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Advertência jurídica importante

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61999C0498

Conclusões da advogada-geral Stix-Hackl apresentadas em 27de Septembro de2001. - Town & County Factors Ltd contra Commissioners of Customs & Excise. - Pedido de decisão prejudicial: VAT and Duties Tribunal, Manchester - Reino Unido. - Sexta Directiva IVA - Âmbito de aplicação - Concurso no qual o organizador tem uma mera obrigação moral - Matéria colectável. - Processo C-498/99.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-07173


Conclusões do Advogado-Geral


I - Introdução

1. No presente processo, o Manchester Tribunal Centre - Vat and Duties Tribunals submeteu ao Tribunal de Justiça duas questões para saber se um jogo de azar constitui uma operação sujeita a imposto na acepção do direito do IVA, em particular da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume dos negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (a seguir «Sexta Directiva») , mesmo quando não tem por fundamento um acto jurídico cuja execução possa ser obtida pela via judicial, e para saber como, nesta hipótese, determinar a matéria colectável.

II - Matéria de facto, transmissão do processo principal e questões prejudiciais

2. A County Factors Ltd (a seguir «Town & County») está inscrita no registo do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) no Reino Unido, como membro representativo de um grupo de sociedades, do qual faz parte a sociedade Vernons Games Ltd (a seguir «Vernons»).

3. A Vernons organiza concursos semanais denominados «spot-the-ball» («advinhe onde está a bola»). Durante o período de Junho de 1994 a Novembro de 1995 («período relevante»), a Vernons organizou estes concursos do modo resumido a seguir nos n.os 4 a 8.

4. Os boletins de participação em cada concurso tinham impresso a) uma cópia de uma fotografia tirada durante um desafio de futebol, na qual a bola tinha sido apagada, b) o regulamento do concurso e c) a lista dos prémios. O concorrente podia marcar até 900 cruzes na fotografia, para indicar onde calculava ser mais provável estar o centro da bola de futebol. O custo do direito de participação variava segundo o número de cruzes. Depois de preencher o boletim, o concorrente enviava-o, juntamente com o montante do direito de participação, à Vernons. Um júri de três jogadores de futebol reformados tinha determinado por meio da fotografia retocada onde, em sua opinião, era mais provável estar a bola. O concorrente cujo centro de uma das cruzes estivesse mais próximo do centro da bola de futebol assim localizado ganhava o primeiro prémio, a seguir, o concorrente cujo centro de uma das cruzes estava mais bem colocado ganhava o segundo prémio, e assim por diante.

5. O regulamento de cada um dos concursos tinha as seguintes regras:

«1. Ao concorrer, você concorda em respeitar todas as regras e condições. Concorda que esta transacção constitui apenas uma obrigação moral (binding in honour only) e que qualquer pessoa autorizada a quem entregue o seu boletim é nosso agente. Concorda ainda com todos esses agentes que qualquer transacção entre você e eles constitui apenas uma obrigação moral.

[...]

4. Os prémios ou, em caso de empate, uma repartição equitativa do seu valor em dinheiro, tal como acima referido, será entregue aos concorrentes vencedores, por ordem da precisão das suas apostas na opinião do júri, até serem atribuídos todos os prémios.

5. Se o júri determinar que uma ou mais apostas são totalmente exactas, será atribuído um jackpot no valor de 200 000 GBP em dinheiro ou em prémios (em lugar do referido primeiro prémio) ao concorrente ou esse prémio será partilhado em partes iguais pelos concorrentes em causa. [...]»

6. De acordo com a lei da Inglaterra e do País de Gales, o uso, na regra 1, dos termos «esta transacção constitui apenas uma obrigação moral» («a disposição relativa à obrigação moral») impedia a constituição de qualquer relação legal entre cada um dos concorrentes e a Vernons, com a consequência de que, se um concorrente accionasse judicialmente a Vernons, no sentido de a sua aposta ser tratada de acordo com as regras ou para lhe ser pago ou entregue o prémio que tinha ganho, seria negado provimento à sua acção.

7. As receitas de cada concurso podiam ser calculadas antecipadamente com um muito alto grau de precisão e o montante dos prémios a serem pagos em cada concurso era fixado em correspondência com essas receitas. Os prémios consistiam em dinheiro, bens e serviços. O valor do jackpot mencionado na regra 5 podia exceder, e algumas vezes excedeu, o montante das receitas entradas no concurso em causa. Em nenhum caso, na história do concurso, as receitas foram insuficientes para cobrir os prémios ganhos, nem o organizador de qualquer um dos concursos se recusou a pagar ou a entregar um prémio à pessoa que o tivesse ganho.

8. Na prática, os prémios de cada concurso foram pagos, ou entregues, com base nas receitas obtidas, apesar de não haver nada nas regras nem na lei que obrigasse a Vernons a pagar ou a comprar os prémios com base nas receitas obtidas ou noutras quaisquer receitas específicas. A Vernons não era obrigada, nem pelos termos do negócio nem pela realidade económica da transacção, a tratar as receitas entradas de qualquer modo específico, nem de maneira diferente do que faria tratando-se de dinheiro seu.

9. Por carta de 28 de Março de 1995, os Commissioners of Customs and Excise determinaram que a Town & County devia pagar, relativamente aos períodos contabilísticos incluídos no período relevante, o IVA sobre o montante total dos direitos de participação e não, como esta última sustentava, sobre o montante destes direitos, depois de feita a dedução dos prémios pagos em dinheiro ou do valor dos prémios.

10. A Town & County recorreu desta decisão. No seu despacho de 27 de Agosto de 1996, o tribunal de reenvio decidiu do seguinte modo:

a) à luz do n.° 14 do acórdão do Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1994, Tolsma, C-16/93, Colect., p. I-743, a expressão «binding in honour only», ao impedir a constituição de qualquer relação jurídica entre o concorrente e a Vernons, suscitou a dúvida de saber se uma entrega com uma contrapartida, na acepção do artigo 2.° , n.° 1, da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, foi feita pela Vernons a cada um dos concorrentes. Esta questão será a seguir designada «questão Tolsma»;

b) se houve uma entrega, então, à luz dos n.os 8 a 13 do acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1994, Glawe, C-38/93, Colect., p. I-1679, a matéria colectável, na acepção do artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), era o montante das receitas entradas e não o montante remanescente após pagamento ou entrega dos prémios. Esta questão será a seguir designada «questão Glawe»;

c) a necessidade de reenvio para o Tribunal de Justiça da questão Tolsma seria apreciada numa audiência posterior.

11. As duas decisões proferidas depois da audiência quanto à necessidade de submeter estas duas questões ao Tribunal de Justiça foram objecto de recurso para a High Court of Justice, que decidiu que «as questões Tolsma e Glawe» deviam ser colocadas ao Tribunal de Justiça e devolveu o processo ao tribunal a quo para este efectuar o reenvio.

12. Em consequência, o Manchester Tribunal Centre - VAT and Duties Tribunals pede ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre as seguintes questões:

«1) Numa correcta interpretação das Directivas 67/227/CEE do Conselho, de 11 de Abril de 1967, e 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, em especial dos artigos 2.° , n.° 1, e 6.° , n.° 1, da última, e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em especial no acórdão de 3 de Março de 1994, Tolsma (C-16/93, Colect., p. I-743), uma operação relativamente à qual as partes convencionaram que se tratava de uma obrigação moral (e, por conseguinte, não exigível judicialmente nos termos do direito nacional) é susceptível de constituir uma operação tributável para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado?

2) Se a resposta à questão 1 for afirmativa: numa correcta interpretação das referidas directivas, em especial do artigo 11.° , A, n.° 1, da última, e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal, em especial no acórdão de 5 de Maio de 1994, Glawe (C-38/93, Colect., p. I-1679), a matéria colectável para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado em relação aos serviços de organização de um concurso fornecidos pelo organizador aos concorrentes em contrapartida de um direito de participação pago por estes é

a) o montante dos direitos de participação no concurso, ou

b) o montante dos direitos de participação, deduzido do montante ou do valor dos prémios atribuídos aos concorrentes vencedores, ou

c) qualquer outro montante e, se assim for, qual?

Alternativamente, se estes serviços deverem correctamente ser considerados serviços fornecidos pelo organizador a cada concorrente em contrapartida do preço pago pelo concorrente, o montante tributável em relação a cada fornecimento é

a) o montante da aposta, ou

b) o montante dessa aposta, deduzido da parte proporcional do montante ou do valor dos prémios atribuídos aos concorrentes vencedores, ou

c) qualquer outro montante e, se assim for, qual?»

III - O enquadramento jurídico

13. O artigo 2.° da Sexta Directiva dispõe:

«Estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado:

1. As entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade.

2. As importações de bens.»

14. Nos termos do artigo 6.° , n.° 1, da Sexta Directiva:

«1. Por prestação de serviços entende-se qualquer prestação que não constitua uma entrega de bens na acepção do artigo 5.°

Esta prestação pode, designadamente, consistir:

- na cessão de um bem incorpóreo representado ou não por um título;

- na obrigação de não fazer ou de tolerar um acto ou uma situação;

- na execução de um serviço prestado em consequência de acto da Administração Pública ou em seu nome ou por força da lei.»

15. O artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva dispõe que:

«1. A matéria colectável é constituída:

a) No caso de entregas de bens e de prestações de serviços que não sejam as referidas nas alíneas b), c) e d), por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber, em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações»;

16. O artigo 13.° , B, dispõe que:

«Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso: [...]

f) As apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro, sem prejuízo das condições e dos limites estabelecidos pelos Estados-Membros; [...]»

IV - Quanto à primeira questão prejudicial

A - Argumentos das partes

17. A recorrente no processo principal, Town & County, assinala liminarmente que a noção de «contrapartida» ou «a título oneroso», constante dos artigos 2.° e 11.° da Sexta Directiva, é um conceito de direito comunitário cuja aplicação, por conseguinte, deve ser uniforme em todo o território comunitário. Além disso, é necessário considerar todo o contexto jurídico e factual pertinente, como afirmou o advogado-geral F. G. Jacobs nas suas conclusões no processo Glawe, o que implica, no caso em apreço, que seja tomada em consideração a estrutura do concurso, característica dos jogos de azar.

18. Segundo a Town & County, as convenções em causa no presente processo, com a particularidade de apenas obrigarem «moralmente», não estão submetidas ao IVA. Porque, como resulta do acórdão proferido no processo Tolsma, para poder falar-se de prestação de serviços, é indispensável uma relação jurídica entre o prestador e o beneficiário de um serviço, com fundamento na qual as prestações recíprocas foram fornecidas.

19. Diferentemente do processo Tolsma, não está aqui estabelecida qualquer relação jurídica entre o concorrente e o agente ou entre o concorrente e a Town & County. Isto está de acordo, segundo a parte recorrente, com a jurisprudência nacional relativa aos contratos «que só obrigam moralmente», segundo a qual convenções semelhantes não produzem qualquer efeito jurídico nem são exigíveis por via judicial, isto é, não dão origem nem a direitos nem a obrigações.

20. A operação objecto do presente processo enquadra-se portanto numa categoria especial de situações em que não se verificam as características imperativas da contrapartida ou da exigibilidade por via judicial, apesar do aspecto comercial, isto é, em que os concorrentes sabem perfeitamente que nenhum valor jurídico é atribuído a estas convenções.

21. A Town & County conclui daí que, nestas circunstâncias, não pode de modo nenhum tratar-se de uma operação na acepção do IVA e, portanto, que a organização do concurso «spot-the-ball» não está abrangida pelo âmbito de aplicação do IVA.

22. O Governo do Reino Unido precisa que, nos casos em que um contrato entre duas pessoas contém uma regra de obrigação moral, «binding in honour only», isto significa simplesmente que as partes decidiram que a sua relação não poderia ser exigida por via judicial, mas não que, de maneira geral, não se trata de uma relação jurídica.

23. O presente processo distingue-se do processo Tolsma pelo facto de o organizador e o concorrente terem convencionado a regra acima mencionada na conclusão da operação, com fundamento na qual foi entregue uma prestação contra remuneração. No processo Tolsma, pelo contrário, não foi constituído nenhum vínculo susceptível de ser reconhecido juridicamente e não teve lugar nenhuma operação como a do caso em apreço.

24. O Governo do Reino Unido entende que, para fins de IVA, basta que exista uma relação susceptível se ser reconhecida juridicamente entre o prestador e o destinatário da prestação, relação com base na qual este fornece a título oneroso uma prestação (sujeita a imposto). Pelo contrário, pouco importa que o objecto da obrigação possa ou não ser accionado judicialmente. Qualquer outra interpretação da Sexta Directiva seria contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça e ao princípio da neutralidade fiscal e incitaria abertamente os operadores a praticarem a fraude fiscal.

25. O Governo do Reino Unido argumenta, além disso, que, se mesmo as transacções ilícitas não susceptíveis de ser judicialmente exigidas em numerosos sistemas jurídicos estão, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, sujeitas ao IVA em virtude do princípio da neutralidade fiscal, isto deve igualmente ser válido para uma operação como a do caso em apreço.

26. Por fim, a aplicação da Sexta Directiva também não poderia estar subordinada à possibilidade de obter, por via judicial, o cumprimento de convenções, porque uma tal possibilidade pode variar de um Estado-Membro para outro e é assim susceptível de dar origem a uma ruptura, sem motivo legítimo, da uniformidade do tratamento fiscal na Comunidade.

27. O Governo do Reino Unido considera que à primeira questão prejudicial deve, por conseguinte, dar-se uma resposta positiva.

28. Do mesmo modo, segundo a Comissão, uma operação como a que é objecto do presente processo não pode escapar ao âmbito de aplicação do IVA por não se poder exigir o seu cumprimento por via judicial. Existe uma operação claramente definida que implica uma contrapartida e, para aplicar o artigo 2.° da Sexta Directiva, apenas importa saber se é convencionada uma remuneração e não se existe uma contrapartida judicialmente exigível.

29. De resto, a Comissão contesta a ideia de que, segundo o direito inglês, a cláusula que «só obriga moralmente» exclui efectivamente qualquer relação jurídica entre as duas partes.

30. Diferentemente do presente processo, o processo Tolsma não tinha por objecto uma convenção que só obriga moralmente; também não tinha sido paga nenhuma remuneração por uma prestação determinada.

31. A Comissão observa igualmente que a tese defendida pela Town & County teria por consequência que as operações relativas a diversos jogos de azar não estariam abrangidas, em numerosos Estados-Membros, pelo âmbito de aplicação do IVA, sem que fosse necessário invocar uma excepção, como a prevista no artigo 13.° , B, alínea f), da Sexta Directiva. Com efeito, em numerosos Estados-Membros, o cumprimento de tais convenções não pode ser obtido judicialmente.

B - Apreciação

32. Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio quer saber, em substância, se uma operação pode constituir uma operação sujeita a imposto na acepção da Sexta Directiva, mesmo quando a operação é fonte de uma obrigação cujo cumprimento o direito nacional não permite obter por via judicial, devido a uma cláusula de «obrigação moral».

33. Quanto a este ponto, deve observar-se, em primeiro lugar, que não é necessário alongar-se, no presente processo, sobre a Primeira Directiva 67/227/CEE do Conselho, de 11 de Abril de 1967, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios (JO 1967, 71, p. 1301; EE 09 F1 p. 3), referida na primeira questão, visto que já não estava em vigor quando se realizaram as operações em litígio. Além disso, para responder à primeira questão, não é necessário, como resulta da apreciação seguinte, interpretar o artigo 6.° , n.° 1, da directiva referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que esta disposição só define o que deve ser considerado «prestação de serviços», na acepção da Sexta Directiva.

34. Por força do artigo 2.° , n.° 1, da Sexta Directiva, estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado «as entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade». Um operação sujeita a imposto caracteriza-se, portanto, pelo facto de se poder relacionar uma contrapartida com uma prestação de serviços ou uma entrega de bens, de tal modo que se considera a referida prestação ou entrega como efectuada «a título oneroso».

35. O Tribunal de Justiça declarou a este respeito, nomeadamente nos processos Coöperatieve Aardappelenbewaarsplaats , Apple and Pear Development Council e Naturally Yours Cosmetics , que o conceito de prestação a título oneroso, na acepção do artigo 2.° , n.° 1, pressupõe a existência de um «nexo directo» entre a prestação realizada e a contrapartida recebida. Apenas quando existe este nexo entre a prestação e a contrapartida pode tratar-se de uma prestação a título oneroso e, portanto, de uma operação sujeita a imposto.

36. No processo Tolsma, o Tribunal de Justiça fez uma precisão sobre este ponto, na medida em que sublinhou que uma prestação só é efectuada «a título oneroso», e só é assim tributável, «se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são transaccionadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efectivo do serviço fornecido ao beneficiário» .

37. À luz do artigo 2.° da directiva e da jurisprudência do Tribunal de Justiça, acima referida, não se deve entender este critério da «relação jurídica» de maneira isolada, no sentido de que se trata a este propósito de uma característica jurídica especial determinada que deveria apresentar a operação em causa. No que diz respeito à «relação jurídica», trata-se, pelo contrário, de uma relação entre a prestação e o contravalor.

38. De resto, a criação de uma «relação jurídica», na acepção do acórdão proferido no processo Tolsma, pode não estar subordinada à existência de características jurídicas particulares, nomeadamente contratuais ou processuais, tais como a possibilidade de exigir o cumprimento por via judicial. Dado que as condições relativas à existência e ao teor das relações jurídicas variam, com efeito, segundo as ordens jurídicas nacionais, isto não seria compatível com o princípio da neutralidade fiscal e com o objectivo da harmonização do IVA. De outro modo, a inserção de uma cláusula que apenas representa um dever moral daria a possibilidade de praticar a fraude fiscal.

39. Portanto, há apenas que determinar se as prestações foram trocadas no âmbito de convenções - mesmo que só obriguem moralmente - das quais resulta que as prestações fornecidas reciprocamente estão directamente ligadas.

40. No processo Tolsma, não havia precisamente qualquer convenção fosse de que natureza fosse que tivesse dado origem a um nexo suficiente entre a prestação e a contrapartida para que se pudesse falar de uma operação «a título oneroso», na acepção do artigo 2.° da directiva. Com efeito, embora o «prestador» (no caso em apreço, um músico de rua) tenha efectivamente recebido somas «em contrapartida do» serviço fornecido, os «beneficiários» só as davam de livre vontade e recebiam a prestação, em princípio, independentemente também da sua «contrapartida» .

41. Diferentemente do processo Tolsma, existe, pelo contrário, em casos como o do processo principal, muito provavelmente, uma espécie de convenção segundo a qual o direito de participação é pago em contrapartida do serviço fornecido pelo organizador do jogo. Para poder participar no jogo, com efeito, o concorrente deve submeter-se ao regulamento estabelecido pelo organizador e aceitar todas as condições, incluindo o regulamento. Só depois de ter entregue o boletim do jogo e pago o direito correspondente respeitando estas condições é que o jogador pode participar no concurso e lhe é oferecida uma probabilidade de ganho.

42. Sendo as prestações trocadas no quadro de convenções correspondentes que mostram que as ditas prestações estão em relação directa e preenchem assim o critério «a título oneroso», indicado no artigo 2.° da Sexta Directiva, existe de qualquer modo uma «relação jurídica», na acepção do acórdão Tolsma. Pouco importa, por conseguinte, que as cláusulas contenham obrigações morais que excluam a possibilidade de acção judicial.

43. Por fim, de acordo com as observações do Governo do Reino Unido, deve considerar-se igualmente que se pode inferir da jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual mesmo as convenções ilícitas, não susceptíveis de serem objecto de acção judicial em numerosas ordens jurídicas, podem ser sujeitas ao IVA , que o mesmo deve a fortiori passar-se com as convenções lícitas não susceptíveis de serem objecto de acção judicial, como a do processo principal.

44. Portanto, deve concluir-se que existe uma «relação jurídica» mesmo quando se trata de uma convenção não susceptível de ser objecto de acção judicial.

45. Por conseguinte, deve responder-se à primeira questão prejudicial que, nos termos da Sexta Directiva, nomeadamente do seu artigo 2.° , n.° 1, uma operação relativamente à qual as partes convencionaram que se tratava de uma «obrigação moral» (e, por conseguinte, não exigível judicialmente nos termos do direito nacional) é, em princípio, susceptível de constituir uma operação tributável para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado.

V - Quanto à segunda questão prejudicial

46. Embora apenas se refira expressamente à organização do concurso, a segunda questão prejudicial implica, todavia, a atribuição de uma probabilidade de ganho, tendo em conta que se trata de um jogo de azar.

A - Argumentos das partes

47. A Town & County afirma que a prestação de serviços que fornece aos concorrentes se limita à organização de um concurso e que só oferece o quadro no interior do qual o referido concurso pode realizar-se. Na sua opinião, deve considerar-se que a transacção realizada com os jogadores é uma «aposta» ou um «jogo de azar ou a dinheiro», na acepção do artigo 13.° , B, alínea f), da Sexta Directiva que, nos termos desta disposição, deve, em princípio, estar isenta do IVA. A administração alfandegária britânica tinha manifestamente a intenção de tributar essas operações não porque elas não podiam ser consideradas uma «aposta» ou um «jogo de azar ou a dinheiro», mas porque a administração se tinha fundamentado no poder de apreciação atribuído aos Estados-Membros para tributar certas operações, quando as mesmas estariam, doutro modo, isentas, nos termos do artigo 13.° , B, alínea f), da Sexta Directiva.

48. A Town & County invoca, em seguida, o argumento de que, ao examinar o que constitui a contrapartida, se deve tomar em consideração a estrutura da operação - quer se trate de operações de jogo de azar ou, de qualquer modo, de operações que são aparentadas com estas.

49. A recorrente refere-se, neste contexto, à similitude factual do processo principal com as operações tratadas nos processos Glawe e Fischer.

A este respeito, a Town & County acrescenta que, no processo Glawe, tanto o Tribunal de Justiça como o advogado-geral concluíram que o empresário não devia ser tributado com base no montante total da receita introduzida nas máquinas de jogo, mas unicamente no limite da proporção de cada aposta que tinha o direito de conservar por sua própria conta e que não distribuía em ganhos aos jogadores.

50. Por fim, a Town & County alega igualmente que o Tribunal de Justiça proferiu os acórdãos Glawe e Fischer com fundamento nos princípios gerais do direito do IVA, nomeadamente no princípio segundo o qual a contrapartida deve corresponder ao montante efectivamente recebido pelo sujeito passivo e não a um montante superior. Esta tese é confirmada pela abordagem feita pelo Tribunal de Justiça nos processos Argos Distributors , Elida Gibbs e First National Bank of Chicago .

51. Para concluir, a Town & County propõe, portanto, que se responda à segunda questão no sentido de que a remuneração a tributar, que a Town & County recebeu pela prestação fornecida - a saber, a organização do concurso «spot-the-ball» para os concorrentes -, corresponde ao montante dos direitos de participação pagos pelos concorrentes, depois de deduzir o montante ou o valor dos prémios distribuídos aos concorrentes que ganharam no jogo.

52. O Governo do Reino Unido afirma que, à luz da redacção do artigo 11.° , A, n.° 1, da Sexta Directiva, a matéria colectável para a organização de um concurso como o que é objecto do presente processo é composta pela remuneração que cada participante paga ao organizador. A Sexta Directiva não permite restringir a matéria colectável ao montante ou ao valor dos prémios atribuídos aos concorrentes premiados (ou a uma fracção proporcional do referido montante ou valor).

53. Segundo o Governo do Reino Unido, a jurisprudência Glawe não se aplica ao presente caso concreto, porque o organizador do concurso não está legalmente privado do poder de dispor de qualquer parte dos direitos pagos pelos concorrentes e não tem qualquer obrigação jurídica de atribuir os prémios utilizando as receitas ou qualquer outra soma especial de dinheiro.

54. Do mesmo modo, o caso Fischer não pode ser transposto para o jogo de azar, em causa no presente processo, visto que a distribuição dos prémios - contrariamente ao outro processo - não consiste, neste caso, num reembolso da aposta (eventualmente acrescido de um montante correspondente às probabilidades das apostas), nem apresenta qualquer relação com o montante do direito de participação pago pelos concorrentes premiados. Por conseguinte, o organizador do concurso é, neste caso concreto, comparável a qualquer outro prestador de serviços que utiliza as remunerações recebidas em contrapartida das suas prestações para financiar as suas transacções correntes. A circunstância de o montante dos prémios distribuídos ser calculado com base nas receitas previstas, também não distingue o organizador do concurso de qualquer outro operador económico noutro sector.

55. Segundo o Governo do Reino Unido, deve, portanto, responder-se que a matéria colectável relativa à organização do concurso, isto é, dum jogo de azar, como no caso concreto, é constituída pela soma dos direitos de participação pagos por cada um dos concorrentes.

56. A Comissão sustenta que a resposta à segunda questão prejudicial está no acórdão proferido no processo Glawe e nas conclusões apresentadas pelo advogado-geral no processo Fischer. Não tem qualquer utilidade distinguir entre o concurso em questão neste caso concreto e os jogos de azar ou a dinheiro (máquinas de jogo, roleta) de que tratam os dois processos acima referidos.

57. A Comissão refere-se, em seguida, à jurisprudência do Tribunal de Justiça nos processos Naturally Yours Cosmetics e Boots Company (acórdão de 27 de Março de 1990, C-126/88, Colect., p. I-1235), segundo a qual a contrapartida efectivamente recebida pelo fornecedor constitui a matéria colectável. Num caso como o caso em apreço, é portanto imperativo determinar em que consiste a prestação de serviços fornecida e que proporção do direito de participação é destinada ao pagamento da dita prestação.

58. A prestação fornecida pelo organizador do concurso consiste em organizar o concurso, prestação paga pelo montante que lhe resta efectivamente depois da dedução dos prémios. É com este mesmo montante que cobre as despesas de organização e os impostos e que garante uma margem de lucro.

59. Em consequência disto, uma parte da aposta é reservada para os prémios, enquanto a outra parte serve para pagar ao organizador pelo serviço que constitui a organização. Apenas esta última parte, isto é, a soma dos direitos de participação menos os prémios distribuídos, está sujeita ao IVA, embora a soma que constitui os ganhos não seja «fixada pela lei», contrariamente ao que sucede no processo Glawe, mas estabelecida pelo próprio organizador. O único facto pertinente é que uma parte da aposta paga por cada um dos concorrentes constitui para o organizador não uma remuneração, mas uma contribuição para o bolo.

60. No entanto, o presente processo distingue-se em seguida dos processos Glawe e Fischer por serem distribuídos não só prémios em dinheiro, mas também sob a forma de bens e de prestações de serviços. Existem dois modos de ter em conta esta circunstância: quer tratando o organizador como consumidor final dos bens e serviços que ele põe concretamente em jogo como sendo a sua própria «aposta» e não se pode invocar, em seguida, o benefício da dedução do imposto pago a montante para os ditos bens e serviços, quer considerando-os como despesas efectuadas pelo organizador para organizar o jogo, cujos custos representam uma parte da sua remuneração e lhe dão direito à dedução.

61. Segundo a Comissão, pouco importa, afinal, saber se se deve determinar a matéria colectável como sendo uma parte proporcional do total dos direitos de participação pagos no âmbito de um concurso ou uma percentagem de cada uma das prestações fornecidas a cada concorrente. O facto de não se poder estabelecer exactamente, no momento do pagamento, o montante dos elementos que compõem a remuneração do direito de participação não impede que se trate a operação para efeitos de IVA do modo que foi exposto. Basta, segundo a Comissão, definir a posteriori o valor da contrapartida, o que também, na prática, não causa dificuldades. Além disso, segundo o acórdão proferido no processo First National Bank of Chicago, também não é necessário que o destinatário do serviço conheça o montante exacto da contrapartida que constitui a matéria colectável.

62. Por isso, a Comissão conclui daí que a matéria colectável para uma operação como a do caso em apreço é constituída pelo total dos direitos de participação, depois de deduzido o montante ou o valor dos prémios distribuídos aos vencedores.

B - Apreciação

63. Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio quer saber, em substância, se, para uma operação como a do processo principal, se deve calcular a matéria colectável prevista pela Sexta Directiva com base no montante dos direitos de participação ou com base no referido montante depois de deduzidos os prémios distribuídos, ou de qualquer outra forma.

64. No âmbito da primeira questão prejudicial, era preciso examinar, com fundamento no artigo 2.° da Sexta Directiva, se a operação objecto do presente processo entra de modo geral no âmbito de aplicação da Sexta Directiva, portanto, se existe, em princípio, uma prestação efectuada de qualquer modo a título oneroso.

65. Agora, deve determinar-se, com fundamento no artigo 11.° , A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva, o modo de cálculo exacto da matéria colectável e, ao fazê-lo, cada um dos elementos que é necessário incluir. Nos termos da disposição acima referida, a matéria colectável é constituída, no caso de entregas de bens e de prestações de serviços, «por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro».

66. Em jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça declarou quanto a este ponto que a matéria colectável se determina segundo a contrapartida realmente recebida pelo prestador, pela sua entrega ou prestação de serviços, contrapartida que constitui um valor subjectivo, que pode ser expresso em dinheiro e estar em relação directa com a entrega ou o serviço .

67. Por consequência, para calcular a matéria colectável, convém primeiro procurar as prestações recíprocas que compõem uma operação como a que é objecto do processo principal, ou seja, procurar o montante a imputar como remuneração do serviço fornecido.

1. Os jogos de azar no direito do IVA

68. Como já sublinharam o advogado-geral F. G. Jacobs nas suas conclusões no processo Glawe e também, recentemente, o Tribunal de Justiça , as operações de jogos de azar geralmente prestam-se mal à aplicação do IVA. Era provavelmente por esta razão que a Comissão, na sua proposta de Sexta Directiva, tinha igualmente defendido a tese de que seria preferível submeter os jogos de azar e as lotarias a um imposto especial .

69. Na Sexta Directiva, as dificuldades práticas ligadas à aplicação do IVA a este género de operações foram, de qualquer modo, tomadas em consideração, na medida em que os jogos de azar ou a dinheiro estão em princípio exonerados de IVA, nos termos do artigo 13.° , B, alínea f). Todavia, foi deixada à apreciação de cada Estado-Membro, segundo a redacção desta disposição, respeitando o princípio da neutralidade fiscal, a fixação das «condições e limites» de uma tal isenção pelas quais os Estados-Membros podem, apesar de tudo, tributar certas formas de jogos de azar que a isso se prestem do ponto de vista da sua estrutura .

70. As dificuldades particulares ligadas à aplicação do IVA aos jogos de azar em comparação com a sua aplicação a outras operações resultam da natureza dos referidos jogos, que não é certamente orientada prioritariamente para o consumo (final) remunerado de bens ou de serviços aos quais se aplica o IVA, mas para o pagamento de um ganho que está ligado à «contrapartida» do jogador, a sua aposta, por um elemento de probabilidade, a saber, a probabilidade de ganho.

71. O IVA está ligado, em princípio, à transferência efectiva de fundos do sujeito passivo para o destinatário do serviço ou da entrega. Este fenómeno encontra a sua expressão no princípio fiscal segundo o qual, por um lado, o IVA deve ser cobrado proporcionalmente às operações efectivamente realizadas pelo sujeito passivo, por meio das suas entregas ou serviços, e, por outro, a administração fiscal não pode cobrar um montante superior ao que foi pago ao sujeito passivo.

72. Além das formas possíveis de trocas de prestações em função da organização do jogo de azar, isto é, fornecimento de prestações de serviços ou entrega de bens a título oneroso, produz-se, de maneira característica em tais jogos, uma outra forma de «troca de prestações» (condicionada pela sorte) que só dificilmente se pode apreender com os conceitos do direito fiscal.

73. No âmbito de um jogo de azar, a transferência efectiva de fundos é, no final, determinada pela realização de uma probabilidade. Do ponto de vista económico, opera-se por intermédio de um «fundo comum» que contém um elemento de compensação (as perdas de um jogador alimentam os ganhos do outro). As noções de direito fiscal («contrapartida», «entrega», etc.) só podem, portanto, aplicar-se às transacções de jogos de azar em certas condições ou depois de uma análise mais precisa da estrutura do jogo.

74. Como a aplicação das noções de direito fiscal depende da organização concreta da estrutura do jogo e do seu desenrolar, em razão da divergência entre a natureza do jogo de azar, caracterizado pela probabilidade dos ganhos, e os conceitos do IVA, baseado numa troca «clássica» de prestações, não parece «de todo oportuno extrair conclusões gerais da tributação dessas operações para as aplicar à tributação de fornecimentos normais de bens» , mas, além disso, também não é possível transpor liminarmente para um outro jogo de azar uma matéria colectável de um jogo determinado.

2. A jurisprudência Glawe

75. A recorrente no processo principal assim como a Comissão fundamentam-se no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça e nas conclusões do advogado-geral no processo Glawe . Defendem a tese de que a prestação de serviços fornecida pelo organizador apenas consiste em organizar o jogo e que só uma parte dos direitos de participação constitui uma remuneração, a saber, os direitos referidos menos a parte correspondente aos prémios distribuídos aos jogadores. Por esta razão, os prémios distribuídos no presente processo como os do caso das máquinas de jogo em causa no processo Glawe não devem ser incluídos na matéria colectável.

76. Quanto ao carácter transponível da jurisprudência Glawe para outro jogo de azar, como o do processo principal, a prudência parece, todavia, impor-se.

3. Aplicação da jurisprudência anterior a um caso como o do processo principal

77. A título liminar, convém acentuar que a estrutura de um jogo de azar, como o que está em causa no processo principal, se distingue, em pontos essenciais, da estrutura de um jogo da mesma natureza que se joga com máquinas de jogo, como no processo Glawe.

78. Por esta razão, na apreciação que fez no processo Glawe, segundo a qual a prestação recebida pelo organizador do jogo só consiste nas apostas residuais depois da distribuição dos prémios, o Tribunal de Justiça referiu-se expressamente ao facto de as máquinas de jogo serem, em razão de disposições legais imperativas, concebidas de modo a que, em média, pelo menos 60% das apostas entregues pelos jogadores lhes sejam distribuídas a título de prémios . No processo Glawe, foi cumprida a obrigação de pagar uma certa parte das apostas feitas, devido ao facto de as máquinas de jogo instaladas estarem tecnicamente preparadas de maneira a que a parte das apostas destinadas aos prémios fosse reunida num compartimento separado a partir do qual os prémios eram distribuídos.

79. Podem ser identificados pelo menos dois princípios relativos ao cálculo do IVA, que o Tribunal de Justiça tomou (implicitamente) em conta no processo Glawe.

a) Primeiro princípio

80. Segundo o primeiro princípio, o sistema do IVA só pode onerar o consumidor final . Mas isto exclui mesmo a tributação do valor dos prémios distribuídos cuja percentagem é imperativamente estabelecida por lei. Porque, para uma tal percentagem de prémios distribuídos, o sujeito passivo não tem a possibilidade de repercutir economicamente no consumidor (jogador) o IVA cobrado sobre o montante total das apostas adaptando em consequência o montante dos ganhos distribuídos. Mas, na falta de tal possibilidade, isto poderia mesmo levar a que o imposto que o sujeito passivo deve pagar excedesse a proporção das apostas que lhe resta depois da dedução dos ganhos distribuídos. Se, pelo contrário, só esta mesma proporção constituir a matéria colectável, a hipótese evocada não se pode produzir.

81. Mas o problema da transferência do ónus económico do imposto não pode colocar-se, no que diz respeito aos jogos de azar, em causa no presente processo, porque, segundo os factos descritos pelo órgão jurisdicional de reenvio, a percentagem dos prémios não é imposta por lei, mas fixada pelo próprio organizador, em função dos dados económicos.

b) Segundo princípio

82. De acordo com o segundo princípio, a matéria colectável só pode ser constituída pela contrapartida efectivamente recebida pelo serviço prestado .

83. Como pelo menos 60% das apostas feitas deviam ser obrigatoriamente distribuídas, e como as apostas eram tecnicamente separadas, o Tribunal de Justiça deduziu daí, no processo Glawe, que as moedas distribuídas nunca tinham realmente sido adquiridas pelo organizador e que esta proporção das apostas não poderia, portanto, constituir uma contrapartida .

84. Diferentemente desse processo, as apostas entregues num jogo de azar, como o do processo principal, não são separadas deste modo. O organizador do jogo não retira qualquer parte das apostas entregues, ele recebe efectivamente a totalidade da soma e pode dispor dela. Os prémios podem ser distribuídos, afinal, a partir desses fundos ou de outros fundos, ou mesmo de qualquer outro modo, a saber, sob a forma de prémios em géneros (fornecimento de bens ou prestações de serviços).

85. Quanto à questão de saber em que consistem respectivamente a prestação e a contrapartida, deve, portanto, apreciar-se o presente jogo de azar de uma maneira diferente da seguida no caso de um jogo funcionando com máquinas de jogo, como no processo Glawe, contrariamente aos argumentos apresentados pela Town & County e pela Comissão.

86. Mesmo a circunstância de existir eventualmente uma conta distinta, na qual figuram os direitos de participação destinados aos prémios e da qual são retirados os prémios distribuídos, não muda nada.

4. Prestações fornecidas pelo organizador de jogos de azar num caso como o do processo principal

87. As prestações que o organizador de jogos fornece aos jogadores são igualmente decisivas para determinar a matéria colectável.

88. Há que tomar em consideração todas as circunstâncias nas quais se desenrola a operação em questão, do ponto de vista de um observador médio, para determinar de que prestações se compõe a operação de um sujeito passivo, para saber, portanto, se estamos em presença de uma prestação de serviços ou de uma entrega de bens e se existe uma prestação única .

89. A prestação fornecida pelo organizador do jogo, no caso em apreço, consiste numa prestação de serviços que compreende tanto a organização do jogo como a atribuição de uma probabilidade de ganhos. Num jogo de azar como o do processo principal seria artificial separar a prestação fornecida pelo organizador do jogo e relacionar a contrapartida (direito de participação) apenas com a organização do jogo e não com a atribuição de uma probabilidade de ganhos. Com efeito, o jogador médio paga a aposta precisamente com o fim de obter esta probabilidade de ganhos e não apenas para beneficiar da organização do jogo. Por outro lado, o organizador não organizaria o jogo e não atribuiria uma probabilidade de ganhos se não recebesse as apostas em contrapartida.

90. Além disso, a probabilidade de ganhos é proporcional ao montante da aposta: quanto mais o jogador aposta uma soma elevada, mais é elevado o número de cruzes que tem o direito de desenhar e, portanto, maiores são as probabilidades de ganhos.

91. Por conseguinte, o nexo directo exigido existe igualmente entre, por um lado, a prestação de serviços do organizador, composta pela organização e pela atribuição de uma probabilidade de ganhos, e, por outro lado, as apostas feitas em contrapartida.

92. É precisamente a atribuição de uma probabilidade de ganhos, e não a distribuição destes, que faz parte da prestação fornecida pelo organizador, na acepção do IVA. Na verdade, em relação à distribuição de prémios, falta o nexo directo com a contrapartida. Com efeito, o jogador não aposta com a condição de ganhar, mas com a condição de obter uma probabilidade de ganhos, portanto, na esperança de conquistar os ganhos. O facto de um jogador não poder estar certo de ganhar faz parte da natureza dos jogos de azar.

93. Assim perspectivada, a distribuição de ganhos não constitui nem uma entrega de bens nem uma prestação de serviços a título oneroso, na acepção dos artigos 2.° e 11.° da Sexta Directiva. Para o organizador de jogos, ela constitui antes um simples «factor de custos» para fornecer a prestação de serviços, no caso em apreço, para atribuir a probabilidade de ganhos.

94. Decorre das considerações que precedem que, num jogo como o do processo principal, o organizador do jogo fornece uma prestação de serviços ao organizar o jogo e ao atribuir uma probabilidade de ganhos, prestação pela qual recebe efectivamente em contrapartida as apostas pagas. Por consequência, a matéria colectável abrange a totalidade das apostas pagas.

5. Dedução

95. Sendo certo que, segundo o princípio da neutralidade fiscal do sistema do IVA, o sujeito passivo deve ser exonerado de qualquer IVA sobre os diferentes elementos do custo da prestação, deve examinar-se em que medida o organizador tem direito a beneficiar da dedução prevista no artigo 17.° da Sexta Directiva, relativamente aos prémios distribuídos.

96. A ausência de um nexo directo de remuneração entre os ganhos do jogo e as apostas entregues não muda em nada a legitimidade de princípio da dedução, visto que esta última, por força do artigo 17.° , n.° 2, apenas impõe que os bens e serviços sejam utilizados para as necessidades das operações tributáveis do sujeito passivo. Isto vale, incontestavelmente, também para as recompensas em bens que o organizador de jogos distribui como prémios, isto é, para os bens correspondentes e os serviços, tais como, por exemplo, as viagens.

97. Pelo contrário, no que respeita aos prémios em dinheiro, não há, a priori, qualquer direito de tributar o organizador de jogos enquanto sujeito passivo; é por isso que também não há despesas susceptíveis de serem fiscalmente neutralizadas pela dedução.

98. Um organizador de jogos tem, no entanto, o direito de beneficiar da dedução pelos bens e serviços que adquire para transmitir em seguida aos vencedores a título de prémios.

6. Questão subsidiária

99. No âmbito da segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio coloca ainda uma questão alternativa, para o caso de o concurso dever ser considerado como fornecido pelo organizador a cada jogador, em contrapartida de um direito de participação individual. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio deseja saber se, nesta perspectiva, o montante tributável consiste no montante do direito de participação ou no referido montante diminuído de uma parte proporcional da soma distribuída a título de prémios ou em qualquer outro montante.

100. O problema da compensação das perdas de certos jogadores com os ganhos dos outros jogadores, que se coloca então - de maneira geral - no que diz respeito à tributação exacta da contrapartida fornecida por cada jogador, está na base desta questão, se se presumir que o montante exacto dos componentes da remuneração deve ser calculado deduzindo a «restituição» de uma soma sob forma de prémio. Quanto a este ponto, o montante da contrapartida variaria de caso para caso, consoante uma pessoa ganhou ou não.

101. Mas este problema de compensação não se coloca, segundo a solução que preconizamos aqui, se não se dever considerar que a distribuição de ganhos constitui a prestação do organizador de jogos. Assim, os prémios só são elementos de custo da prestação que consiste na atribuição de uma probabilidade de prémios. Mas, para atribuir esta probabilidade de prémios, o organizador do jogo recebe um tanto de cada um dos concorrentes, quer eles próprios façam ulteriormente parte dos perdedores ou dos vencedores.

102. Por conseguinte, não faz qualquer diferença saber se a matéria colectável se refere a cada um dos jogadores ou ao conjunto do jogo. É por isso que não é necessário alongarmo-nos mais sobre a questão alternativa colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

103. Convém, portanto, responder à segunda questão prejudicial que, nos termos do artigo 11.° , A, n.° 1, da Sexta Directiva, a matéria colectável para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado em relação aos serviços de organização de um concurso fornecidos pelo organizador aos concorrentes, em contrapartida de um direito de participação pago por estes, é constituída pelo montante dos direitos de participação.

VI - Conclusão

104. Tendo em vista as considerações que precedem, propomos ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais do seguinte modo:

«1) Segundo a Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1997, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume dos negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, nomeadamente, à luz do seu artigo 2.° , n.° 1, é, em princípio, susceptível de constituir uma operação tributável, para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, uma operação relativamente à qual as partes convencionaram que se trata de uma obrigação moral (e, por conseguinte, não exigível judicialmente em termos do direito nacional).

2) Nos termos do artigo 11.° , A, n.° 1, da Sexta Directiva, a matéria colectável para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado em relação aos serviços de organização de um concurso fornecidos pelo organizador aos concorrentes, em contrapartida de um direito de participação pago por estes, é constituída pelo montante dos direitos de participação.»