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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 17 de Junho de 2003(1)


Processo C-453/00



Kühne & Heitz NV
contra
Productschaap voor Pluimvee en Eieren


[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo College van Beroep voor het bedrijsleven (Países Baixos)]

«Carne de aves de capoeira – Restituições à exportação – Reembolso – Nova classificação dos produtos na Nomenclatura Combinada – Decisão administrativa – Esgotamento das vias de recurso internas – Pedido de pagamento que põe em causa uma decisão administrativa que se tornou definitiva – Indeferimento – Força de caso julgado – Efeitos dos acórdãos prejudiciais do Tribunal de Justiça no tempo – Primado do direito comunitário – Artigo 10.° CE»






1.        O direito comunitário opõe-se a que um órgão administrativo nacional indefira um pedido de pagamento baseado no direito comunitário porque este pedido visa contestar uma decisão administrativa anterior que se tornou definitiva na sequência da negação de provimento do recurso de anulação contra a mesma interposto por uma decisão jurisdicional com força de caso julgado, quando esta decisão definitiva se baseia numa interpretação do direito comunitário infirmada pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial proferido posteriormente?

2.       É esta, no essencial, a questão de princípio submetida pelo College van Beroep voor het bedrijfsleven (Países Baixos) no âmbito de um litígio sobre classificação pautal de carnes de aves de capoeira bem como sobre a determinação do montante das restituições à exportação que daí resultariam em benefício do exportador.

I – Enquadramento jurídico

A – A regulamentação comunitária

3.        O Regulamento (CEE) n.° 2777/75 do Conselho, de 29 de Outubro de 1975, que estabelece uma organização comum de mercado no sector da carne de aves de capoeira  (2) , instituiu um regime de restituições à exportação para países terceiros. Este sistema visa garantir ao mesmo tempo a competitividade dos produtos europeus no mercado mundial, devido a uma redução do preço de exportação (este preço geralmente elevado na Comunidade Europeia é reduzido até ao limite do montante do preço em curso no mercado mundial), e um nível de vida equitativo à respectiva população agrícola, graças à transferência para os exportadores de determinadas quantias (ou restituições) cujo montante corresponde a estas diferença de preços.

4.        A determinação do montante das restituições depende da classificação pautal dos produtos exportados. A lista de produtos a que é concedida uma restituição à exportação bem como o montante da mesma são fixados por regulamento da Comissão, por um período aproximado de três meses, tendo em conta a evolução dos mercados em causa. Cinco regulamentos deste tipo foram assim aplicáveis durante o período relevante para o litígio no processo principal (de Dezembro de 1986 a Dezembro de 1987)  (3) .

B – A regulamentação nacional

5.        O artigo 4:6 da Algemene wet bestuursrecht (lei geral em matéria administrativa)  (4) contém determinadas disposições relativas à reapreciação de uma decisão administrativa. No n.° 1 estabelece-se que, «[q]uando um pedido é, na sua totalidade ou em parte, indeferido, só pode ser introduzido novo pedido desde que o requerente indique factos novos ou uma alteração das circunstâncias». O n.° 2 acrescenta que «[s]e não é invocado qualquer facto novo ou alteração das circunstâncias o órgão administrativo pode indeferir o pedido remetendo para a sua anterior decisão de indeferimento».

6.        Além disso, nos termos do artigo 8:88, n.° 1, da referida lei, «[o] órgão jurisdicional pode, a requerimento de uma das partes, decidir em recurso de uma decisão definitiva tendo em conta factos ou circunstâncias que:

a)ocorreram antes da decisão;

b)não eram conhecidos, e não podiam razoavelmente sê-lo, do requerente, antes de ser proferida decisão e

c)poderiam, se tivessem sido conhecidos do órgão jurisdicional, levar este a proferir decisão diferente».

II – Matéria de facto e tramitação no processo principal

7.        De Dezembro de 1986 a Dezembro de 1987 a sociedade Kühne & Heitz NV (a seguir «sociedade Kühne & Heitz»), com sede nos Países Baixos, procedeu a diversas declarações às autoridades aduaneiras neerlandesas com o objectivo de beneficiar de restituições à exportação relativamente a determinadas quantidades de carne de aves de capoeira. Essas mercadorias foram declaradas como integrando a subposição pautal 02.02 B II e) 3, aplicável às «coxas e pedaços de coxas de outras aves de capoeira (que não perus)», de acordo com a nomenclatura visada pelos Regulamentos n.os 3176/86, 267/87, 1151/87, 2800/87 e 3205/87.

8.        De acordo com a designação pautal dos produtos que constava dessas declarações o Productschap voor Pluimvee en Eieren (a seguir «PVV»)  (5) transferiu para a sociedade Kühne & Heitz os montantes que tinha pedido a título de restituições à exportação e depois liberou a caução que aquela última tinha prestado para garantir o pré-financiamento dos referidos montantes, isto é, o seu pagamento antes da realização da exportação (a primeira decisão)  (6) .

9.        Em 1 de Março de 1990, na sequência de verificações quanto à natureza dos produtos exportados, o PVV ordenou à sociedade exportadora o reembolso do montante de 970 950,98 NLG e a reposição da caução anteriormente liberada (a seguir «segunda decisão»). Com efeito um determinado número de declarações à exportação efectuada por esta sociedade comportou uma designação pautal incorrecta dos produtos em causa, o que provocou um erro na determinação do montante das restituições e o pagamento em seu proveito de uma quantia superior à que estaria em condições de poder obter. As coxas de frango em causa, compreendendo uma parte do dorso, deveriam ter sido declaradas integradas na subposição pautal 02.02 B II ex g, designadas «outras», aplicável a título residual às partes das carnes de aves não desossadas que não se inserem especificamente noutra subposição  (7) .

10.      A sociedade Kühne & Heitz reclamou desta decisão contestando o reembolso do alegado montante recebido em excesso a título de restituições à exportação. Por decisão de 13 de Dezembro de 1990, o PVV indeferiu essa reclamação (terceira decisão).

11.      A sociedade exportadora interpôs recurso de anulação desta última decisão para o College van Beroep  (8) . Por acórdão de 22 de Novembro de 1991 foi negado provimento a este recurso uma vez que apenas podem ser classificados na subposição 02.02 B II e) 3, que consta das declarações controvertidas, os produtos que correspondem estritamente à redacção utilizada em anexo dos regulamentos aplicáveis, isto é, que se limitam a «coxas e pedaços de coxas» excluindo qualquer outro elemento. Não satisfazendo estas condições específicas, as coxas de frango a que está ligada uma parte do dorso devem integrar a subposição pautal residual 02.02 B II ex g, e não a indicada nas declarações controvertidas.

12.      Neste ponto o College van Beroep considerou que, em face do seu teor, a interpretação das subposições pautais já referidas não deixa lugar a qualquer dúvida legítima susceptível de justificar a formulação de uma questão prejudicial. A este propósito, sublinhou que a situação em causa era diferente da que teve de conhecer anteriormente no âmbito de um litígio relativo à interpretação do Regulamento (CEE) n.° 2787/81 da Comissão, de 25 de Setembro de 1981, que fixa as restituições à exportação no sector da carne de bovino  (9) . Com efeito, entendendo que se podia legitimamente questionar, atendendo à sua redacção, o sentido e alcance de determinadas subposições pautais, o College van Beroep decidiu, então, submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial  (10) .

13.      Por acórdão de 5 de Outubro de 1994, Voogd Vleesimport en -export  (11) , o Tribunal de Justiça declarou que «[u]ma coxa [de frango] à qual está agarrado um pedaço do dorso deve [...] ser qualificada como coxa, na acepção das subposições 02.02 B II e) 3. da antiga nomenclatura e 0207 41 51 000 da nova, se o referido pedaço de dorso não for suficientemente grande para conferir ao produto a característica essencial»  (12) . O Tribunal de Justiça acrescentou que, «[p]ara saber se é esse o caso, na inexistência, à época, de normas comunitárias, deve o órgão jurisdicional nacional ter em conta os hábitos do comércio nacional e os métodos tradicionais de corte»  (13) .

14.      Invocando este acórdão prejudicial, a sociedade Kühne & Heitz apresentou ao PVV, em 13 de Dezembro de 1994 e em 3 de Janeiro de 1995, um pedido de pagamento de determinados montantes correspondentes, designadamente, ao montante das restituições à exportação, de Dezembro de 1986 a Dezembro de 1987, cujo reembolso lhe tinha sido erradamente reclamado acrescido dos respectivos juros legais (a seguir «primeira parte do pedido»). Requereu igualmente o pagamento da quantia correspondente aos montantes das restituições desde Dezembro de 1987 a que teria direito na hipótese em que as partes da carne de aves de capoeira tivessem sido classificadas correctamente na subposição pautal 02.02 B II e) 3, de acordo com a interpretação da nomenclatura adoptada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Voogd Vleesimport en -export, já referido (a seguir «segunda parte do pedido»).

15.      O PVV indeferiu este pedido, na íntegra, por decisão de 11 de Maio de 1995 (quarta decisão). A sociedade exportadora reclamou desta decisão no PVV que igualmente a indeferiu por decisão de 21 de Julho de 1997 (quinta decisão, a seguir «decisão impugnada»).

16.      Esta decisão de indeferimento assenta, no que se refere à primeira parte do pedido, no seguinte fundamento. Em primeiro lugar, os acórdãos do Tribunal de Justiça, em geral, apenas têm efeitos para o futuro. Apenas podem ter directamente efeitos nos casos em que um órgão jurisdicional nacional ainda não tenha decidido. Além disso, a questão de saber se, e em que medida, uma decisão do College van Beroep (como o acórdão de 22 de Novembro de 1991) pode ainda ser revista é da exclusiva competência deste órgão jurisdicional nacional. Por último, no que toca à segunda parte do pedido, refere-se que as restituições em causa foram concedidas com base nas próprias declarações da sociedade exportadora e que as decisões correspondentes não foram, aliás, objecto de qualquer reclamação da sua parte.

17.      A sociedade Kühne & Heitz interpôs recurso de anulação desta decisão de indeferimento para o College van Beroep.

18.      No que toca à sua primeira parte, o pedido visa simplesmente, de acordo com a recorrente, que esta venha a beneficiar de uma nova decisão administrativa na sequência de uma reapreciação do mérito da situação em causa relativamente ao facto novo ou à alteração de circunstâncias que constituiria o acórdão Voogd Vleesimport en -export, já referido, de acordo com o mecanismo previsto no artigo 4:6, n.° 1, da Algemene wet bestuursrecht. Não se trata de requerer uma revisão da decisão judicial em causa. Subsidiariamente, a recorrente sustenta que o PVV e o College van Beroep cometeram, tendo em conta os acórdãos já referidos, Ekro e Voogd Vleesimport en -export, uma violação qualificada do direito comunitário que concedia o direito de reparação do prejuízo que lhe tinha sido causado, devendo esta reparação revestir a forma de uma repetição do montante das restituições que indevidamente teria reembolsado. É igualmente invocado pela sociedade recorrente, em apoio da segunda parte do seu pedido, um direito à reparação afim de recuperar o montante suplementar das restituições que teria o direito de requerer para as exportações após Dezembro de 1987.

19.      O PVV contesta as pretensões da sociedade exportadora. Relativamente à primeira parte do pedido, alega que o acórdão do College van Beroep de 22 de Novembro de 1991, adquiriu força de caso julgado e não pode, ao abrigo do direito neerlandês, ser objecto de revisão devido a um acórdão do Tribunal de Justiça proferido posteriormente e que, de todo o modo, não se pode falar de violação suficientemente caracterizada do direito comunitário na acepção da jurisprudência Brasserie du pêcheur e Factortame  (14) e Hedley Lomas  (15) .

III – A questão prejudicial

20.      Face às posições adiantadas pelas partes, o College van Beroep voor het bedrijfsleven decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«O direito comunitário, e nomeadamente o princípio da lealdade comunitária consagrado no artigo 10.° CE, impõe a um órgão administrativo, nas circunstâncias mencionadas nos considerandos da presente decisão, que reconsidere uma decisão que se tornou definitiva de modo a garantir ao direito comunitário, tal como este deve ser interpretado à luz de uma decisão prejudicial posterior, a sua plena eficácia?»

21.      Esta questão está relacionada com a primeira parte do pedido da sociedade recorrente. As circunstâncias do caso em apreço a que é feita referência são as seguintes  (16) . Em primeiro lugar, a referida sociedade esgotou as vias de recurso de que dispunha. Em segundo lugar, o College van Beroep adoptou, por acórdão de 22 de Novembro de 1991, uma interpretação do direito comunitário que se veio a verificar contrária à dada pelo Tribunal de Justiça no já referido acórdão Voogd Vleesimport en -export, proferido ulteriormente. Em terceiro lugar, não foi submetida nesse momento uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, considerando-se nessa altura – erradamente em seu entender – que poderia ser dispensada, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria  (17) . Em quarto lugar, a recorrente diligenciou junto da administração imediatamente após ter tido conhecimento do já referido acórdão Voogd Vleesimport en -export.

22.      Daí resulta que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o direito comunitário impõe o reexame e, eventualmente, a revogação pelo seu autor, de uma decisão administrativa nacional que, tornada definitiva após terem sido esgotadas as vias de recurso internas, se verifica ser contrária ao direito comunitário, interpretado pelo Tribunal de Justiça em acórdão prejudicial proferido posteriormente.

23.      Resulta do despacho de reenvio que a atenção do College van Beroep incide, em termos gerais, na questão de saber se tal reexame, ou tal revogação, de uma decisão administrativa, tradicionalmente concebida como uma mera possibilidade em direito neerlandês é susceptível, por força do direito comunitário, de revestir carácter obrigatório  (18) .

24.      Quanto a este ponto o órgão jurisdicional de reenvio observa que a decisão impugnada pode ser anulada pelo simples facto de se basear numa interpretação errada do direito nacional, quando, contrariamente ao que deixaria supor esta decisão, nenhuma regra de direito neerlandês se opõe, em princípio, a que um órgão administrativo reaprecie uma decisão que tomou, mesmo quando esta se tornou definitiva na sequência do esgotamento das vias de recurso contra a mesma e mesmo quando não exista nem facto novo nem alteração das circunstâncias.

25.      Assim sendo, o órgão jurisdicional de reenvio entende que a anulação da decisão impugnada só teria sentido e utilidade se se entendesse como certo que o PVV não tinha unicamente o poder de alterar a sua decisão anterior, mas tinha o dever de reapreciar se existia para cada mercadoria exportada um direito à restituição e, na afirmativa, qual o montante. Na hipótese em que o PVV estaria sujeito – por força do direito comunitário – a um tal dever de reapreciação a decisão impugnada devia ser anulada por maioria de razão  (19) .

26.      A este propósito, os factos e a tramitação no processo principal revelam que a decisão impugnada assenta no postulado segundo o qual os acórdãos prejudiciais só podem produzir efeitos directos nos casos em que o órgão jurisdicional nacional não tenha já (definitivamente) decidido. Assim, o respeito do princípio da força de caso julgado opõe-se a que uma administração nacional defira um novo pedido no sentido de pôr em causa uma decisão administrativa anterior que se tornou definitiva na sequência de ter sido negado provimento ao recurso contencioso interposto.

27.     É à luz deste postulado que importa entender a referência, na decisão impugnada, à questão de saber se e em que medida o acórdão do College van Beroep de 22 de Novembro de 1991 é – de acordo com o direito interno – ainda susceptível de recurso. O PVV explicou-o no âmbito do processo principal considerando que o recurso extraordinário de revisão estava excluído porque exigia, nos termos do artigo 8:88 da Algemene wet bestuursrecht, a descoberta de um facto anterior à prolação do acórdão do College van Beroep, quando o acórdão Voogd Vleesimport en -export, já referido, foi proferido pelo Tribunal de Justiça em data posterior  (20) . De acordo com o PVV, daí resultaria que o acórdão do College van Beroep adquiriu «força de caso julgado» sendo, por conseguinte, insusceptível de ser posto em causa  (21) . Nessas circunstâncias não há qualquer razão para deferir o novo pedido da sociedade exportadora, não obstante os pedaços de frango em questão passarem a ser agora classificados de modo diferente  (22) , de acordo com o já referido acórdão Voogd Vleesimport en -export.

28.      Por conseguinte, consideramos que cabe entender a questão prejudicial no sentido de pretender saber, no essencial, se o direito comunitário, em especial o artigo 10.° CE, se opõe a que uma administração nacional defira um pedido de pagamento baseado no direito comunitário porque este pedido visa contestar uma decisão administrativa anterior que se tornou definitiva, na sequência de ter sido negado provimento ao recurso de anulação da mesma, revestindo esta força de caso definitivamente julgado, quando esta decisão definitiva assenta numa interpretação do direito comunitário que foi infirmada por um acórdão prejudicial proferido posteriormente.

29.      Por último, e a fim de dissipar qualquer ambiguidade quanto ao sentido e alcance da questão prejudicial, importa recordar que esta não visa uma eventual responsabilidade do Estado-Membro em causa, em razão de uma alegada violação do direito comunitário. Aí trata-se de uma outra questão que não é colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio. Além disso, como o Governo neerlandês realçou na audiência, o College van Beroep era incompetente para decidir neste ponto, uma vez que esse contencioso da responsabilidade é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais cíveis.

IV – As alegações das partes

30.      A sociedade Kühne & Heitz sustenta que a segunda decisão (que ordena o reembolso das restituições em questão), que não foi censurada pelo College, violou a jurisprudência do Tribunal de Justiça existente à época (em especial o já referido acórdão Ekro) e confirmada posteriormente pelo acórdão Voogd Vleesimport en -export, já referido. A título principal alega que o PVV estaria obrigado a reapreciar esta segunda decisão, quando se tratasse da única via de direito disponível (após o esgotamento das vias de recurso internas) ou pelo menos a mais eficaz para restabelecer o direito comunitário na sua plenitude (menos demorada e menos custosa que a propositura de uma acção de indemnização pondo em causa a responsabilidade do Estado neerlandês). Subsidiariamente, a sociedade exportadora sustenta que haveria lugar a responsabilidade do Estado-Membro em causa por se tratar de uma violação caracterizada do direito comunitário, derivada principalmente dum acto do tribunal (o College van Beroep) e acessoriamente de um acto da administração (o PVV).

31.      O PVV alega que uma obrigação de reapreciação das decisões administrativas, designadamente nas circunstâncias do caso em apreço, conduziria a uma situação inaceitável para os órgãos administrativos face aos princípios da segurança jurídica e da força de caso julgado. Em suma, uma eventual reapreciação seria meramente teórica no caso em apreço, porque não seria possível retirar plenamente as consequências do já referido acórdão Voogd Vleesimport en -export, na falta de informações actuais sobre a dimensão dos pedaços de dorso em causa.

32.      Como o PVV, o Governo neerlandês contesta a existência na esfera dos Estados-Membros de uma obrigação geral de reapreciação das decisões administrativas. Invocando os princípios da autonomia processual e da segurança jurídica, alega que o carácter, em princípio, definitivo das decisões que adquiriram força de caso julgado e das decisões administrativas não contestadas ou não invalidadas, previsto, designadamente, em direito neerlandês, é conforme aos princípios da equivalência e da eficácia estabelecidos pelo Tribunal de Justiça. Além disso, as circunstâncias do caso em apreço não podem justificar uma derrogação ao princípio da intangibilidade das decisões em causa.

33.      De acordo com o Governo francês o princípio da segurança jurídica, bem como o respeito da autoridade de caso julgado que constitui a expressão daquele, deve necessariamente prevalecer sobre o princípio da legalidade. Esta conclusão impõe-se também nas hipóteses em que o acto administrativo em causa não foi objecto de recurso contencioso ou foi objecto de recurso que foi rejeitado por extemporâneo. Além disso a existência em direito comunitário de uma obrigação de reapreciação de uma decisão administrativa definitiva equivaleria a pôr em causa o princípio da autonomia processual. Por conseguinte, é de responder negativamente à presente questão prejudicial, sem prejuízo do respeito do princípio da equivalência a que os Estados-Membros estão sujeitos no âmbito da autonomia processual.

34.      Como os Governos neerlandês e francês, também a Comissão das Comunidades Europeias entende que se impõe uma resposta negativa, quer com base no princípio da segurança jurídica quer no da autonomia processual, expressando, no entanto, ligeira preferência a favor da primeira hipótese.

35.      O Órgão de Fiscalização EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), pende igualmente para uma resposta negativa no âmbito da autonomia processual.

V – Apreciação

36.      A exemplo dos acórdãos prejudiciais que declaram a invalidade de um acto comunitário  (23) , os acórdãos prejudiciais interpretativos têm, em princípio, efeito retroactivo.

37.      Com efeito, de acordo com jurisprudência constante, «[a] interpretação que, no exercício da competência que lhe confere o artigo 177.° do Tratado [que passou a artigo 234.° CE], o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito comunitário, esclarece e precisa [...] o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido cumprida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor»  (24) .

38.      Os efeitos de um acórdão prejudicial que têm um valor meramente declarativo, e não constitutivo «retroagem [em princípio] à data da entrada em vigor da norma interpretada»  (25) . Por força da jurisprudência constante já referida «conclui-se que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decide o pedido de interpretação, se se encontrarem também reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma»  (26) .

39.      Esse princípio permite evitar que o direito comunitário possa sofrer distorções de aplicação no tempo, em detrimento da sua aplicação uniforme e da sua plena eficácia. Inscreve-se necessariamente no quadro do objectivo prosseguido pelo processo prejudicial que consiste em assegurar, graças a um mecanismo de cooperação jurisdicional, uma aplicação uniforme do direito comunitário por todos os Estados-Membros  (27) .

40.      Foi apenas a título excepcional, quando do acórdão de 8 de Abril de 1976, Defrenne, que – pela primeira vez – o Tribunal de Justiça se reservou a possibilidade (não se atendo à letra do artigo 234.° CE)  (28) de limitar o carácter retroactivo dos seus acórdãos prejudiciais interpretativos, atendendo a considerações imperiosas de segurança jurídica respeitantes ao conjunto dos interesses em jogo, quer públicos quer privados  (29) .

41.      Como foi posteriormente reafirmado nos acórdãos já referidos, Roders e o., bem como Bautiaa e Société française maritime, «o Tribunal de Justiça só recorreu a essa solução em circunstâncias bem precisas»  (30) . Especificava-se que assim era «quando existia um risco de repercussões económicas graves devidas em especial ao número elevado de relações jurídicas constituídas de boa fé com base [numa] regulamentação considerada como estando validamente em vigor e quando se mostrava que os particulares e as autoridades nacionais tinham sido incitados a um comportamento não conforme à regulamentação comunitária em virtude de uma incerteza objectiva e importante quanto ao alcance das disposições comunitárias, incerteza para a qual tinham eventualmente contribuído os próprios comportamentos adoptados por outros Estados-Membros ou pela Comissão»  (31) . É unicamente em tais circunstâncias que o Tribunal de Justiça pode ser levado a «limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar a disposição assim interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé»  (32) .

42.      Por força de uma jurisprudência constante «[e]sta limitação só pode ser admitida, no próprio acórdão que decide quanto à interpretação solicitada»  (33) . Com efeito «[a] exigência fundamental de uma aplicação uniforme e geral do direito comunitário implica que compete unicamente ao Tribunal de Justiça decidir as limitações no tempo da interpretação que fornece»  (34) .

43.      No caso em apreço, importa concluir que o Tribunal de Justiça não limitou o alcance no tempo do seu acórdão Voogd Vleesimport en -export, já referido. Daí esse acórdão revestir necessariamente um efeito retroactivo, de modo que é susceptível de se aplicar às relações jurídicas surgidas e constituídas antes dele, em especial às relações jurídicas estabelecidas entre a sociedade Kühne & Heitz e o PVV relativamente às exportações visadas pelas declarações controvertidas (emitidas de Dezembro de 1986 a Dezembro de 1987).

44.      Em nosso entender, o PVV deveria retirar desse acórdão as consequências que se impõem. Não deveria indeferir o pedido da sociedade recorrente, baseado numa interpretação dada nessa altura pelo Tribunal de Justiça aos regulamentos relevantes, com o único fundamento de que o princípio do respeito da força de caso julgado a isso se opunha, quando este pedido visava pôr em causa uma decisão administrativa anterior que se tornou definitiva na sequência de ter sido negado provimento ao recurso de anulação respectivo por parte de uma decisão jurisdicional que reveste a dita força de caso julgado  (35) .

45.      Com efeito, importa lembrar que o Tribunal de Justiça enfatizou que «seria incompatível com as exigências inerentes à natureza do direito comunitário qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática, legislativa, administrativa ou judicial, que tivesse como efeito diminuir a eficácia do direito comunitário por recusar ao juiz competente para aplicar esse direito o poder de fazer, no momento exacto dessa aplicação, tudo o que fosse necessário para afastar as disposições legislativas nacionais susceptíveis de obstar, ainda que temporariamente, à plena eficácia das normas comunitárias»  (36) .

46.      Esta afirmação categórica assenta nos princípios da aplicabilidade directa  (37) e do primado do direito comunitário  (38) .

47.      Essa afirmação baseia-se igualmente em determinadas disposições do Tratado, em especial, o artigo 10.° CE. No acórdão Factortame e o., já referido, o Tribunal lembrou que «é aos órgãos jurisdicionais nacionais que compete, por aplicação do princípio da cooperação enunciado no artigo 5.° do Tratado [que passou a artigo 10.° CE], garantir a protecção jurídica decorrente, para os particulares, do efeito directo das disposições do direito comunitário»  (39) . Esta referência às disposições do artigo 10.° CE encontra-se, aliás, no acórdão de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o.  (40) , para servir de fundamento à obrigação dos Estados-Membros de repararem os danos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhes são imputáveis. A este propósito o Tribunal de Justiça lembrou que por força do artigo 10.° CE estes últimos «são obrigados a tomar todas as medidas gerais ou particulares adequadas para assegurar a execução das obrigações que lhes incumbem por força do direito comunitário»  (41) . Especificou que «entre estas obrigações encontra-se a de eliminar as consequências ilícitas de uma violação do direito comunitário»  (42) .

48.      Sabemos que os acórdãos já referidos, Simmenthal e Factortame e o., diziam respeito às relações entre o tribunal nacional e o direito interno. É interessante observar que as disposições nacionais postas em causa nestes dois processos estavam longe de ser negligenciáveis; uma revestia valor constitucional, a outra estava profundamente enraizada no sistema jurídico interno em causa.

49.      No processo Simmenthal, já referido, estava em causa uma regra italiana por força da qual, no caso de contradição entre um lei nacional e uma disposição de direito comunitário, a solução deste conflito cabia à Corte costituzionale (Itália), excluindo o tribunal nacional, limitando-se este a suscitar a questão da inconstitucionalidade da referida lei.

50.      Importa lembrar que esta contradição entre uma lei nacional e o direito comunitário tinha sido salientada por um acórdão prejudicial anterior, em resposta a uma questão colocada pelo mesmo tribunal de reenvio no quadro de uma acção de repetição do indevido. A este propósito o Tribunal de Justiça sublinhou que o efeito útil das disposições do artigo 234.° CE em matéria de processo prejudicial «seria diminuído se o juiz estivesse impedido de dar, imediatamente, ao direito comunitário uma aplicação conforme à decisão ou à jurisprudência do Tribunal»  (43) .

51.      Com base nos princípios da aplicabilidade directa e do primado do direito comunitário, bem como das disposições dos artigos 10.° CE e 234.° CE, o Tribunal de Justiça declarou que «o juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, pela aplicação de disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional»  (44) .

52.      No processo Factortame e o., já referido, estava em causa uma disposição tradicional da «common law» por força da qual os órgãos jurisdicionais britânicos não tinham o poder de decidir da concessão de providências cautelares no sentido de suspender a aplicação das leis, mesmo no caso em que a conformidade das referidas leis com o direito comunitário pudesse razoavelmente ser posta em causa e estivesse, por conseguinte, na origem de um pedido prejudicial de interpretação.

53.      Na sequência do acórdão Simmenthal, já referido, o Tribunal de Justiça observou que o efeito útil do sistema instituído pelo artigo 234.° CE «seria prejudicado se o órgão jurisdicional nacional que suspende a instância até que o Tribunal responda à sua questão prejudicial não pudesse conceder providências cautelares até que seja pronunciada a sua decisão na sequência da resposta do Tribunal»  (45) . Do mesmo modo considerou que «quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma»  (46) .

54.      Esta obrigação que consiste em afastar qualquer disposição interna que obste à plena eficácia do direito comunitário não impende unicamente sobre o órgão jurisdicional nacional; impõe-se também à administração.

55.      Com efeito, mesmo antes do acórdão Simmenthal, já referido, o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão de 13 de Julho de 1972, Comissão/Itália  (47) , que o efeito do direito comunitário, tal como foi declarado por uma anterior acção por incumprimento, «implica para as autoridades nacionais competentes a proibição, de pleno direito, de aplicar uma disposição nacional que é incompatível com o Tratado e, sendo caso disso, a obrigação de tomar todas as medidas para facilitar a realização do efeito pleno do direito comunitário»  (48) .

56.      Nesse processo imputava-se à administração italiana o facto de continuar a cobrar um imposto nacional previsto por disposições legislativas quando o Tribunal de Justiça tinha já tido ocasião de considerar esse imposto ilegal no quadro de um anterior acórdão em acção por incumprimento.

57.      Importa lembrar que o Tribunal de Justiça observou que a tese segundo a qual só se pode pôr fim à violação de uma norma comunitária directamente aplicável pela adopção de medidas constitucionalmente apropriadas para revogar a disposição que institui o imposto «equivaleria a afirmar-se que a aplicação da norma comum está subordinada ao direito de cada Estado-Membro e, mais precisamente, que essa aplicação seria impossível enquanto uma lei nacional se lhe opusesse»  (49) . Acrescenta que «[a] realização dos objectivos da Comunidade exige que as normas do direito comunitário [...] se apliquem de pleno direito, no mesmo momento e com efeitos idênticos em todo o território da Comunidade, sem que os Estados-Membros lhes possam opor seja que obstáculos forem»  (50) . No mesmo sentido indicou que «[a] atribuição à Comunidade dos direitos e poderes que constam das disposições do Tratado, efectuada pelos Estados-Membros, origina [...] uma limitação definitiva dos seus direitos soberanos, contra a qual não pode prevalecer a invocação de disposições de direito interno, sejam de que natureza for»  (51) .

58.      Resulta desta jurisprudência que a administração tem o dever de afastar a aplicação de qualquer disposição nacional, ainda que de natureza constitucional, quando esta obste à aplicação efectiva do direito comunitário. O Tribunal de Justiça teve já ocasião de reafirmar, por várias vezes, este dever da administração e de colocar em paralelo com o que impende sobre o tribunal nacional  (52) .

59.      A este propósito o acórdão Larsy, já referido, merece uma atenção particular, porque aborda a questão da aplicação pela administração nacional da regra da autoridade do caso julgado. Esta questão é bastante próxima da que ora nos ocupa.

60.      Se bem que possa ser um pouco fastidioso relacionar a matéria de facto e a tramitação no processo principal é útil fazê-lo a fim de delimitar com precisão o sentido e o alcance da resposta do Tribunal de Justiça neste ponto.

61.      Esta questão foi evocada no âmbito de um litígio entre um particular e a autoridade belga de segurança social a propósito da determinação dos seus direitos à pensão de reforma. Após ter atribuído ao interessado uma pensão completa, a autoridade administrativa reduziu os seus direitos, dado que já lhe tinha sido concedida uma pensão de reforma pelas autoridades francesas. G. Larsy interpôs recurso da decisão administrativa no Tribunal du travail de Tournai (Bélgica). Foi negado provimento ao recurso. Dado não ter sido notificada, esta decisão não era definitiva.

62.      Pouco tempo depois foi interposto no mesmo órgão jurisdicional recurso idêntico pelo irmão do interessado que se encontrava numa situação comparável. Este órgão jurisdicional decidiu submeter ao Tribunal de Justiça várias questões prejudiciais relativas à não cumulação das prestações e à sua liquidação pelas instituições competentes dos Estados-Membros. De acordo com o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça nessa ocasião, o órgão jurisdicional de reenvio concedeu provimento ao recurso do irmão do interessado.

63.      Valendo-se desse acórdão prejudicial o interessado pediu à administração competente para regularizar a sua situação. Esta deu-lhe em parte satisfação procedendo à revisão dos seus direitos (no sentido de uma pensão completa), mas de modo parcial, e não totalmente, retroactiva (por aplicação de determinadas disposições de um regulamento comunitário em matéria de segurança social que não eram aplicáveis). O interessado interpôs recurso da decisão do Tribunal du travail de Tournai, arguindo a responsabilidade do Estado belga devido à alegada violação do direito comunitário pela administração, pretendendo obter reparação do seu prejuízo.

64.      Foi neste contexto que a administração em causa sustentou que a alegada violação do direito comunitário se justificava pelo facto de uma disposição nacional relacionada com o respeito da autoridade do caso julgado a proibia de retroactivamente alterar a decisão administrativa controvertida.

65.      A este propósito o Tribunal de Justiça salientou que a pertinência deste argumento é infirmada pelo facto de a administração em causa ter procedido à revisão parcialmente retroactiva da sua decisão  (53) . Assim sendo, o Tribunal de Justiça não se limitou a uma tal constatação. Com efeito, teve a preocupação de indicar que «na medida em que as disposições processuais nacionais [relacionadas com o respeito do caso julgado] se opunham à garantia efectiva dos direitos que G. Larsy [o interessado] obtinha do efeito directo do direito comunitário, o Inasti [a administração em causa] deveria ter afastado a sua aplicação»  (54) . O Tribunal de Justiça baseou esta afirmação no princípio do primado do direito comunitário. Inscreveu-a na sequência da jurisprudência constante, já referida, respeitante ao papel do órgão jurisdicional nacional e da administração, proferida em aplicação desse mesmo princípio  (55) .

66.      Em nosso entender a resposta dada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Larsy, já referido, é plenamente transponível para a situação do litígio no processo principal, embora a decisão judicial nacional que o órgão administrativo em causa (no processo Larsy, já referido) invoca não fosse definitiva quando foi adoptada a decisão controvertida pelo que estava simplesmente revestida de autoridade do caso julgado e não da força de caso julgado ou da autoridade que decorre do caso definitivamente julgado como se verifica no presente processo. Consideramos que esta diferença relativamente ao alcance de uma decisão judicial não é determinante. O princípio do primado do direito comunitário impõe-se com a mesma força à administração, quer esta esteja perante uma decisão que reveste a autoridade do caso julgado ou de uma decisão que reveste a autoridade do caso definitivamente julgado  (56) . Este princípio do primado opõe-se a que uma administração nacional recuse deferir o pedido de um particular baseado no direito comunitário com base em que este pedido tenderia a pôr em causa uma decisão administrativa anterior que não fora anulada por uma decisão judicial, quer esta tenha a autoridade do caso julgado ou autoridade do caso definitivamente julgado.

67.      Esta conclusão também se impõe à luz do princípio da aplicabilidade directa e das disposições do artigo 10.° CE, na sequência dos acórdãos, já referidos, Simmenthal e Factortame e o., e em paralelo ao acórdão Francovich e o., já referido.

68.      Em nosso entender, esta análise não põe em causa o princípio da autonomia processual tal como tem sido enunciado e aplicado até ao presente pelo Tribunal de Justiça.

69.      A este respeito importa lembrar que este princípio foi desenvolvido a propósito da fixação de prazos de recurso sob pena de caducidade ou de prescrição, designadamente em matéria de repetição do indevido  (57) . O Tribunal de Justiça aplicou-o também, designadamente no que se refere à verificação de determinadas condições de que resulta a responsabilidade do Estado no caso de violação do direito comunitário  (58) ou a propósito do papel do tribunal nacional ao suscitar oficiosamente fundamentos baseados no direito comunitário  (59) .

70.      Deduzimos desta jurisprudência que o princípio da autonomia processual funciona no quadro do exercício em juízo de um direito baseado no direito comunitário, e não no relativo à existência desse mesmo direito. Aliás, importa ter presente que alargar o alcance do princípio da autonomia processual para além deste quadro actual resultaria em subordinar a existência dos direitos baseados no direito comunitário à fase de evolução em que se encontram as disposições internas dos diferentes Estados-Membros. Essa situação é dificilmente compatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário tendo em consideração, em especial, os princípios do primado e da aplicação uniforme. A este propósito, importa concluir que o Tribunal de Justiça não enveredou por essa via para reconhecer a existência do direito à indemnização dos particulares que encontra directamente o seu fundamento no direito comunitário.

71.      Face a estas considerações entendemos que o princípio da autonomia processual não pode funcionar no quadro do eventual reconhecimento em benefício dos particulares de um direito que consiste em obter a apreciação em sede de mérito, pela administração, de um pedido de pagamento baseado no direito comunitário, como interpretado por um acórdão prejudicial, mesmo quando este pedido vise pôr em causa uma decisão administrativa tornada definitiva.

72.      Ao invés, importa lembrar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça em matéria de autonomia processual, os Estados-Membros podem exigir, em nome do princípio da segurança jurídica, que um pedido de pagamento baseado no direito comunitário, como o do litígio no processo principal, seja apresentado (à Administração competente) dentro de prazos razoáveis  (60) .

73.      Resulta destes desenvolvimentos que a nossa apreciação de forma alguma pretende pôr em causa o princípio da autonomia processual.

74.      Além disso, realçamos que esta mesma apreciação não visa impor aos órgãos administrativos a revogação dos seus actos ou aos órgãos jurisdicionais a revisão das suas decisões que revestem a autoridade do caso definitivamente julgado quando tais decisões se baseiam numa interpretação do direito comunitário que foi infirmada por um acórdão prejudicial proferido posteriormente. Entendemos unicamente que o direito comunitário se opõe a que uma administração nacional recuse deferir um pedido baseado no direito comunitário, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial, pela simples razão de que a tomada em consideração deste pedido é contrária a uma regra nacional no sentido do respeito da autoridade do caso definitivamente julgado. A tomada em consideração de tal pedido pela administração não implica necessariamente a revogação da decisão administrativa anterior ou a revisão da decisão judicial em causa. Assim sendo, compete aos Estados-Membros, se o considerarem necessário, preverem disposições nesse sentido.

75.      Por conseguinte cabe responder à presente questão prejudicial que os princípios da aplicabilidade directa e do primado do direito comunitário, bem como as disposições do artigo 10.° CE, se opõem a que uma administração nacional recuse deferir um pedido de pagamento a um particular baseado no direito comunitário pelo facto de este pedido pôr em causa uma decisão administrativa anterior tornada definitiva na sequência de ter sido negado provimento ao recurso de anulação respectivo por uma decisão que reveste a autoridade do caso definitivamente julgado, quando esta decisão definitiva assenta numa interpretação do direito comunitário infirmada por um acórdão prejudicial proferido posteriormente.

VI – Conclusão

76.      Face ao conjunto destas considerações, propomos ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pelo College van Beroep voor het bedrijfsleven:

«Os princípios da aplicabilidade directa e do primado do direito comunitário, bem como as disposições do artigo 10.° CE, se opõem a que uma administração nacional recuse deferir um pedido de pagamento a um particular baseado no direito comunitário pelo facto de este pedido pôr em causa uma decisão administrativa anterior tornada definitiva na sequência de ter sido negado provimento ao recurso de anulação respectivo por uma decisão que reveste a autoridade do caso definitivamente julgado, quando esta decisão definitiva assenta numa interpretação do direito comunitário infirmada por um acórdão prejudicial proferido posteriormente.»


1 – Língua original: francês.


2 – JO L 282, p. 77; EE 03 F9 p. 151.


3 – Regulamentos da Comissão (CEE) n.° 3176/86, de 17 de Outubro de 1986 (JO L 295, p. 14); n.° 267/87, de 28 de Janeiro de 1987 (JO L 26, p. 33); n.° 1151/87, de 27 de Abril de 1987 (JO L 111, p. 21); n.° 2800/87, de 18 de Setembro de 1987 (JO L 268, p. 47); e n.° 3205/87, de 27 de Outubro de 1987 (JO L 306, p. 7), que fixam as restituições à exportação no sector da carne de aves de capoeira.


4 – Lei de 4 de Junho de 1992 (Stbl. 1992, p. 315), alterada por várias vezes, designadamente, em 12 de Dezembro de 2001 (Stbl. 2001, p. 664).


5 – Este organismo abrange os agrupamentos interprofissionais de produção de carne de aves de capoeira e de ovos com o objectivo de defender os interesses das pessoas que exercem uma actividade nesses sectores.


6 – Para facilitar a leitura e a compreensão da matéria de facto e da tramitação no processo principal vamos realçar a cronologia das diversas decisões administrativas contestadas no presente processo.


7 – Resulta dos Regulamentos n.os 3176/86, 267/87, 1151/87, 2800/87 e 3205/87, aplicáveis durante o período relevante quanto à matéria de facto no litígio no processo principal, que o montante das restituições correspondentes à subposição pautal 02.02 B II ex g é aproximadamente duas vezes inferior ao correspondente à subposição pautal 02.02 B II e) 3, que consta das declarações controvertidas.


8 – Este órgão jurisdicional denominado «tribunal de recurso em matéria económica» é o único órgão jurisdicional competente para conhecer do contencioso da legalidade das decisões que emanam de grupos interprofissionais como o PVV. Não sendo embora superior a nenhum outro órgão jurisdicional neste âmbito desempenha o papel de um órgão jurisdicional supremo, uma vez que as suas decisões são irrecorríveis.


9 – JO L 271, p. 44.


10 – O Tribunal de Justiça respondeu a essa questão por acórdão de 18 de Janeiro de 1984, Ekro (327/82, Recueil, p. 107).


11 – C-151/93, Colect., p. I-4915. Este acórdão foi proferido em resposta a uma questão prejudicial colocada por um órgão jurisdicional neerlandês de recurso em matéria penal, na sequência da condenação em primeira instância de um sociedade por, quando da exportação de carne de aves de capoeira para países terceiros, ter feito figurar em determinados formulários de exportação, com vista à obtenção de restituições, posições pautais havidas por inexactas.


12 – N.° 20. A antiga nomenclatura que aqui se refere é a que figura em anexo aos Regulamentos n.os 267/87, 1151/87 e 2800/87 (igualmente aplicáveis no litígio no processo principal).


13 – N.° 21.


14 – Acórdão de 5 de Março de 1996 (C-46/93 e C-48/93, Colect., p. I-1029).


15 – Acórdão de 23 de Maio de 1996 (C-5/94, Colect., p. I-2553).


16 – V. o n.° 6.4, décimo parágrafo, do despacho de reenvio.


17 – V., em especial, o já referido acórdão Ekro.


18 – V. o n.° 6.4, terceiro parágrafo, do despacho de reenvio.


19 – V. o n.° 6.4, segundo e terceiro parágrafos, do despacho de reenvio.


20 – V. o n.° 5, terceiro parágrafo, do despacho de reenvio.


21 – .Idem.


22 – .Idem.


23 – V. acórdão de 26 de Abril de 1994, Roquette Frères (C-228/92, Colect., p. I-1445, n.° 17).


24 – Este princípio consta dos acórdãos de 27 de Março de 1980, Denkavit italiana (61/79, Recueil, p. 1205, n.° 16), e Salumi e o. (66/79, 127/79 e 128/79, Recueil, p. 1237, n.° 9); e foi reafirmado por várias vezes, designadamente, nos acórdãos de 10 de Julho de 1980, Ariete (811/79, Recueil, p. 2545, n.° 6) e Mireco (826/79, Recueil, p. 2559, n.° 7); de 2 de Fevereiro de 1988, Barra e o. (309/85, Colect., p. 355, n.° 11), e Blaizot e o. (24/86, Colect., p. 379, n.° 27); de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz (C-62/93, Colect., p. I-1883, n.° 39); de 11 de Agosto de 1995, Roders e o. (C-367/93 a C-377/93, Colect., p. I-2229, n.° 42); de 19 de Outubro de 1995, Richardson (C-137/94, Colect., p. I-3407, n.° 31); de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C-415/93, Colect., p. I-4921, n.° 141); de 13 de Fevereiro de 1996, Bautiaa e Société française maritime (C-197/94 e C-252/94, Colect., p. I-505, n.° 47); de 2 de Dezembro de 1997, Fantask e o. (C-188/95, Colect., p. I-6783, n.° 36); de 15 de Setembro de 1998, Edis (C-231/96, Colect., p. I-4951, n.° 15); de 4 de Maio de 1999, Sürül (C-262/96, Colect., p. I-2685, n.° 107); de 20 de Setembro de 2001, Grzelczyk (C-184/99, Colect., p. I-6193, n.° 50); e de 3 de Outubro de 2002, Barreira Pérez (C-347/00, Colect., p. I-8191, n.° 44).


25 – V., designadamente, acórdão Richardson, já referido (n.° 33).


26 – V. a jurisprudência já referida na nota n.° 24.


27 – V., designadamente, os acórdãos de 16 de Janeiro de 1974, Rheinmühlen (166/73, Colect., p. 17, n.° 2), e de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e o. (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 7). Esta exigência de uniformidade na aplicação do direito comunitário é especialmente imperiosa quando está em causa a validade de um acto comunitário e não a sua simples interpretação. V., nesse sentido, acórdão de 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost (314/85, Colect., p. 4199, n.° 15).


28 – O artigo 231.° CE prevê que, no quadro de um recurso de anulação de um acto comunitário, o Tribunal de Justiça pode indicar, quando o considerar necessário, os efeitos de um regulamento anulado que se devem considerar subsistentes. Disposições comparáveis não são previstas pelo Tratado no que se refere aos acórdãos prejudiciais, para apreciação da validade ou interpretativos.


29 – Processo 43/75, Colect., p. 193, n.os 69 a 75.


30 – Acórdãos já referidos, Roders e o. (n.° 43), bem como Bautiaa e Société française maritime (n.° 48).


31 – .Idem.


32 – Após o acórdão Defrenne, já referido, são poucos os casos em que o Tribunal de Justiça foi levado a proceder a tal limitação. V., nesse sentido, os acórdãos de 17 de Maio de 1990, Barber (C-262/88, Colect., p. I-1889); de 16 de Julho de 1992, Legros e o. (C-163/90, Colect., p. I-4625); de 7 de Novembro de 1996, Cadi Surgelés e o. (C-126/94, Colect., p. I-5647); de 9 de Março de 2000, EKW e Wein & Co (C-437/97, Colect., p. I-1157); bem como os acórdãos já referidos Blaizot e o., Bosman e Sürül. Nesses casos, o Tribunal de Justiça tem igualmente o cuidado de não excluir o efeito retroactivo dos seus acórdãos prejudiciais em relação, simultaneamente, às partes no litígio no processo principal e às pessoas que, antes da data da prolação dos referidos acórdãos, intentaram uma acção judicial ou apresentaram uma reclamação equivalente.


33 – V., designadamente, os acórdãos já referidos, Denkavit italiana (n.° 18); Ariete (n.° 8); Mireco (n.° 9); Blaizot e o. (n.° 28); Legros e o. (n.° 30); Bosman (n.° 142); e EKW e Wein & Co (n.° 57).


34 – .Idem.


35 – Para ser mais preciso, caberia falar de autoridade do caso – definitivamente – julgado, mais do que da força de caso julgado. Com efeito, as decisões do College van Beroep são irrecorríveis (salvo eventual recurso extraordinário de revisão). Quanto à distinção entre esses dois conceitos, v. o n.° 96 das nossas conclusões de 8 de Abril de 2003 no processo Köbler (C-224/01).


36 – V. acórdãos de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, Colect., p. 243, n.° 22), e de 19 de Maio de 1990, Factortame e o. (C-213/89, Colect., p. I-2433, n.° 20).


37 – V. acórdãos, já referidos, Simmenthal (n.os 14 a 16) e Factortame e o. (n.° 18).


38 – V. acórdãos, já referidos, Simmenthal (n.os 17 e 18) e Factortame e o. (n.° 18).


39 – N.° 19.


40 – Processos apensos C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357.


41 – V. acórdão Francovich e o., já referido (n.° 36).


42 – .Idem.


43 – V. acórdão Simmenthal, já referido (n.° 20).


44 – .Ibidem, n.° 24.


45 – V. acórdão Factortame e o., já referido (n.° 22).


46 – .Ibidem, n.° 23.


47 – 48/71, Colect., p. 181.


48 – V. acórdão Comissão/Itália, já referido (n.° 7).


49 – .Ibidem, n.° 6.


50 – .Ibidem, n.° 8.


51 – .Ibidem, n.° 9.


52 – V., designadamente, os acórdãos de 22 de Junho de 1989, Fratelli Costanzo (103/88, Colect., p. 1839, n.° 33); de 19 de Janeiro de 1993, Comissão/Itália (C-101/91, Colect., p. I-191, n.° 24); e de 28 de Junho de 2001, Larsy (C-118/00, Colect., p. I-5063, n.° 52).


53 – V. acórdão Larsy, já referido (n.° 54).


54 – .Ibidem, n.° 53.


55 – .Ibidem, n.os 51 e 52.


56 – Nas nossas conclusões no acórdão Köbler, já referido (n.° 106), tivemos já ocasião de referir que, por força do princípio do primado do direito comunitário, uma regra nacional como a regra do respeito da autoridade do caso definitivamente julgado não pode ser oponível a um particular com o intuito de impedir a procedência de uma acção de reparação baseada no direito comunitário devido à sua violação por um órgão jurisdicional supremo.


57 – V., designadamente, os acórdãos de 16 de Dezembro de 1976, Rewe (33/76, Colect., p. 813, n.° 6), Comet (45/76, Recueil, p. 2043, n.° 19, Colect., p. 835), bem como os acórdãos, já referidos, Fantask e o. (n.° 52) e Edis (n.° 26).


58 – V. os acórdãos, já referidos, Francovich e o. (n.os 42 e 43) bem como Brasserie du pêcheur e Factortame (n.° 67).


59 – V. os acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck (C-312/93, Colect., p. I-4599, n.os 12 e segs.), bem como Van Schijndel e Van Veen (C-430/93 e C-431/93, Colect., p. I-4705, n.° 17 e segs.).


60 – Relativamente aos prazos de recurso judiciais, ver os acórdãos, já referidos, Rewe (n.os 5 e 7); Comet (n.os 17 e 18); Denkavit italiana (n.° 23); Fantask e o. (n.° 48); Edis (n.° 20); bem como os acórdãos de 10 de Julho de 1997, Palmisani (C-261/95, Colect., p. I-4025, n.° 28); de 17 de Julho de 1997, Haahr Petroleum (C-90/94, Colect., p. I-4085, n.° 48); e Roquette Frères, já referido (n.os 22 e 36).