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Advertência jurídica importante

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62000C0062

Conclusões do advogado-geral Geelhoed apresentadas em 24 de Janeiro de 2002. - Marks & Spencer plc contra Commissioners of Customs & Excise. - Pedido de decisão prejudicial: Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) - Reino Unido. - Sexta Directiva IVA - Legislação nacional que reduz, com efeito retroactivo, um prazo de prescrição para o reembolso de quantias indevidamente cobradas - Compatibilidade com os princípios da efectividade e da protecção da confiança legítima. - Processo C-62/00.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-06325


Conclusões do Advogado-Geral


I - Introdução

1 O Tribunal de Justiça é convidado no âmbito do presente processo a título prejudicial a precisar se o facto de se recusar, com efeito retroactivo, o reembolso das quantias que foram cobradas nos termos do IVA mais de três anos antes da introdução do pedido de reembolso é compatível com o direito comunitário. No caso em apreço, a questão coloca-se a respeito de um período durante o qual um Estado-Membro não tinha correctamente transposto para a sua ordem jurídica interna uma disposição directamente aplicável de uma directiva.

II - Enquadramento jurídico

Direito comunitário

2 O artigo 11._ da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (1) (a seguir «Sexta Directiva») dispõe:

«A. No território do país

1. A matéria colectável é constituída:

a) No caso de entregas de bens e de prestações de serviços que não sejam as referidas nas alíneas b) , c) e d), por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações;

[...]»

O direito nacional

3 As duas partes no processo na causa principal e o tribunal de reenvio reconhecem que o artigo 11._, A, n._ 1, alínea a), da Sexta Directiva só foi correctamente transposto para o direito interno a partir de 1 de Agosto de 1992 nos termos do Finance (N._ 2) Act 1992, que alterou a Section 10(3) do Value Added Tax Act 1983 (a seguir «Act 1983»). Esta disposição tinha a seguinte redacção:

«Se a contrapartida da entrega ou da prestação não consistir, no todo ou em parte, em dinheiro, o valor a tomar em consideração será o correspondente valor em dinheiro, acrescido do imposto devido.»

4 O Act 1983 foi revogado e substituído pelo Value Added Tax Act 1994 (a seguir «Act 1994») com efeitos a partir de 1 de Setembro de 1994. A Section 19(3) do Act 1994 tem teor idêntico à Section 10(3) do Act 1983, na redacção que lhe foi dada pelo Finance (N._ 2) Act 1992, com a excepção de se utilizar na Section 19(3) a expressão «IVA devido» ao passo que na Section 10(3), na sua redacção alterada, se utilizava a expressão «imposto devido».

5 No que toca à legislação sobre o reembolso das quantias de IVA indevidamente cobradas, as disposições da Section 24 do Finance Act 1989 tinham, na medida que importa para o caso em apreço, a seguinte redacção (com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1990):

«1) Quando uma pessoa tenha pago um determinado montante aos Commissioners a título de imposto sobre o valor acrescentado que não era devido, os Commissioners estão obrigados a devolver-lhe esse montante.

2) Os Commissioners apenas estão obrigados a devolver um montante nos termos desta Section com base num pedido efectuado para esse efeito.

[...]

4) Não pode ser pedido qualquer montante ao abrigo desta Section após o termo dos seis anos subsequentes à data em que o montante foi pago, excepto se for aplicável a Subsection (5) infra.

5) Quando o pagamento de um montante aos Commissioners tenha sido feito por erro, o pedido de reembolso desse montante ao abrigo desta Section pode ser feito a qualquer momento antes do termo dos seis anos subsequentes à data em que o reclamante descobriu o erro ou poderia com razoável diligência tê-lo descoberto.

[...]

7) Excepto nos casos previstos nesta Section, os Commissioners não estão obrigados a devolver qualquer montante que lhes seja pago a título do imposto sobre o valor acrescentado pelo facto de o imposto não ser devido.

[...]»

6 A Section 24 do Finance Act 1989 foi revogada e substituída pela Section 80 do Act 1994, com efeitos a partir de 1 de Setembro de 1994. As partes relevantes da Section 80 têm redacção idêntica à da Section 24, excepto que o Act 1994 passou a referir o «IVA» ao passo que o Finance Act 1989 se referia ao «imposto» e ao «imposto sobre o valor acrescentado».

7 Em 18 de Julho de 1996, o ministro das Finanças anunciou no Parlamento que, tendo em conta o constante aumento dos riscos incorridos pelo Tesouro em razão dos pedidos de reembolso com efeito retroactivo das quantias abusivamente cobradas a título do imposto, o governo tinha a intenção de introduzir, com efeitos a partir de 18 de Junho de 1996, um prazo de prescrição de três anos, com efeito retroactivo, no que toca aos pedidos de reembolso respeitantes ao IVA e a outros impostos indirectos. A alteração legislativa proposta deveria começar a produzir efeitos na data deste anúncio, de forma a se evitar que ficasse destituída de efeitos devido ao tempo decorrido antes do termo do processo parlamentar.

8 Em 4 de Dezembro de 1996, a House of Commons adoptou as propostas orçamentais do governo, incluindo a proposta anunciada em 18 de Julho de 1996, que foi incluída no projecto do Finance Act como a sua Section 47.

9 O Finance Act 1997 foi aprovado em 19 de Março de 1997. A sua Section 47(1) altera a Section 80 do Act 1994. A Section 80(5) foi inteiramente revogada. A Section 80(4) foi alterada para a seguinte redacção:

«Os Commissioners não estão obrigados, com base num pedido feito nos termos desta Section, a reembolsar qualquer montante que lhes tenha sido pago mais de três anos antes da apresentação do pedido.»

10 Na medida que importa para os presentes autos, a Section 47(2) do Finance Act 1997 dispõe:

«[...] a Subsection (1) supra produz efeitos a partir de 18 de Julho de 1996, como disposição aplicável, para os fins da efectivação de qualquer reembolso nessa ou após essa data, a todos os pedidos feitos nos termos da Section 80 do Value Added Tax Act 1994, incluindo os pedidos feitos antes dessa data e os pedidos relativos a pagamentos feitos antes dessa data».

11 A Section 47(2) a (5) do Finance Act 1997 contém ainda disposições transitórias. Nos termos destas últimas, o prazo de prescrição de três anos não se aplica aos pedidos apresentados após 18 de Julho de 1996 na medida em que resultem de um recurso, julgado admissível e procedente, de uma decisão dos Commissioners e na condição de o recurso de impugnação da decisão ter sido intentado antes de 18 de Julho de 1996. Nesse caso, o pedido será aceite no limite das quantias cobradas no decurso dos três anos anteriores ao início desse processo.

III - Os factos e o processo na causa principal

12 A Marks and Spencer plc (a seguir «M&S») é uma sociedade de venda a retalho, estabelecida no Reino Unido e sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA»).

13 Os Commissioners of Customs and Excise (a seguir «Commissioners») estão encarregados da gestão e da cobrança do IVA no Reino Unido.

14 Durante o período em causa, a M&S vendeu a sociedades vales de compra a preço inferior ao do seu valor nominal. Os vales de compra eram seguidamente vendidos ou dados a terceiros, que podiam resgatá-los à M&S, recebendo bens cujo preço era equivalente ao valor nominal do vale. Em Dezembro de 1990, a M&S tentou convencer os Commissioners de que devia declarar o IVA sobre as quantias que recebia pela venda dos vales e não sobre o seu valor nominal. Em Janeiro de 1991, os Commissioners decidiram que a M&S devia declarar o IVA sobre o valor nominal dos vales. A M&S assim procedeu até que o Tribunal de Justiça proferiu o seu acórdão Argos Distributors (2). O Tribunal de Justiça declarou nesse acórdão que o artigo 11._, A, n._ 1, alínea a), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que, quando um fornecedor vende a um adquirente, com desconto, um vale com a promessa de o aceitar posteriormente pelo seu valor nominal para pagamento da totalidade ou de parte do preço de um produto comprado por um cliente que não é o adquirente do vale e que não conhece, em princípio, o preço real de venda desse vale pelo fornecedor, a contrapartida representada pelo vale é o montante realmente recebido pelo fornecedor pela venda do vale.

15 Na sequência deste acórdão, verificou-se que o regime do IVA aplicado aos vales de compra da M&S era incorrecto. Assim, por carta de 31 de Outubro de 1996, a M&S apresentou aos Commissioners um pedido de reembolso das quantias de IVA pagas em excesso no montante de 2 638 057 GBP, resultante do regime incorrecto que foi aplicado aos vales de compra. O pedido respeitava ao período decorrido de Maio de 1991 a Agosto de 1996, inclusive. Este pedido foi revisto e completado por cartas de 6 e 22 de Novembro de 1996.

16 Por ofício de 11 de Dezembro de 1996, os Commissioners indicaram que estavam dispostos a reembolsar a parte do seu pedido respeitante aos vales de compra que não era afectada pela introdução do prazo de prescrição de três anos. Em 15 de Janeiro de 1997, procederam ao reembolso de um montante de 1 913 462 GBP à M&S.

17 Entre Abril de 1973 e Outubro de 1994, a M&S tinha também pago IVA em excesso relativamente a bolinhos para chá («teacakes»). Durante todo este período, a M&S tinha pago o IVA, não à taxa zero mas sim à taxa normal. Os Commissioners reconheceram esse erro por ofício de 30 de Setembro de 1994. Em 8 de Fevereiro de 1995, a M&S pediu, portanto, aos Commissioners que lhe reembolsassem o IVA cobrado em excesso por um montante de 3 500 000 GBP. Os Commissioners confirmaram o erro de cobrança, mas invocaram o «meio de defesa com base no enriquecimento sem causa» previsto na Section 80(3) do Value Added Tax Act 1994, sustentando que a maior parte desse IVA tinha sido «repercutida» nos clientes.

18 No que toca ainda ao reembolso do IVA respeitante aos bolinhos para chá, os Commissioners informaram à M&S, em 10 de Março de 1997, a sua intenção de aplicar também a esse pedido as novas disposições em matéria de prescrição.

19 Em 4 de Abril de 1997, a M&S recebeu, em vez de uma quantia igual a 10% de 3 500 000 GBP, o montante cobrado em excesso e não coberto pelo prazo de prescrição de três anos, ou seja, 88 440 GBP.

20 A M&S pediu seguidamente aos Commissioners que revissem a sua decisão de aplicar o prazo de prescrição de três anos aos seus dois pedidos. Contudo, os Commissioners mantiveram a sua decisão.

21 Em 15 de Abril de 1997, a M&S impugnou essa decisão dos Commissioners no VAT and Duties Tribunal. Em 22 de Abril de 1998, este negou provimento ao recurso da M&S, que recorreu dessa decisão para a High Court, que também julgou o seu recurso improcedente em 21 de Dezembro de 1998. A M&S interpôs então recurso para a Court of Appeal.

22 Por acórdão de 14 de Dezembro de 1999, a Court of Appeal negou provimento ao recurso interposto pela M&S no que toca ao pedido de reembolso referente aos bolinhos para chá, bem como o pedido referente aos vales de compra e relativo ao período compreendido entre Agosto de 1992 e Agosto de 1996, inclusive.

23 No que respeita ao pedido de reembolso do IVA pago em excesso entre Maio de 1991 e Julho de 1992, a Court of Appeal concluiu que, durante este período, a Lei de 1983 não tinha transposto de forma correcta o artigo 11._, A, da directiva, considerando, por conseguinte, que, no que toca a este período, a M&S retirava da legislação comunitária direitos que podia invocar perante um tribunal nacional. Segundo a Court of Appeal, não está claramente estabelecido se é compatível com os princípios da eficácia dos direitos conferidos pelo direito comunitário e da protecção da confiança legítima o facto de se alterar, com efeito imediato, um prazo de prescrição, de modo a retirar àqueles que dele gozavam o direito de pedir a repetição do indevido nos termos do direito interno.

24 Estas considerações levaram a que a Court of Appeal submetesse uma questão prejudicial.

IV - A questão prejudicial

25 A questão colocada por despacho de 14 de Dezembro de 1999 da Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) tem o seguinte teor:

«Quando um Estado-Membro não tenha transposto correctamente para a sua legislação nacional o artigo 11._, A, da Directiva 77/388 do Conselho, é compatível com o princípio da eficácia dos direitos que um sujeito passivo do imposto retira do artigo 11._, A, ou com o princípio da protecção da confiança legítima, aplicar uma legislação que suprime com efeito retroactivo um direito, conferido pelo direito nacional, de pedir o reembolso das quantias pagas a título do IVA mais de três anos antes da apresentação do pedido?»

V - Apreciação

Observações preliminares: o alcance da questão prejudicial

26 As peças dos autos revelam que a M&S apresentou dois pedidos referentes a IVA cobrado em excesso, um no que toca aos bolinhos para chá e outro referente aos vales de compra. Este último pedido abrange dois pedidos distintos. O primeiro respeita aos vales de compra vendidos antes de Agosto de 1992, ou seja, antes da entrada em vigor da Section 10 do Finance (N._ 2) Act 1992, respeitando o segundo aos vales de compra vendidos entre Agosto de 1992 e meados de Outubro de 1996.

27 A questão prejudicial respeita apenas ao pedido de reembolso do IVA cobrado em excesso durante o período situado antes da entrada em vigor da Section 10 do Finance (N._ 2) Act 1992.

28 Donde decorre que, no que toca aos pedidos de reembolso da M&S, o tribunal de reenvio procedeu a uma distinção entre o caso em relação ao qual a directiva não tinha ainda sido transposta ou não o tinha sido correctamente e os dois outros casos relativamente aos quais a directiva foi, é certo, transposta correctamente para o direito interno, mas não foi aplicada correctamente.

29 No que toca aos vales de compra, a situação parece ser muito clara. A distinção a que se procedeu divide dois períodos, ou seja, o transcorrido antes de Julho de 1992 (quando o artigo 11._, A, da Sexta Directiva não tinha sido correctamente transposto) e o transcorrido após esse momento (quando a disposição em causa da Sexta Directiva tinha, é certo, sido correctamente transposta para o direito interno, apesar de ainda durante um certo número de anos - até ao acórdão Argos - não ser correctamente aplicada pela administração fiscal competente). O tribunal de reenvio entende que, no primeiro caso, os particulares podem invocar directamente a Sexta Directiva. Já assim não será no que toca ao segundo caso, pois que respeita a uma situação em relação à qual a Sexta Directiva estava correctamente transposta para o direito interno. Nessa hipótese, os particulares não poderão retirar qualquer direito da Sexta Directiva. O tribunal de reenvio assenta essa conclusão no acórdão Becker (3). Este acórdão precisa que 1) quando um Estado-Membro não tenha transposto uma directiva ou não a tenha transposto correctamente e 2) a disposição em causa da directiva tenha um alcance incondicional e suficientemente preciso, os particulares podem invocá-la directamente perante o tribunal nacional. Uma vez que, segundo o tribunal nacional, «a primeira condição do acórdão Becker» não está preenchida, a Sexta Directiva não poderá ser invocada.

30 A decisão de reenvio não menciona o pedido referente ao IVA pago em excesso relativamente aos bolinhos para chá, embora também neste caso se coloque um problema similar. Também importa verificar para essa hipótese se os particulares podem invocar direitos decorrentes da legislação comunitária quando uma directiva, tendo sido, em si mesma, correctamente transposta para o direito interno, seja aplicada em violação do seu claro alcance.

31 A M&S e a Comissão sublinham o carácter errado do raciocínio seguido - a contrário - pelo tribunal de reenvio e as consequências que daí podem decorrer. A Comissão observa que a aplicação da directiva comporta uma obrigação de resultado. Para fundamentar a sua tese, remete para o teor do artigo 249._ CE, que precisa de forma muito clara que uma directiva é vinculativa no que respeita ao resultado a atingir. A Comissão e a M&S remetem também para as conclusões apresentadas pelo advogado-geral F. G. Jacobs no processo Comissão/Alemanha (4), nas quais precisou que não basta que uma directiva seja correctamente transposta para o direito interno, é também necessário que os Estados-Membros zelem por que essa legislação seja correctamente aplicada, ou seja, em conformidade com o disposto na directiva. Segundo a Comissão, o raciocínio seguido pelo tribunal de reenvio comporta o risco de um Estado-Membro não respeitar as obrigações que para si decorrem de uma directiva quando, tendo-a embora transposto correctamente, a aplique seguidamente de forma errada. Tanto a Comissão como a M&S requereram que esta questão de princípio seja examinada, quer no âmbito de um obiter dictum quer concebendo o alcance da questão prejudicial de uma forma mais ampla.

32 Nos termos de uma jurisprudência constante referente ao disposto no artigo 234._ CE (5), o Tribunal de Justiça considera que está vinculado pelas questões prejudiciais que lhe são submetidas e que não pode ir além do quadro material das questões que lhe são colocadas. Contudo, as considerações prévias à decisão de reenvio feitas pela High Court e pela Court of Appeal permitem-me avançar uma observação preliminar (6).

33 Duas questões de princípio são examinadas nestas passagens. A primeira consiste em se saber quando se poderá considerar que uma directiva é correctamente aplicada e a segunda em se determinar se os particulares podem ainda invocar os direitos que retiram da directiva após esta ter sido transposta para o direito interno.

34 A característica essencial de uma directiva é que não vincula o legislador nacional e as autoridades nacionais no que respeita à forma e aos meios, mas que os vincula no que se refere ao resultado pretendido pelo legislador comunitário. Em função do objecto e do carácter da directiva, este resultado pode por vezes ser atingido através da sua simples transposição para o direito interno, sendo certo que, como ocorre no caso em apreço, a correcta aplicação de uma directiva exige em primeiro lugar a sua transposição para o direito interno e, seguidamente, que essa legislação seja correctamente aplicada. Existem por último directivas cuja correcta aplicação exige, não apenas a intervenção do legislador nacional mas ainda a da administração interna, como é o caso, por exemplo, da directiva sobre os nitratos (7) ou da directiva sobre os habitats naturais (8).

35 Todavia, nos três casos que aqui nos ocupam e que constituem casos típicos ideais, o objectivo pretendido pelo legislador comunitário é e resta decisivo para se determinar se o Estado-Membro aplicou a directiva de forma correcta ou não.

36 O verdadeiro problema, assinalado pela Comissão e a M&S, respeita precisamente às erradas modalidades de aplicação dos Commissioners. Foi correctamente, a meu entender, que estas partes requereram que essa questão fosse examinada. As modalidades práticas da aplicação interna de uma directiva transposta são efectivamente importantes, pois que uma errada aplicação pode conduzir a um resultado completamente ao invés do prosseguido pela directiva. Além disso, as divergências na aplicação das directivas têm consequências nefastas no que toca à uniformidade e à igualdade na ordem jurídica comunitária.

37 Portanto, o objectivo prosseguido pela directiva exige 1) a sua correcta transposição (9) 2) uma aplicação da legislação interna em causa que seja conforme ao alcance da directiva. Partilhamos neste sentido do entendimento da Comissão, nos termos do qual a aplicação de uma directiva exige mais do que uma simples transposição correcta para o direito interno, pois que importa também que a legislação e a regulamentação internas sejam aplicadas de um modo conforme às disposições da directiva (10).

38 Importa seguidamente analisar se os particulares podem continuar a invocar os direitos que retiram de uma directiva após esta ter sido transposta para o direito interno.

39 Por outras palavras, importa interrogarmo-nos se, em caso de uma errada aplicação, na legislação interna, do direito comunitário transposto, é exclusivamente à Comissão que incumbe exercer um controlo ou se se deverá ultrapassar essa fase e se incumbe também às autoridades internas, ou seja, também aos tribunais nacionais, zelarem por que a directiva transposta seja aplicada de forma correcta, isto é, em conformidade com as disposições da directiva. Dito de outro modo, a directiva, como foi adoptada pelo legislador comunitário, continua a servir de indicação para a interpretação do direito interno para o qual foi transposta?

40 Entendo que a resposta a esta questão é, sem restrições, afirmativa. A se seguir a tese do tribunal de reenvio, tal teria por consequência que os cidadãos comunitários, em razão da transposição de uma directiva para o direito interno, ficariam privados dos direitos que dela podiam retirar, e portanto do direito comunitário, antes da sua transposição. O Tribunal de Justiça reconheceu aos particulares, numa jurisprudência constante, o direito a uma transposição razoável quando se levantou a questão da transposição incorrecta para o direito interno. Chegar-se-ia a um resultado incompatível com a ordem jurídica comunitária caso o particular pudesse efectivamente invocar uma directiva nos casos em que o legislador nacional tenha actuado de forma errada, ou seja, não dando aplicação às disposições da directiva, e não quando a administração nacional actue manifestamente em violação da directiva ao aplicar a legislação interna de transposição.

41 Além disso, o acórdão Becker não pode ser interpretado a contrario. Este acórdão respeitava a uma situação em que um Estado-Membro se tinha atrasado em dar aplicação a uma directiva e era necessário determinar se os particulares a podiam, em tal caso, invocar. Perante essas circunstâncias, o Tribunal de Justiça enunciou as duas condições e, nesse âmbito, o particular devia invocar a obrigação directamente aplicável. Daí não se pode deduzir, como manifestamente fizeram os tribunais britânicos, que quando um Estado-Membro tenha efectivamente tomado as medidas necessárias, mas seguidamente as aplique em violação da directiva, um particular já não possa dela retirar quaisquer direitos. Também nesse caso não se pode falar de uma aplicação razoável da directiva.

42 As obrigações que incumbem aos Estados-Membros por força das directivas comunitárias só estão satisfeitas quando os objectivos que estas pretendam atingir sejam realizados ou salvaguardados. Portanto, a sua simples transposição pelo legislador não basta no que respeita à aplicação da Sexta Directiva. A autoridade encarregada da sua aplicação e os tribunais nacionais têm a obrigação de zelar por que seja garantido o resultado prosseguido pela directiva.

43 Resulta mais especificamente dos autos que o artigo 11._, A, da directiva (11) foi, é certo, correctamente transposto pelas disposições do Finance (N._ 2) Act 1992, Section 10, mas que estas disposições são interpretadas e aplicadas de tal modo que conduzem a um resultado incompatível com as disposições da directiva. As obrigações que as directivas impõem aos Estados-Membros não incidem apenas sobre o seu poder legislativo, mas estendem-se ainda aos poderes executivo e judicial. Incumbe, pois, em princípio, à autoridade fiscal britânica reembolsar o montante do imposto cobrado em excesso e ao tribunal nacional zelar por que os particulares possam dar execução aos direitos que podem retirar do direito comunitário.

44 As peças dos presentes autos revelam sem qualquer dúvida que os Commissioners aplicaram após 1992 a legislação fiscal interna em infracção à directiva, tanto no que respeita aos bolinhos para chá como aos vales de compra. Também não há qualquer dúvida de que o tribunal de reenvio recusa à M&S o direito de invocar as disposições da directiva contra esta prática administrativa errada. Daí resulta incontestavelmente, em meu entender, que, em tal caso, tanto as autoridades fiscais como o tribunal competente actuam de uma forma incompatível com o direito comunitário. Assim sendo, o Reino Unido não cumpre a sua obrigação de garantir a correcta aplicação da parte da Sexta Directiva em causa.

Apreciação da questão prejudicial

45 O tribunal nacional pretende saber se o efeito retroactivo que o legislador britânico conferiu à sua legislação que reduz os prazos dentro dos quais os montantes do IVA pagos em excesso podem ser reclamados é incompatível com os princípios da eficácia e da confiança legítima.

46 A M&S e a Comissão alegam nas suas observações escritas que as referidas disposições fiscais do legislador britânico e que constituem o objecto da causa principal são, com efeito, incompatíveis com estes princípios. Em apoio da sua tese, invocam, ainda, o n._ 1 do artigo 6._ da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «Convenção Europeia dos Direitos do Homem») e o artigo 1._ do Primeiro Protocolo desta convenção.

47 Examino em primeiro lugar quais são as orientações que o tribunal de reenvio deve retirar do princípio da eficácia. Farei seguidamente o mesmo no que toca ao princípio da confiança legítima. Por último, debruçar-me-ei brevemente sobre os argumentos que a M&S e a Comissão retiram da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Primeiro Protocolo que dela faz parte.

48 No caso em apreço, está assente que, entre Maio e Julho de 1992, a M&S pagou IVA em excesso nos termos de uma legislação interna que não tinha procedido a uma correcta transposição do artigo 11._, A, da Sexta Directiva.

49 Também não se contesta, creio eu, que, nos termos de uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a M&S tem direito ao reembolso dos montantes do IVA pagos em excesso em violação do direito comunitário. Importa recordar que, segundo uma jurisprudência constante deste Tribunal, o direito de obter o reembolso dos impostos cobrados num Estado-Membro em violação das regras do direito comunitário constitui o complemento dos direitos conferidos aos particulares pelas disposições comunitárias que proíbem os encargos de efeito equivalente aos direitos aduaneiros ou, consoante o caso, a aplicação discriminatória de imposições internas, como foram interpretados pelo Tribunal de Justiça (acórdãos de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio, 199/82, Recueil, p. 3595, n._ 12; de 2 de Fevereiro de 1988, Barra, 309/85, Colect., p. 355, n._ 17; e de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz, C-62/93, Colect., p. I-1883, n._ 40). Portanto, o Estado-Membro está, em princípio, obrigado a reembolsar os impostos cobrados em violação do direito comunitário (12). No acórdão BP Soupergaz referido nessa citação, o Tribunal de Justiça precisou ainda que o direito ao reembolso também existe no caso de IVA pago de forma incompatível com as regras comunitárias.

50 O Governo do Reino Unido sustentou nas suas observações escritas e na audiência que, não comportando a directiva qualquer disposição aplicável aos pedidos de reembolso dos montantes de IVA pagos pelo contribuinte em violação do direito comunitário, a obrigação de reembolso que incumbe ao Reino Unido só pode decorrer da legislação interna aplicável. Nos termos desta última, o direito ao reembolso só nasce após a apresentação de um pedido nesse sentido dentro do prazo legal e após a sua verificação pelos Commissioners, enquanto autoridade competente. Será apenas após o cumprimento destas regras processuais que a M&S terá direito ao reembolso e nascerá a correspondente obrigação do Reino Unido. Segundo o governo deste Estado-Membro, estes elementos têm as seguintes consequências. Quando a proposta de alteração legislativa foi apresentada no Parlamento em 18 de Julho de 1996 a fim de reduzir com efeito retroactivo o prazo de prescrição dos pedidos de reembolso, a M&S só gozava de um direito processual, no sentido de que podia apresentar um pedido de reembolso dos montantes que tinha indevidamente pago aos Commissioners a título de IVA. Não tendo a M&S apresentado até essa data qualquer pedido de reembolso do IVA pago em excesso no que toca aos vales de compra, os Commissioners não estavam obrigados a proceder a qualquer pagamento a seu respeito. Em 18 de Julho de 1996, a M&S não gozava, portanto, de qualquer direito substantivo no que se refere ao reembolso do imposto pago em excesso.

51 O ponto de vista do Governo britânico reproduzido, supra, é, em meu entender, indefensável à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça. De um modo consequente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça estabeleceu uma distinção entre o direito ao reembolso dos montantes que tenham sido pagos às autoridades nacionais em violação do direito comunitário e as disposições internas nos termos das quais este direito deve ser exercido. Estas últimas podem respeitar ao processo a seguir, à designação das autoridades encarregadas do reembolso, aos prazos dentro dos quais devem ser apresentados os pedidos e à sua verificação.

52 A questão do tribunal de reenvio não versa, portanto, sobre a existência do direito da M&S ao reembolso do montante do IVA cobrado em excesso no que toca aos vales de compra, mas sim sobre as condições que o legislador nacional impôs ao exercício deste direito. Trata-se, mais especificamente, de saber se a redução, com efeito retroactivo, dos prazos dentro dos quais podem ser apresentados os pedidos é compatível com o princípio da eficácia, como foi precisado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

53 O Tribunal de Justiça desenvolveu uma jurisprudência vasta e clara a propósito da compatibilidade das disposições internas que regulam o reembolso dos impostos pagos em violação do direito comunitário.

54 A regra principal desta jurisprudência, que foi ainda recentemente reafirmada no acórdão Roquette Frères (13), tem o seguinte teor:

«[...] na ausência de regulamentação comunitária em matéria de reembolso de impostos nacionais indevidamente cobrados, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e estabelecer as regras processuais relativas às acções de garantia dos direitos que resultam para os particulares do efeito directo do direito comunitário, sendo entendido que tais regras não podem ser menos favoráveis do que as que regem acções semelhantes de natureza interna, nem ser aplicadas de forma a tornarem impossível, na prática, o exercício dos direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de garantir (v. acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Rewe, 33/76, Colect., p. 813, n._ 5, e Comet, 45/76, Recueil, p. 2043, n.os 13 e 16, Colect., p. 835; de 27 de Março de 1980, Denkavit Italiana, 61/79, Recueil, p. 1205, n._ 25; e de 29 de Junho de 1988, Deville, 240/87, Colect., p. 3513, n._ 12)».

55 Esta última condição, ou seja, que o exercício dos direitos que os tribunais nacionais têm a obrigação de garantir não pode ser tornado impossível na prática, representa o princípio da eficácia do direito comunitário.

56 No n._ 30 das conclusões que apresentou no processo na origem do acórdão Roquette Frères, já referido, o advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer fez uma resenha dos casos nos quais o Tribunal de Justiça reconheceu a compatibilidade com o direito comunitário da fixação de prazos razoáveis para a interposição das acções sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica que protege simultaneamente o contribuinte e as administrações em causa. Nesse sentido, considerou que tais prazos não podem ser considerados como de natureza a tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária, apesar de, por definição, o seu decurso conduzir à improcedência, total ou parcial, da acção intentada.

57 Mais especificamente, no seu acórdão Aprile II, o Tribunal de Justiça precisou que uma redução dos prazos fixados, sob pena de caducidade, para a restituição de impostos cobrados em violação do direito comunitário não é, por si só, incompatível com o princípio da eficácia (14). O Tribunal de Justiça confirmou esta jurisprudência no seu acórdão Dilexport: «[...] o direito comunitário não se opõe a que, na sequência de acórdãos do Tribunal de Justiça que declaram direitos ou imposições contrários ao direito comunitário, um Estado-Membro adopte disposições que tornem as condições de reembolso aplicáveis a estes direitos e imposições menos favoráveis do que as que lhe seriam aplicáveis na sua ausência, desde que os direitos e imposições em questão não sejam especificamente visados por essa modificação e que as novas disposições não tornem impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito ao reembolso» (15).

58 Os factos na origem da presente questão prejudicial diferem, contudo, dos que estão na origem dos acórdãos já referidos, pois que o legislador britânico reduziu com efeito retroactivo o prazo fixado sob pena de prescrição de seis para três anos. Por esse facto foram afectados, não apenas os contribuintes que consideravam com toda a confiança terem ainda amplamente tempo nos termos da regulamentação aplicável para apresentar o seu pedido de restituição, mas mesmo aqueles que, antes do anúncio da proposta de alteração legislativa (18 de Julho de 1996) ou antes da data em que foi publicada (17 de Março de 1997), tinham apresentado um pedido de reembolso de impostos indevidamente cobrados.

59 Os elementos de facto que estão na base dos presentes autos revelam uma analogia indiscutível com os que estavam em causa no acórdão Barra (16). Nesse processo, o legislador belga tinha reduzido com efeito retroactivo o prazo dentro do qual podia ser pedido o reembolso dos direitos de inscrição indevidamente cobrados para o acesso aos cursos de ensino profissional, limitando-o apenas aos requerentes que tivessem já apresentado um pedido de reembolso antes de ter sido proferido o acórdão do Tribunal de Justiça que declarou ser indevido o seu pagamento (17). O Tribunal de Justiça precisou a este respeito, nos n.os 17 a 21 do acórdão, já referido, que uma disposição legal deste tipo retira pura e simplesmente aos indivíduos que não respeitem as condições que prevê o direito de obter o reembolso das quantias indevidamente pagas. Torna assim impossível o exercício pelos interessados dos direitos conferidos pelo direito comunitário - no caso em apreço, o anterior artigo 7._ do Tratado (actual artigo 12._ CE).

60 O Tribunal de Justiça confirmou a jurisprudência decorrente do acórdão Barra no seu acórdão Deville (18). Este último processo respeitava a um imposto especial fixo sobre os veículos automóveis que tinha sido anteriormente considerado pelo Tribunal de Justiça como contrário ao artigo 95._ do Tratado CE (actual artigo 90._ CE). Após ter sido proferido este acórdão, a legislação interna aplicável à restituição dos montantes indevidamente cobrados foi alterada. O Tribunal de Justiça considerou a este respeito no n._ 13 do seu acórdão que «um legislador nacional não pode adoptar, posteriormente a um acórdão do Tribunal do qual resulta que determinada legislação é incompatível com o Tratado, uma regra processual que reduza especificamente as possibilidades de obter a repetição dos impostos indevidamente cobrados por força dessa legislação». Em tal caso, o exercício dos direitos cujo respeito incumbe ao tribunal nacional garantir é tornado impossível na prática.

61 Esta jurisprudência tem por base a ideia de que quando o legislador atribui um efeito retroactivo a disposições nacionais que submetem a condições mais restritivas o exercício dos direitos decorrentes do direito comunitário e que permitem obter o reembolso dos impostos cobrados em violação deste direito, torna-se na prática impossível, para os contribuintes, exercer total ou parcialmente esses direitos. Os direitos que estes retiram do efeito directo produzido pelo direito comunitário ficam assim destituídos da sua eficácia.

62 Entendo que o princípio da eficácia opõe-se à redução com efeito retroactivo dos direitos ao reembolso, não apenas a favor das pessoas que, nos termos da regulamentação anteriormente aplicável, tinham já apresentado um pedido de reembolso, como é o caso da M&S, mas também a favor daquelas que, no respeito das condições da regulamentação anteriormente aplicável, teriam podido ainda apresentar legalmente tal pedido. Os direitos que poderiam invocar através de uma aplicação diligente das possibilidades da «anterior» regulamentação ficaram antecipadamente destituídos de eficácia por força de uma regulamentação mais restritiva, introduzida com efeito retroactivo. No seu acórdão Barra, o Tribunal de Justiça protegeu especificamente os direitos dos particulares que não tinham ainda apresentado um pedido de reembolso dos pagamentos indevidos. Por idênticas razões, todos os elementos dos presentes autos militam também a favor dessa solução.

63 O raciocínio que seguimos aplica-se ainda mutatis mutandis ao direito que têm os particulares de serem reembolsados dos montantes de IVA cobrados em violação das disposições directamente aplicáveis do direito comunitário, mesmo quando estas disposições tenham, é certo, sido correctamente transpostas para o direito interno, mas sejam aplicadas de uma forma incompatível com o seu alcance, tal como este resulta da directiva.

64 O tribunal de reenvio pergunta além disso se a redução com efeito retroactivo dos prazos dentro dos quais os particulares devem apresentar o seu pedido de reembolso dos montantes indevidamente pagos é incompatível com o princípio da confiança legítima.

65 A M&S e a Comissão consideram que é necessário responder pela afirmativa a essa questão. Para tal, invocam o acórdão Meiko-Konservenfabrik (19).

66 O Governo do Reino Unido contrapõe, invocando que o princípio da confiança legítima nada acrescenta à protecção que os particulares podem retirar do princípio da eficácia e do princípio da igualdade. Do ponto de vista do direito comunitário, a M&S podia exclusivamente confiar em que o seu pedido seria tratado nos termos destes princípios e em aplicação do direito interno. Uma vez que não se contesta que o pedido da M&S foi tratado em conformidade com o direito britânico aplicável, a recorrente na causa principal poderia ter-se limitado a invocar o princípio da eficácia e o princípio da igualdade. Em direito britânico, acrescentou o Governo do Reino Unido, a M&S não podia confiar em que o seu pedido de reembolso seria tratado nos termos das regras aplicáveis no momento em que foram efectuados os pagamentos de imposto litigiosos a favor das autoridades fiscais. O Governo britânico recorda a este respeito o seu ponto de vista anteriormente exposto e nos termos do qual os Commissioners, enquanto autoridade fiscal competente, só tinham a obrigação de proceder ao reembolso após a apresentação de um pedido nesse sentido e a sua verificação. Entre o momento do pagamento indevido dos impostos e a decisão tomada a respeito de um pedido para o seu reembolso, a legislação aplicável em direito britânico pode ser alterada, mesmo com efeito retroactivo. A M&S não poderá, portanto, invocar a sua confiança legítima. O Governo britânico recorda ainda neste âmbito que a alteração legislativa foi anunciada em 18 de Julho de 1996, tendo a M&S apresentado o seu pedido de reembolso apenas em 31 de Outubro de 1996. Portanto, não podia confiar em que não seria afectada pela aplicação do novo prazo para a apresentação dos pedidos, que foi reduzido de metade e passou a ser de três anos.

67 Recordemos que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os princípios gerais do direito que são reconhecidos pelo direito comunitário também se aplicam à interpretação e à aplicação desse direito a nível interno. Isto vale tanto para o princípio da confiança legítima como para o princípio da eficácia (20). Portanto, devemos começar por examinar se o princípio da confiança legítima, enquanto princípio do direito comunitário, se opõe à limitação com efeito retroactivo das possibilidades de pedir a restituição dos pagamentos efectuados indevidamente. Seguidamente, é necessário verificar se e em que medida este princípio se opõe a que o legislador nacional limite com efeito retroactivo as possibilidades de requerer o reembolso dos impostos pagos em violação das disposições do direito comunitário directamente aplicáveis.

68 Gostaria de sintetizar do seguinte modo as linhas de força da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria do princípio da confiança legítima:

- o Tribunal de Justiça declarou em primeiro lugar numa série de acórdãos que este princípio, que é uma emanação do princípio da segurança jurídica, faz parte da ordem jurídica comunitária (21). Este princípio exige que as normas jurídicas sejam precisas e destina-se a assegurar que as situações e as relações jurídicas reguladas pelo direito comunitário sejam previsíveis;

- em segundo lugar, está subentendido que os particulares não podem confiar em que as normas jurídicas que lhes são aplicáveis não serão alteradas. O legislador comunitário conserva a sua competência para adaptar a legislação existente à alteração das condições económicas e, acrescento, à evolução das concepções políticas, sociais e de gestão (22);

- em terceiro lugar, os particulares podem confiar em que os direitos que nasceram por força de uma regulamentação existente não serão revogados com efeito retroactivo (23). É apenas em casos muito excepcionais que é possível derrogar a esta regra de princípio, como no caso das necessidades económicas imperativas que se prendem com a gestão das organizações comuns de mercado ou com razões imperativas de interesse geral (24).

69 Decorre dos precedentes elementos que, contrariamente ao que defende o Governo do Reino Unido, o princípio da confiança legítima acrescenta resolutamente qualquer coisa aos elementos de facto que estão na base do litígio na causa principal. Estes elementos respeitam, com efeito, à forma como as autoridades nacionais transpuseram e aplicaram em direito interno regras comunitárias das quais os particulares podem retirar direitos. Já anteriormente considerei que era contrário à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça afirmar que os particulares só adquirem o direito ao reembolso dos impostos indevidamente pagos após terem cumprido as regras processuais aplicáveis ao exercício desse direito e que, portanto, o princípio da confiança legítima só terá valor no caso em apreço como um princípio jurídico «interno».

70 Importa, pois, admitir que, enquanto princípio do direito comunitário, o princípio da confiança legítima também vincula o legislador britânico quando este procura reduzir o prazo legal dentro do qual os particulares podem exercer os direitos que retiram do direito comunitário.

71 Conferir a tal redução efeito retroactivo é incompatível com este princípio, salvo quando uma justificação imperativa por razões de interesse geral o permita. As razões justificativas que o Governo britânico invoca a favor da sua medida são insuficientes. É certo que, nos termos da «antiga» regulamentação aplicável antes de 18 de Julho de 1996, existia um certo risco para o Tesouro britânico, mas a sua amplitude não podia logicamente ser superior ao enriquecimento sem causa de que beneficiou o Tesouro em virtude do IVA cobrado em violação do direito comunitário. Pretender conservar no Tesouro os montantes indevidamente pagos pelos contribuintes não constitui, em todo o caso, uma justificação aceitável para a redução, com efeito retroactivo, dos prazos para pedir a restituição do IVA indevidamente cobrado.

72 Concluo, pois, que o facto de se conferir à alteração legislativa em causa um efeito retroactivo é incompatível com o princípio da confiança legítima.

73 A Comissão e a M&S invocam ainda que conferir à alteração legislativa litigiosa um efeito retroactivo é também contrário às disposições do artigo 6._, n._ 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do artigo 1._ do Primeiro Protocolo dessa convenção.

74 A Comissão sustenta que o direito de acesso ao juiz, enunciado no artigo 6._, n._ 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, opõe-se a uma redução com efeito retroactivo dos prazos para pedir a restituição, destinada a limitar as obrigações de reembolso que incumbem às autoridades fiscais. Invoca neste contexto alguns acórdãos proferidos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH»), que demonstram que embora este Tribunal admita que certas limitações ao acesso à justiça sejam compatíveis com o funcionamento normal do sistema jurisdicional, considera que tais medidas não podem limitar o acesso ao juiz de uma forma tal que a própria essência desse direito de acesso seja colocada em perigo (25). Segundo a jurisprudência do TEDH, este Tribunal critica a fixação de prazos excessivamente curtos para a interposição de recursos. Daí deduz a Comissão que esta jurisprudência se opõe, em todo o caso, à redução com efeito retroactivo dos prazos de interposição de recursos. Com efeito, tal medida bloca completamente o acesso ao juiz no que respeita à parte do recurso que se torna impossível em razão do efeito retroactivo da redução. Aliás, prossegue a Comissão, uma redução que se destina unicamente a limitar as obrigações de reembolso das autoridades fiscais pode dificilmente ser considerada como prosseguindo um objectivo justificado.

75 A Comissão e a M&S invocam ainda a jurisprudência do TEDH referente ao artigo 1._ do Primeiro Protocolo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (26). Daí deduzem que uma legislação que suprime com efeito retroactivo direitos de crédito relativos a prestações pecuniárias corresponde a uma expropriação que viola esse artigo, pois que tais direitos de crédito devem ser considerados como «possessions» na acepção dessa disposição. Num dos acórdãos invocados (Pressos Compañia Naviera v. Belgium), o TEDH terá explicitamente rejeitado o argumento segundo o qual a necessidade de proteger os interesses financeiros do Estado constitui uma justificação suficiente para conferir à medida litigiosa no caso em apreço um efeito retroactivo.

76 Observo a propósito destes argumentos da M&S e da Comissão que, estritamente falando, não dizem respeito à problemática examinada pelo tribunal de reenvio, que solicita unicamente ao Tribunal de Justiça uma interpretação mais detalhada no que toca aos princípios da eficácia e da confiança legítima enquanto princípios do direito comunitário. O Tribunal de Justiça precisou numa jurisprudência, actualmente abundante, que os direitos fundamentais fazem parte dos princípios gerais do direito comunitário e que, a esse título, também se aplicam no quadro da aplicação e da transposição do direito comunitário pelas autoridades nacionais para a sua ordem jurídica interna. Esta jurisprudência enuncia ainda ser possível o exame oficioso da questão de saber se estão em causa direitos fundamentais no que respeita à legislação britânica que produz efeito retroactivo em litígio na causa principal e, na afirmativa, quais são esses direitos.

77 Creio, contudo, que no presente caso concreto o Tribunal de Justiça pode limitar-se a fornecer uma interpretação mais detalhada dos princípios da eficácia e da confiança legítima, como solicita o tribunal de reenvio. Esta interpretação conduzirá a um resultado que corresponderá ou será muito semelhante à jurisprudência do TEDH que é invocada pela M&S e pela Comissão. Quando muito, poderíamos retirar destes elementos conclusões a título superabundante. Não dizendo a questão do tribunal de reenvio respeito a esse aspecto e não nos incitando a protecção dos direitos dos particulares ao seu exame, propomos que o Tribunal de Justiça não se debruce sobre estes argumentos que a Comissão e a M&S avançaram a título superabundante e que retiram da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Primeiro Protocolo a ela anexo.

VI - Conclusão

78 À luz dos precedentes elementos, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo à questão submetida pela Court of Appeal:

«Quando um montante de imposto pago em excesso resulte, num Estado-Membro, de uma transposição e/ou de uma aplicação errada de disposições da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, que produzem efeito directo, como o artigo 11._, A, n._ 1, a redução, com efeito retroactivo, do prazo para pedir a restituição deste montante pago em excesso é incompatível com o princípio da eficácia e o princípio da protecção da confiança legítima.»

(1) - JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54.

(2) - Acórdão de 24 de Outubro de 1996 (C-288/94, Colect., p. I-5311).

(3) - Acórdão de 19 de Janeiro de 1982 (8/81, Recueil, p. 53, n.os 24 e 25).

(4) - Acórdão de 24 de Novembro de 1992 (C-237/90, Colect., p. I-5973).

(5) - V. acórdão de 9 de Dezembro de 1965, Singer (44/65, Colect. 1965-1968, p. 251), seguidamente confirmado em numerosas ocasiões. V., para casos mais recentes, os acórdãos de 17 de Dezembro de 1998, Kainuun Liikenne e Pohjolan Liikenne (C-412/96, Colect., p. I-5141, n.os 23 e 24), de 16 Junho de 1998, Dumon e Froment (C-235/95, Colect., p. I-4531, n.os 25 e 26), e de 28 Janeiro de 1999, Unilever (C-77/97, Colect., p. I-431, n._ 22).

(6) - A decisão da Court of Appeal cita a seguinte passagem da decisão proferida pela High Court: «It is, to use the argot [sic] of the European Court of Justice, settled case law that an individual may assert an enforceable right on the basis of a Directive only where: 1. The Member State has failed to transpose or has failed properly to transpose the Directive into domestic legislation. In such circumstances, a Member State is stopped from pleading its own failure to perform its obligations. 2. The provision of the Directive upon which reliance is based must be unconditional and sufficiently precise.»

Esta abordagem da High Court é confirmada pela Court of Appeal, como demonstra designadamente a seguinte passagem: «[...] If what [the submission made by M&S] is intended to convey is that an individual can continue to assert his rights in the national courts under the Directive during such a time as the Directive has been properly transposed I would reject it. So far as the teacakes and late vouchers claims are concerned, M&S, because they cannot fulfil the Becker conditions and because they cannot rely on any right given to them by the Treaty or regulations made thereunder, lack any basis upon which to found a complaint that there has been an infringement of the general principles of Community law. I therefore conclude that, save as to the early voucher claim, there is in the present case no right in play upon which the general principles of Community law could bite. So far as the teacakes claims and the latter vouchers claim are concerned, I would like to dismiss the appeals [...]»

(7) - Directiva 91/676/CEE do Conselho, de 12 de Dezembro de 1991, relativa à protecção das águas contra a poluição causada por nitratos de origem agrícola (JO L 375, p. 1).

(8) - Directiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1992, relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens (JO L 206, p. 7).

(9) - Exceptuadas as situações em que a directiva não necessita de transposição por prever já a legislação aplicável num Estado-Membro disposições idênticas.

(10) - V., neste sentido, as conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs, já referidas na nota 5.

(11) - Esta disposição é directamente aplicável. V. acórdão de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz (C-62/93, Colect., p. I-1883).

(12) - Acórdão de 9 de Fevereiro de 1999, Dilexport (C-343/96, Colect., p. I-579, n._ 23).

(13) - Acórdão de 28 de Novembro de 2000 (C-88/99, Colect., p. I-10465, n._ 20).

(14) - Acórdão de 17 de Novembro de 1998 (C-228/96, Colect., p. I-7141, n.os 34 e 35).

(15) - Acórdão já referido na nota 13, n._ 43.

(16) - Já referido no n._ 49.

(17) - Acórdão de 13 de Fevereiro de 1985, Gravier (293/83, Recueil, p. 593).

(18) - Acórdão já referido no n._ 54.

(19) - Acórdão de 14 de Julho de 1983 (224/82, Recueil, p. 2539).

(20) - Acórdãos de 25 de Novembro de 1986, Klensch e o. (201/85 e 202/85, Colect., p. 3477, n.os 8 a 10); de 13 de Julho de 1989, Wachauf (5/88, Colect., p. 2609, n._ 19); e de 3 de Dezembro de 1998, Belgacodex (C-381/97, Colect., p. I-8153, n._ 26).

(21) - V., por exemplo, os acórdãos de 14 de Maio de 1975, CNTA/Comissão (74/74, Colect., p. 183), e de 3 de Maio de 1978, Töpfer/Comissão (112/77, Colect., p. 357).

(22) - V., por exemplo, os acórdãos de 15 de Julho de 1982, Edeka (245/81, Recueil, p. 2745); de 15 de Fevereiro de 1996, Duff e o. (C-63/93, Colect., p. I-569); e de 15 de Abril de 1997, Irish Farmers Association e o. (C-22/94, Colect., p. I-1809).

(23) - O princípio da proibição do efeito retroactivo foi já enunciado no acórdão de 25 de Julho de 1979, Racke (98/78, Colect., p. 53). O que foi confirmado no acórdão Meiko-Konservenfabrik, já referido na nota 20, n._ 12.

(24) - V., por exemplo, acórdãos de 21 de Fevereiro de 1991, Zuckerfabrik Süderdithmarschen en Zuckerfabrik Soest (C-143/88 e C-92/89, Colect., p. I-415), e de 17 de Julho de 1997, Affisch (C-183/95, Colect., p. I-4315).

(25) - Acórdãos de 15 de Maio de 1986, Johnston (222/84, Colect., p. 1651); de 15 de Outubro de 1987, Heylens (222/86, Colect., p. 4097); e acórdãos do TEDH no processo National and Provincial Building Society v. United Kingdom, 1997 IV 2325; Stubbing v. United Kingdom, 1996 IV 1487; e Pérez de Rada Cavanillus/Espanha, acórdão de 28 de Outubro de 1998.

(26) - V. acórdãos Pressos Compañia Naviera v. Belgium [(1995) 21 TEDH 301] e Stan Greek Refineries [(1994) 19 TEDH 293].