em que o vendedor era um particular, consideramos que o que acaba de ser dito pode aplicar-se à escolha feita pelo demandante de deduzir o imposto pago nas despesas de reparação do veículo. Em nossa opinião, esta última circunstância representa, portanto, uma prova decisiva para excluir o facto de ter afectado o bem em litígio integralmente ao seu património privado.

29. Em conclusão, no que diz respeito à primeira questão prejudicial, consideramos, para completar o que já dissemos, que um empresário pode afectar ao seu património privado um bem destinado a uso misto. Todavia, deve resultar sem ambiguidade do seu comportamento que quis subtrair integralmente esse bem ao regime do imposto sobre o valor acrescentado.

Quanto à segunda questão prejudicial

30. Com a segunda questão prejudicial, o tribunal nacional pergunta ao Tribunal de Justiça se a venda de um bem destinado pelo empresário a fins profissionais deve estar sujeita ao IVA mesmo quando, no momento da aquisição, não foi possível deduzir o IVA pelo facto de este bem ter sido adquirido a um particular que não era sujeito passivo deste imposto. Não é contestado por qualquer das partes que esta sujeição dá lugar a uma dupla tributação contrária aos princípios do imposto sobre o valor acrescentado, especialmente ao princípio da neutralidade fiscal, e isto na medida em que o sujeito passivo se encontra de facto obrigado a pagar o IVA quer no momento da compra do bem (sem o poder deduzir do montante pago) quer no momento da sua cessão (devendo pagar o IVA incluído no preço de venda).

31. A este respeito, é necessário considerar que, segundo o regime geral de tributação das entregas que figura no artigo 2.° , n.° 1, da Sexta Directiva , a condição necessária e suficiente para que uma entrega seja sujeita a imposto é que ela tenha sido efectuada a título oneroso por um sujeito passivo que actua nessa qualidade. Em contrapartida, é totalmente indiferente que o bem cedido tenha sido objecto de uma dedução de IVA no momento da compra.

32. As únicas disposições da Sexta Directiva das quais resulta que a sujeição ao imposto está subordinada a uma dedução anterior são o artigo 5.° , n.° 6, relativo ao regime de afectação, e o artigo 6.° , n.° 2, relativo à utilização de um bem afectado à empresa para fins privados . Esta subordinação justifica-se pelo facto de estar estreitamente relacionada com o objectivo particular que é prosseguido por estes artigos. Como o Tribunal de Justiça estabeleceu a propósito do regime da afectação, mas com um raciocínio que pode aplicar-se igualmente à utilização de bens profissionais para fins privados, «... o objectivo do artigo 5.° , n.° 6, da Sexta Directiva IVA... traduz[-se] em garantir uma igualdade de tratamento entre o sujeito passivo que afecta um bem da sua empresa ao uso privado e o consumidor normal que adquire um bem do mesmo tipo. Com vista à realização deste objectivo, esta disposição impede que um sujeito passivo que deduziu o IVA na aquisição de um bem afecto à sua empresa se subtraia ao pagamento do IVA quando afecta esse bem ao seu uso privado, beneficiando assim de vantagens indevidas em relação ao consumidor normal que adquire o seu bem pagando o IVA» . Por outras palavras, as disposições que evocamos regem casos particulares nos quais a existência de uma dedução do IVA representa a condição prévia necessária para definir o risco de evasão fiscal que as duas normas visam evitar.

À luz destes elementos, parece-nos, portanto, que é necessário considerar sem fundamento o que é sustentado pelo demandante, a saber, que a diferença que é criada entre o regime da afectação e o da cessão quando o bem cedido tenha sido adquirido a um particular que não é sujeito passivo do imposto dará lugar a uma disparidade de tratamento, que deveria ser eliminada através da exclusão da tributação das entregas de bens em segunda mão . Em primeiro lugar, com efeito, os dois regimes não causam qualquer disparidade de tratamento, na medida em que, como resulta das considerações que acabámos de expor, apoiam-se em exigências e condições diferentes. Em segundo lugar, se seguirmos o que é sugerido por último pelo demandante, a condição da existência de uma dedução do imposto pago quando da aquisição do bem estender-se-ia de facto igualmente ao regime normal das entregas. Todavia, isto estaria em nítida contradição com as disposições do artigo 2.° , n.° 1, da Sexta Directiva.

33. É preciso igualmente ter em conta o facto de a entrega que é objecto da instância principal não se inserir nos casos de isenção do imposto previstos no artigo 13.° da Sexta Directiva, nomeadamente nos previstos na sua parte B, alínea c) . Com efeito, como sublinhou justamente o tribunal nacional, estas isenções, que têm precisamente como objectivo específico evitar uma dupla tributação , explicitamente não prevêem o caso dos bens adquiridos a particulares sem direito à dedução. Para mais, como se sabe, estas disposições que consistem em excepções não podem ser objecto de uma interpretação extensiva .

34. Por fim, o caso que debatemos também não se insere no quadro do regime estabelecido pela Directiva 94/5, que completa o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado e que estabelece um regime especial aplicável aos bens em segunda mão, aos objectos de arte e de colecção e às antiguidades . Este diploma determina a introdução, no quadro da Sexta Directiva, do novo artigo 26.° -A, relativo ao regime especial aplicável aos bens em segunda mão, justamente para evitar a dupla tributação e as distorções da concorrência entre os sujeitos passivos . Todavia, este regime é reservado exclusivamente aos «sujeitos passivos revendedores», isto é, aos que praticam a compra e venda de bens em segunda mão enquanto actividade principal. Sendo certo que o demandante não faz parte desta categoria, o regime especial previsto pelo artigo 26.° -A da Sexta Directiva não é aplicável aos autos que hoje nos ocupam.

35. Com base nas considerações que acabam de ser expostas, parece-nos que é fácil chegar à conclusão de que, à luz do regime da Sexta Directiva, a entrega de um bem por um sujeito passivo agindo nessa qualidade, não na qualidade de sujeito passivo revendedor na acepção do artigo 26.° -A, da Sexta Directiva, se insere no âmbito de aplicação do artigo 2.° , n.° 1, e está, por este facto, sujeita ao imposto, mesmo quando o bem cedido não tenha dado lugar à dedução na medida em que foi adquirido a um particular.

36. Diga-se, em todo o caso, que esta situação não dá origem a uma dupla tributação que, como afirmou o Tribunal de Justiça, é «... contrária ao princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado em que se insere esta [a sexta] directiva» . No entanto, foi este o problema tratado pelo Tribunal de Justiça no acórdão ORO Amsterdam Beheer e Concerto, de 1989 . Neste caso, também os juízes comunitários tinham sido chamados a pronunciarem-se sobre a legalidade da sujeição ao imposto da entrega de um bem que tinha sido adquirido a um particular sem direito à dedução. A única diferença em relação ao caso que hoje evocamos resulta do facto de, em 1989, a regulamentação relativa ao regime aplicável aos bens em segunda mão não estar em vigor. Nessa época, com efeito, o artigo 32.° da Sexta Directiva, que previa que o Conselho adoptaria um regime comunitário especial para os bens em segunda mão, os objectos de arte, antiguidades e objectos de colecção antes de 31 de Dezembro de 1977, não tinha ainda recebido aplicação.

37. No processo ORO Amsterdam Beheer e Concerto, o Tribunal de Justiça chegou à conclusão que a dupla tributação a que o empresário que vendia um bem em segunda mão estava sujeito era inevitável, na medida em que não se podia considerar, na falta de disposições comunitárias na matéria, que o Estado estivesse obrigado a prever, na sua legislação nacional, um regime especial aplicável a este tipo de bens. Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça afirmou que «... em caso de omissão do Conselho em tomar medidas relevando da competência exclusiva das Comunidades Europeias, a manutenção ou a instituição, pelos Estados, de medidas nacionais destinadas à realização dos objectivos comunitários, no quadro do dever de cooperação que lhes incumbe por força do artigo 5.° do Tratado [CE (actual artigo 10.° CE)], pode, em certos casos, não suscitar objecções de princípio», mas o Tribunal de Justiça afirmou igualmente que desta jurisprudência «não decorre um princípio geral segundo o qual os Estados-Membros teriam a obrigação de se substituírem ao Conselho quando este não toma as medidas que relevam da sua competência» .

38. Além disto, os juízes comunitários sublinharam igualmente que, «considerado no seu conjunto, o regime comunitário do IVA é o resultado de uma harmonização progressiva das legislações nacionais...» e que «esta harmonização, tal como realizada pelas sucessivas directivas e, nomeadamente, pela Sexta Directiva, só é ainda uma harmonização parcial». O Tribunal de Justiça precisou igualmente que «esta harmonização tem, nomeadamente, por objecto excluir as duplas tributações, sendo inerente ao mecanismo do IVA a dedução, em cada estádio, do imposto que onerou uma operação a montante», mas também acrescentou que «este objectivo não foi... ainda atingido e é impossível encontrar no sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, tal como o mesmo existe actualmente, os fundamentos necessários à definição e à fixação de modalidades de aplicação de um regime comum de tributação que, no domínio do comércio de bens em segunda mão, permita evitar duplas tributações». Daí deduziu que, «enquanto o legislador comunitário não actuar, devemos aplicar o artigo 32.° da Sexta Directiva que se limita a autorizar os Estados-Membros que apliquem um regime especial de IVA para os bens em segunda mão a mantê-lo, mas, em contrapartida, não lhes impõe qualquer obrigação de instituir um no caso de ele não existir» .

39. Consideramos que, pelo menos em princípio, o raciocínio exposto pelo Tribunal de Justiça é aplicável igualmente nos presentes autos. É verdade que o Conselho interveio entretanto para adoptar a directiva relativa ao regime dos bens em segunda mão, mas, como já sublinhámos anteriormente, o caso que hoje discutimos não se insere nesse regime. Portanto, é evidente que, no sistema de IVA actualmente em vigor, subsiste uma lacuna que ainda não foi preenchida no quadro do processo de harmonização.

40. Portanto e podendo-se confirmar que, com base no artigo 5.° do Tratado, as disposições nacionais que visam eliminar esta lacuna podem, em princípio, ser admitidas na condição de se mostrarem coerentes com os princípios do IVA comunitário , não se pode, contudo, afirmar que existam obrigações nesse sentido. Por outras palavras, os Estados-Membros não estão obrigados a introduzir na sua regulamentação relativa ao imposto sobre o valor acrescentado disposições que visem excluir a tributação das entregas de bens em segunda mão efectuadas por um empresário que não pertence à categoria dos sujeitos passivos revendedores, na acepção do artigo 26.° -A da Sexta Directiva, a fim de evitar uma dupla tributação.

Conclusão

41. Pelos motivos acima indicados, propomos que o Tribunal de Justiça responda da maneira seguinte às questões colocadas pelo Bundesfinanzhof, Hamburg:

«1) Um empresário pode afectar legalmente ao seu património privado um bem utilizado de forma mista (para a empresa e para efeitos privados) e independentemente da importância do uso empresarial, na condição de que resulte do seu comportamento, sem ambiguidade, que quis subtrair totalmente o mencionado bem ao regime do imposto sobre o valor acrescentado.

2) A venda de um bem, que o vendedor adquiriu a um particular para as necessidades da sua empresa e sem direito à dedução do imposto pago a montante, está integralmente sujeita ao imposto sobre o volume acrescentado em aplicação do artigo 2.° , n.° 1, e do artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme.»