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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
L. A. Geelhoed
apresentadas em 18 de Setembro de 2003(1)


Processo C-308/01



Gil Insurance Ltd
UK Costumer Electronics Ltd
Consumer Electronics Insurance Co. Ltd
Direct Vision Rentals Ltd
Homecare Insurance Ltd
Pinnacle Insurance plc
contra
Commissioners of Customs & Excise


(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo VAT and Duties Tribunal, London)

«Prejudicial – VAT and Duties Tribunal, London – Interpretação dos artigos 27.° e 33.° da Directiva 77/388/CEE – Interpretação do artigo 87.° CE – Introdução de um imposto sobre os contratos de seguros – Obrigação de pedir a autorização prévia do Conselho»






I – Introdução

1.        No presente processo, o VAT and Duties Tribunal apresentou cinco questões prejudiciais. As duas primeiras questões dizem respeito à Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, na sua versão alterada (a seguir «Sexta Directiva»)  (2) . Têm, particularmente, em vista a interpretação dos artigos 27.° e 33.° desta directiva.

2.        As três últimas questões baseiam-se no pressuposto de que um imposto selectivo mais elevado, que onere apenas actividades económicas rigorosamente definidas, pode dar azo a distorções de concorrência às quais são aplicáveis os artigos 87.° e 88.° CE. Estas questões prendem-se, em especial, com o critério definido no artigo 87.°, n.° 1, CE, medidas que afectam as trocas comerciais entre os Estados-Membros (questões 3 e 4), e com as consequências da não notificação da medida fiscal em causa (questão 5).

3.        O contexto em que as três últimas questões foram suscitadas justifica uma análise aprofundada do âmbito dos artigos 87.° e 88.° CE enquanto leges speciales que têm por objectivo evitar e eliminar as distorções de concorrência no mercado comum, na medida em que essas distorções resultem de auxílios de Estado. Com efeito, se as medidas fiscais selectivas que estão na base do processo principal não puderem ser qualificadas de auxílio de Estado, as distorções daí decorrentes apenas podem ser eliminadas mediante a aplicação dos – raramente invocados – artigos 96.° e 97.° CE, que constituem lex generalis relativamente aos artigos 87.° e 88.° CE.

4.        Esta problemática, igualmente destacada pela Comissão nas suas observações escritas, confere ao presente processo maior importância jurídica do que as questões colocadas deixariam, à primeira vista, antever.

II – Enquadramento jurídico

A – Direito nacional

5.        A section 31 e o group 2 do schedule 9 do Value Added Tax Act 1994 (lei relativa ao imposto sobre o valor acrescentado de 1994) dispõem que os seguros e serviços conexos estão isentos do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») no Reino Unido, em conformidade com o disposto no artigo 13.° da Sexta Directiva.

6.        O Finance Act 1994 (lei das finanças de 1994) criou um imposto sobre os prémios de seguro que incide sobre a receita dos prémios de seguro arrecadada pelos operadores de seguros. Este imposto era inicialmente cobrado à taxa normal de 2,5% Através do Finance Act 1997 (lei das finanças de 1997), a taxa normal foi aumentada de 2,5% para 4%, tendo sido introduzida uma nova taxa agravada de 17,5%

7.        A taxa normal é de aplicação geral. A taxa agravada, que, quando foi introduzida, correspondia à taxa normal de IVA em vigor no Reino Unido, aplica-se agora apenas aos prémios dos seguro de aparelhos domésticos, de automóveis e de viagens.

8.        Em relação às viagens, a taxa agravada só se aplicava a seguros de viagem vendidos por agências de viagens, já que os seguros de viagem vendidos directamente por operadores de seguros estavam sujeitos à taxa normal. No processo R v Commissioners of Customs and Excise, ex parte Lunn Poly Limited and another [1999] STC 350, a Court of Appeal of England and Wales considerou que, relativamente aos seguros de viagem, as taxas diferenciais de tributação constituíam um auxílio de Estado no sentido do n.° 1 do artigo 87.° CE.

9.        Confrontados com esta decisão, que confirmava a decisão anterior da Divisional Court no mesmo sentido, os Commissioners of Customs and Excise, por Business Brief publicada a 24 de Abril de 1998, comunicaram que renunciavam à cobrança através da aplicação retroactiva da taxa agravada aos seguros de viagem contratados à taxa normal. A partir de 1 de Agosto de 1998, todos os seguros de viagem passaram a estar sujeitos à taxa agravada.

10.      No que diz respeito aos aparelhos domésticos, a taxa agravada só se aplica quando o operador de seguros está ligado ao fornecedor dos aparelhos, quando o seguro é contratado através do fornecedor ou ainda quando o operador de seguros paga uma comissão ao fornecedor. Um seguro destes vendido por corretores de seguros ou directamente por companhias de seguros está sujeito à taxa normal.

11.      A introdução da taxa agravada foi justificada como forma de evitar a «value shifting». As autoridades do Reino Unido entendiam que os fornecedores de aparelhos domésticos podiam tirar proveito das isenções de IVA aplicáveis aos serviços de seguros, através da manipulação dos preços dos referidos aparelhos e dos respectivos seguros.

B – Direito comunitário

12.      Nos termos do artigo 13.°, B, da Sexta Directiva:

«Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso:

a)As operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efectuadas por correctores e intermediários de seguros;

[...]»

13.      O artigo 27.°, n.° 1, da Sexta Directiva prevê que o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, pode autorizar os Estados-Membros a introduzirem medidas especiais derrogatórias da presente directiva para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais. As medidas destinadas a simplificar a cobrança do imposto não devem influir, a não ser de modo insignificante, sobre o montante do imposto devido no estádio de consumo final.

14.      Por último, o artigo 33.°, n.° 1, da Sexta Directiva determina que, salvo o disposto noutras normas comunitárias, designadamente nas disposições comunitárias em vigor relativas ao regime geral da detenção, circulação e controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais sobre o consumo, as disposições da presente directiva não impedem que um Estado-Membro mantenha ou introduza impostos sobre os contratos de seguros, sobre jogos e apostas, sobre consumos especiais, direitos de registo e, em geral, todos os impostos, direitos e taxas que não tenham a natureza de impostos sobre o volume de negócios, desde que esses impostos, direitos e taxas não dêem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.

III – Matéria de facto e enquadramento processual

Litígio submetido ao órgão jurisdicional nacional

15.      Todas as recorrentes no processo principal são sociedades constituídas no Reino Unido, que aí exercem a sua actividade no domínio dos seguros ou de serviços conexos relacionados com aparelhos domésticos. Algumas são companhias de seguros (Consumer Electronics Company Ltd, pertencente ao grupo Thorn, Homecare Ltd e Pinnacle Insurance Plc), outras empresas de aluguer e de venda a retalho de aparelhos domésticos que operam na qualidade de agentes de seguros sujeitos a imposto (Gil Insurance Ltd, UK Consumer Electronics Ltd e Direct Vision Rentals Ltd, todas pertencentes ao grupo Granada).

16.      Os recorridos no processo principal são os Commissioners of Customs and Excise, responsáveis pela administração, cobrança e reembolso do imposto sobre os prémios de seguro (a seguir «IPS») e do IVA no Reino Unido.

17.      As recorrentes pagaram a taxa agravada do IPS relativamente a seguros vendidos em conexão com a venda ou o aluguer de aparelhos domésticos. Na sequência da decisão da Court of Appeal no caso Lunn Poly, já referida no n.° 8, as recorrentes requereram aos Commissioners of Customs and Excise a restituição das quantias que haviam pago. Esses requerimentos foram indeferidos, pelo que as recorrentes interpuseram recurso para o VAT and Duties Tribunal.

18.      No VAT and Duties Tribunal, as recorrentes sustentaram que tinham direito à restituição das quantias pagas a título de IPS à taxa agravada, uma vez que:a taxa agravada é uma medida especial derrogatória das disposições da Sexta Directiva, pelo que é necessária uma autorização prévia ao abrigo do artigo 27.°, a qual não foi solicitada nem obtida; pode considerar-se que a taxa agravada tem a natureza de um tipo de imposto sobre o volume de negócios não permitido pelo artigo 33.° da Sexta Directiva; a diferença entre a taxa agravada e a taxa normal constitui um auxílio de Estado na acepção do artigo 87.° CE, do qual a Comissão Europeia não foi informada nos termos do artigo 88.°, n.° 3, CE.

19.      Os Commissioners of Customs and Excise contestaram estas alegações no processo principal. Reconheceram que não foi requerida nem obtida qualquer autorização de derrogação nos termos do artigo 27.° da sexta Directiva e que a Comissão Europeia não foi informada, em conformidade com o artigo 88.°, n.° 3, CE, do projecto de introduzir uma taxa agravada do IPS. Admitiram que, caso se verificasse uma violação da Sexta Directiva, as recorrentes teriam direito à restituição de todo o imposto pago, mas consideram que, se a diferença entre a taxa normal e a taxa agravada do IPS constituísse uma medida de auxílio ilegal, a restituição não seria a solução adequada.

20.      Na sequência do exposto, o VAT and Duties Tribunal submeteu ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias cinco questões prejudiciais.

Questões prejudiciais

«1)Deve o artigo 27.° da Sexta Directiva ser interpretado no sentido de que impunha a autorização do Conselho previamente à introdução da taxa agravada do imposto sobre os prémios de seguro, taxa esta que foi criada para anular os efeitos da isenção dos serviços de seguros prevista no artigo 13.° da directiva, que tinha um valor idêntico ao da taxa normal do imposto sobre o valor acrescentado, que era aplicada do mesmo modo que o imposto sobre o valor acrescentado e que se destinava a formar, em conjunto com o imposto sobre o valor acrescentado, um todo indivisível; tudo isto nos casos em que não existisse fraude ou evasão fiscal?

2)Deve o artigo 33.° da Sexta Directiva ser interpretado no sentido de que obsta a que um Estado-Membro introduza um imposto sobre os prémios de seguro que seja calculado com base nos serviços prestados, que seja proporcional ao preço dos serviços prestados, que seja cobrado na fase final da venda ao consumidor, que seja repercutido no consumidor final da mesma forma que o imposto sobre o valor acrescentado, recaindo sobre o consumidor o encargo dele resultante, que seja aplicável à totalidade do território do Reino Unido, mas que não seja aplicável de uma forma geral a todas as transacções sobre bens e serviços?

3)Deve o n.° 1 do artigo 87.° CE ser interpretado no sentido de se dever entender que um auxílio afecta as trocas comerciais entre os Estados-Membros apenas se provocar, ou puder provocar, um efeito apreciável sobre as mesmas? Em caso de resposta afirmativa, quais são os critérios que permitem apreciar se uma medida tem ou não esse efeito?

4)Deve o n.° 1 do artigo 87.° CE ser interpretado no sentido de se dever considerar que um auxílio afecta as trocas comerciais entre os Estados-Membros se, em consequência desse auxílio, (1) os comerciantes de um Estado-Membro reduzirem as quantidades de bens que importam de outros Estados-Membros, (2) um comerciante que aluga aparelhos domésticos a consumidores num Estado-Membro se deparar com a resolução de alguns dos seus contratos de aluguer, colocando esses aparelhos noutro Estado-Membro ou (3) as companhias seguradoras de um Estado-Membro que operam no domínio dos seguros conexos com a venda de aparelhos domésticos ficarem muna posição concorrencial desvantajosa face às companhias que oferecem seguros directos, sendo algumas destas filiais de companhias de outros Estados-Membros?

5)Se, à luz das respostas às perguntas 3 e 4, a taxa agravada do imposto sobre os prémios de seguro constituir um auxílio de Estado nos termos do n.° 1 do artigo 87.° CE, deve o artigo 88.° CE ser interpretado no sentido de que, quando a Comissão não for informada do projecto de concessão do auxílio, as medidas legislativas que o criem não devem ser aplicadas, devendo qualquer imposto pago ao abrigo das mesmas ser restituído?»

Processo no Tribunal de Justiça

21.      Estas questões foram apresentadas por despacho de 24 de Julho de 2001, que deu entrada na secretaria do Tribunal de Justiça a 6 de Agosto de 2001. As recorrentes no processo principal, o Governo do Reino Unido e a Comissão apresentaram observações escritas. Na audiência de 19 de Junho de 2002, expuseram com maior pormenor as suas posições. Durante esta audiência, o Governo neerlandês apresentou igualmente o seu entendimento.

IV – Primeira e segunda questões prejudiciais

22.      As duas primeiras questões dizem respeito à introdução do IPS. Este imposto foi introduzido em 1994 e era inicialmente cobrado à taxa de 2,5% Em 1997, esta taxa foi aumentada para 4% Em 1999, voltou a ser aumentada para 5%. Em 1997, foi ainda introduzida uma taxa agravada do IPS. Esta taxa, de 17,5%, manteve-se posteriormente inalterada. A taxa agravada foi introduzida para contrariar o «value shifting», uma forma de evasão fiscal.

23.      Antes de apreciar as questões, cumpre fazer um apanhado do contexto em que as mesmas foram colocadas.

24.      No que diz respeito a aparelhos domésticos relativamente dispendiosos, como aparelhos audiovisuais, máquinas de lavar, etc., os consumidores podem escolher entre o aluguer e a compra. No Reino Unido, muitos consumidores começaram por dar preferência à opção do aluguer. Com o decurso do tempo, a tendência inverteu-se, passando a dar-se preferência à compra dos aparelhos  (3) . Esta mudança de preferência está relacionada com o aumento da prosperidade e a melhoria da qualidade dos produtos. A evolução registada no mercados dos aparelhos de televisão ilustra isso mesmo. Quando estes apareceram no mercado do Reino Unido em grandes quantidades, no início dos anos sessenta, eram caros face ao rendimento disponível e, sobretudo, muito vulneráveis do ponto de vista técnico, exigindo reparações frequentes. Daí que os consumidores dessem clara preferência ao aluguer. Posteriormente, os aparelhos de televisão tornaram-se relativamente baratos e a sua fiabilidade técnica melhorou drasticamente. O exposto, associado à evolução do chamado crédito ao consumo, enquanto instrumento de promoção das vendas, levou gradualmente os consumidores a preferirem comprar estes aparelhos. Esta evolução no comportamento dos consumidores também se verificou em relação a outros aparelhos domésticos.

25.      O mercado, que inicialmente era dominado pelo aluguer, tinha algumas características específicas. Aos contratos de aluguer andava normalmente associada a obrigação de o cliente manter o aparelho em boas condições e a correspondente obrigação de manutenção por parte do fornecedor-locador. Quer uma quer outra eram repercutidas no preço do aluguer. Esta construção tinha para o fornecedor a vantagem de os aparelhos permanecerem em bom estado durante o período de aluguer, o que facilitava o seu aluguer ulterior, findo esse período. O consumidor tinha a vantagem de ver garantido o gozo do aparelho alugado.

26.      Posteriormente, os fornecedores adoptaram uma construção semelhante para a venda de aparelhos domésticos, oferecendo em simultâneo contratos de manutenção. Davam assim aos utentes determinada garantia de utilização. Através destes contratos acessórios dos contratos de compra e venda, os fornecedores comprometiam-se a solucionar eventuais avarias dos aparelhos vendidos mediante o pagamento pelo utente de uma prestação pecuniária única ou anual.

27.      A prestação de serviços com base neste tipo de contratos de manutenção foi sujeita a IVA à taxa normal de 17,5%. O facto de os seguros estarem isentos de IVA nos termos do artigo 13.°, B, , alínea a), da Sexta Directiva levou a que alguns grandes fornecedores conferissem a estes contratos de manutenção a natureza de contratos de seguros, tendência que a introdução, em 1994, de uma taxa do IPS bastante mais baixa não conseguiu inverter. Para o efeito, criaram a sua própria companhia de seguros ou actuavam na qualidade de intermediários de uma companhia de seguros e recebiam uma comissão por cada contrato celebrado.

28.      As recorrentes no processo principal também começaram a oferecer contratos de manutenção com a aparência de contratos de seguros. Assim, Granada – um dos maiores fornecedores de aparelhos domésticos no Reino Unido – criou a empresa GIL, a fim de, por seu intermédio, poder oferecer contratos de seguros tanto aos seus clientes do aluguer como aos da venda a retalho. Em relação ao aluguer, a celebração de um contrato deste tipo foi mesmo tornada obrigatória. Caso viessem a ser detectadas avarias nos aparelhos dos segurados, a GIL podia recorrer aos serviços da Granada para as reparações necessárias. Esta fornecia a mão-de-obra e as peças sobresselentes que eram necessárias.

29.      Em 1994, a esmagadora maioria, entre 85% e 90%, dos contratos de seguros para a cobertura das avarias mecânicas dos aparelhos domésticos eram celebrados por intermédio do fornecedor do aparelho (o denominado seguro conexo). Só uma pequena parte dos seguros eram vendidos directamente ao consumidor.

30.      Um relatório publicado no mesmo ano revelou que a venda destas garantias alargadas (contratos de manutenção e contratos de seguros) envolvia um montante anual de 400 000 000 GBP, ficando a maior parte a dever-se a contratos de seguros.

31.      Os Commissioners of Customs and Excise reconheceram que este tipo de evasão fiscal implicava uma diminuição das receitas do IVA. Daí que o legislador britânico tenha introduzido a taxa agravada de 17,5% para o IPS, exclusivamente aplicável aos denominados contratos de seguro conexo, ou seja, que pressupõem uma forma de relação estável entre o segurador e o fornecedor dos aparelhos.

32.      A introdução da taxa agravada teve um impacto significativo no comportamento das partes no mercado. A maioria dos fornecedores voltou a oferecer contratos de manutenção simples com a entrega dos seus aparelhos. Onde não estavam ainda celebrados contratos de seguros, os denominado contratos directos conquistaram uma parte significativa do mercado. Seguradores e fornecedores aliados puseram assim termo à relação estável que mantinham. Também as recorrentes no processo principal se viram obrigadas a adaptarem nesse sentido o seu comportamento no mercado.

Observações das partes

33.      As observações às duas primeiras questões efectuadas pelas partes no processo principal, por um lado, e pelo Governo britânico e pela Comissão, por outro, centram-se em dois aspectos. Em primeiro lugar, a natureza de imposto indirecto do IPS (agravado) e, em segundo lugar, as consequências daí resultantes para a interpretação e aplicação dos artigos 27.° e 33.° da Sexta Directiva.

34.      A posição das recorrentes no processo principal pode resumir-se da seguinte forma:

–as duas primeiras questões dizem exclusivamente respeito à taxa agravada do IPS e não à taxa normal. O IPS à taxa agravada foi introduzido para os seguros directamente conexos com os fornecimentos de bens sujeitos a IVA. A finalidade da taxa era combater a evasão fiscal. Uma vez que este objectivo não foi tido em conta aquando da introdução da taxa normal, as questões em causa não dizem respeito a essa taxa;

–dado que a taxa agravada do IPS sobre os contratos de manutenção associados ao fornecimento de aparelhos domésticos forma, com o IVA, um todo indissociável e que ambos os impostos são sucedâneos, o IPS agravado deve efectivamente ser qualificado de imposto sobre o volume de negócios proibido pelo artigo 33.° da Sexta Directiva;

–no contexto específico em que é aplicado, o IPS agravado apresenta todas as características inerentes ao IVA: é proporcional ao preço dos bens e serviços e acaba por ser suportado pelo consumidor final. A circunstância de o IVA ser cobrado em cada fase do processo de produção e de distribuição e ser calculado após a dedução do imposto cobrado a montante é menos relevante, pois, no caso em apreço, deixando de lado os resseguros, a cadeia apenas comporta um elo, a saber, a transacção entre o segurador e o segurado. Naturalmente que o IVA é aplicável às transacções de bens e serviços em geral e o IPS agravado apenas onera determinadas actividades económicas, mas a complementariedade entre o IVA e o IPS agravado resulta num imposto geral aplicável a todas as transacções de aparelhos domésticos, às quais é igualmente aplicável o IVA;

–o artigo 33.° tem por finalidade evitar a introdução de impostos e taxas que, por onerarem os movimentos de bens e serviços de uma forma equiparável à do imposto sobre o valor acrescentado, comprometam o funcionamento do sistema comum do IVA. A negação dos efeitos da disposição – artigo 13.°, B, , alínea a) – da Sexta Directiva que isenta os seguros de IVA é suficiente para demonstrar que o bom funcionamento do sistema comum do IVA foi afectado;

–para a introdução da taxa agravada do IPS, medida que tinha por finalidade combater a evasão ao IVA, a Sexta Directiva prevê o procedimento de autorização do artigo 27.° Uma vez que o Governo do Reino Unido não requereu nem obteve semelhante autorização, a introdução da taxa agravada do IPS viola o artigo 27.° da Sexta Directiva.

35.      As posições do Governo do Reino Unido e da Comissão são idênticas, embora com alguns matizes:

–o IPS, quer à taxa normal quer à taxa agravada, não pode ser qualificado de imposto sobre o volume de negócios contrário ao artigo 33.° da sexta Directiva;

–com efeito, o IPS não possui algumas das características essenciais enunciadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Este imposto não é de aplicação geral às transacções de bens e serviços nem é cobrado em cada fase do processo de produção e de distribuição. Vale apenas em relação aos contratos de seguros e é cobrado uma única vez;

–o artigo 33.° da Sexta Directiva confere expressamente aos Estados-Membros competência para introduzirem ou aplicarem impostos sobre os contratos de seguros, desde que estes não tenham a natureza de impostos sobre o volume de negócios. Isso não se verifica no caso em apreço;

–se o IPS não é um imposto sobre o volume de negócios, a sua cobrança não viola a isenção de IVA aplicável aos seguros prevista no artigo 13.°, B, da Sexta Directiva. Consequentemente, tão-pouco é necessária uma autorização prévia nos termos do artigo 27.°, n.° 1, da directiva. Com efeito, esta disposição é exclusivamente aplicável à tributação do IVA;

–a tese defendida pelas recorrentes no processo principal de que a primeira questão apenas diz respeito ao IPS à taxa agravada não pode ser acolhida. Não pode defender-se que uma taxa de um imposto viola a directiva e a outra não.

Apreciação

36.     À semelhança do Governo do Reino Unido e da Comissão, prefiro começar por responder à segunda questão. Esta resposta vai influenciar a resposta à primeira questão.

Artigo 33.° da Sexta Directiva: natureza jurídica do IPS

37.      Antes de mais, sublinho que não posso partilhar a tese das recorrentes segundo a qual as questões apenas dizem respeito à taxa mais elevada do IPS.

38.      Embora se possa afirmar que as questões do processo principal foram suscitadas, sobretudo, em relação à taxa mais elevada e apesar de o Governo britânico e as recorrentes concordarem que esta taxa mais alta tinha por objectivo específico combater a evasão fiscal ao IVA nos contratos de manutenção acessórios de contratos de aluguer e de compra de aparelhos domésticos com a aparência de contratos de seguros, a verdade é que se trata, no caso em apreço, de um imposto com duas taxas. Assim, uma interpretação do IPS à luz do artigo 33.° da Sexta Directiva implica que o imposto em causa seja examinado no seu todo, atendendo a todas as suas características específicas. Neste contexto, só são possíveis dois resultados: ou o IPS é um IVA dissimulado e, nessa medida, viola a Sexta Directiva ou não possui as características do IVA, pelo que é permitido.

39.      A questão de saber se o IPS deve ser qualificado de imposto sobre o volume de negócios deve ser respondida à luz do escopo do artigo 33.° da Sexta Directiva.

40.      A este propósito, o Tribunal de Justiça declarou, várias vezes, que o referido artigo tem por objectivo evitar que o funcionamento do sistema comum do IVA seja comprometido pela introdução de impostos, direitos e taxas que onerem os movimentos de bens e serviços de uma forma equiparável à do IVA  (4) . É o que acontece quando as medidas fiscais possuem as características essenciais do IVA  (5) . Por conseguinte, o artigo 33.° confere expressamente aos Estados-Membros a liberdade de introduzirem determinadas medidas fiscais – incluindo impostos sobre contratos de seguros, concretamente referidos neste artigo –, desde que esses impostos não apresentem as características essenciais do IVA  (6) .

41.      As características típicas do IVA podem resumir-se da seguinte forma: é aplicável às transacções de bens e serviços em geral, é cobrado em cada fase do processo de produção e de distribuição, é rigorosamente proporcional ao preço dos respectivos bens e serviços e é calculado sobre o valor acrescentado após a dedução do imposto pago no momento da transacção anterior.

42.      Não há dúvida de que o IPS é proporcional ao preço dos respectivos serviços e de que acaba por onerar o consumidor. Contudo, não é aplicável às transacções de bens e serviços em geral, mas apenas a um serviço específico, a saber, o fornecimento de seguros. Os argumentos relativos à aplicabilidade deste imposto à totalidade do território do Reino Unido ou à importância económica do sector dos seguros não impedem que se conclua que o IPS não constitui um imposto geral sobre o consumo, o que, por si só, já permite afirmar que o IPS não é um imposto sobre o volume de negócios na acepção do artigo 33.° da Sexta Directiva.

43.      O IPS não apresenta ainda algumas outras características que tipificam o regime do IVA. Assim, ao contrário do IVA, o IPS não é cobrado em cada fase do processo de produção e de distribuição e não incide sobre o valor acrescentado. É cobrado uma única vez, no momento da celebração do contrato de seguro, sobre todo o prémio de seguro. Por conseguinte, tão-pouco pode existir qualquer direito de dedução prévia.

44.      As recorrentes no processo principal procuraram demonstrar que o IPS deve, apesar disso, ser qualificado de imposto sobre o volume de negócios semelhante ao IVA, pois se este imposto fosse aplicável aos seguros também oneraria apenas uma fase, ou seja, a celebração do contrato de seguro. Este argumento não procede, uma vez que confunde as características jurídicas do IVA – que pressupõem a tributação do valor acrescentado de cada fase da cadeia de produção – com as características de determinada cadeia, que no caso em apreço só possui uma fase. A meu ver, a Comissão tem razão ao observar que a posição das recorrentes levaria a qualificar de imposto sobre o volume de negócios todos os impostos sobre seguros cobrados numa única fase.

45.      Uma vez que o regime do IPS não possui as características de um imposto sobre o volume de negócios, este imposto sobre seguros – expressamente autorizado, enquanto tal, pelo artigo 33.° da Sexta Directiva – não obsta, em geral, à aplicabilidade do regime do IVA. Por conseguinte, o artigo 33.° não levanta qualquer obstáculo ao IPS.

Aplicabilidade do artigo 27.° da Sexta Directiva

46.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, antes da introdução da taxa agravada do IPS, devia ter sido seguido o procedimento do artigo 27.°

47.      O artigo 27.° prevê a possibilidade de os Estados-Membros, após autorização do Conselho, introduzirem medidas derrogatórias da directiva destinadas a simplificar a cobrança do imposto ou a evitar certos tipos de fraude ou de evasão fiscal. As recorrentes alegam que a taxa agravado do IPS é uma dessas medidas derrogatórias da directiva, em especial do artigo 13.°, B, da Sexta Directiva, já que anula a isenção de IVA prevista neste artigo relativamente a determinados serviços de seguros, a saber, os sujeitos à taxa agravada.

48.      Da resposta à segunda questão já resulta que não concordo com este raciocínio. Se o IPS (ou a taxa agravada do mesmo) não é um imposto sobre o volume de negócios, a sua cobrança não viola a isenção de IVA dos serviços de seguros. Não pode, pois, ser considerado uma medida derrogatória.

49.      A fim de ser exaustivo, importa referir que os serviços de seguros, embora estejam isentos de IVA, não são imunes a outros impostos indirectos. Os Estados-Membros são livres de criarem os seus próprios impostos indirectos sobre os contratos de seguros. O artigo 33.° prevê-o expressamente, conforme referido a propósito da questão anterior. Só não podem fazê-lo se se tratar de um imposto sobre o volume de negócios. Dado que os Estados-Membros têm competência para tributar os contratos de seguros, podem igualmente fixar as taxas, diferenciadas ou não, desse imposto, desde que isso não contrarie as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação nem configure uma medida de auxílio proibida. O facto de, no caso em apreço, a taxa agravada do IPS ser equivalente à taxa do IVA nada muda. Por outras palavras, não vejo motivo para o Reino Unido não poder introduzir uma diferenciação com vista a suprimir uma distorção entretanto verificada no seu mercado interno.

50.      As recorrentes fizeram ainda referência aos acórdãos Bélgica I  (7) e II  (8) . Contudo, os factos subjacentes a estes processos diferem dos do ora em apreço. No primeiro processo, a Bélgica baseara a cobrança do IVA no preço de catálogo de automóveis de passageiros novos, em vez do preço efectivamente acordado. O Tribunal de Justiça concluiu que isso violava a Sexta Directiva. Em seguida, o legislador belga adaptou a legislação, mas, simultaneamente, adoptou uma regulamentação complementar com vista a adaptar o regime fiscal de modo a ficar tudo na mesma. Isto foi conseguido graças à aplicação de determinado mecanismo de cálculo. A exposição de motivos da regulamentação mencionava expressamente que estava em causa uma medida correctiva em resultado do acórdão do Tribunal de Justiça e que existia uma clara ligação entre a cobrança do IVA e a aplicação do imposto de registo. Posteriormente, no acórdão Bélgica II, o Tribunal de Justiça considerou que o imposto de registo e a tributação do IVA estavam estreitamente ligados. No presente processo, o regime fiscal do IPS é completamente distinto do IVA. O facto de a taxa agravada ter sido introduzida para combater determinada forma de evasão fiscal não põe isso em causa.

V – Questões relativas ao auxílio estatal

Observações prévias

51.      Nas sua observações escritas, quer o Governo do Reino Unido quer a Comissão afirmaram ter algumas dúvidas sobre se os factos subjacentes ao processo principal permitiam ou não falar de auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

52.      Um exame mais atento do despacho de reenvio, designadamente dos argumentos que o órgão jurisdicional de reenvio extraiu da decisão da Court of Appeal no processo R v Commissioners of Customs and Excise, ex parte Lunn Poly Limited, já referido no n.° 8 das presentes conclusões, leva-me a crer que as dúvidas em torno desta questão merecem uma análise mais aprofundada.

53.      Caso se entenda que os factos em causa permitem concluir pela inexistência de auxílio de Estado, as questões colocadas no presente processo adquirem uma natureza mais ou menos hipotética. Neste contexto, volta a colocar-se a questão da admissibilidade das referidas questões.

54.      Começarei por examinar, em abstracto, a relação existente entre os artigos 96.° e 97.° CE, por um lado, e os artigos 87.° e 88.° CE, por outro, disposições que partilham o objectivo de eliminar eventuais distorções no mercado comum. Faço-o na sequência das alegações apresentadas pela Comissão antes das suas observações relativas à quinta questão.

55.      Segundo a Comissão, existem dois tipos de auxílio:

–os «auxílios clássicos», que consistem numa vantagem ou excepção fiscal específica. A solução clássica com vista a «neutralizar o auxílio» é a recuperação, pelo Estado-Membro em causa, junto do beneficiário, do montante de auxílio concedido, acrescido dos juros. A alternativa, embora inviável, por razões orçamentais, consiste na generalização do auxílio;

–o «segundo» tipo de auxílio, que consiste em subordinar parte de um sector a uma tributação especial de natureza fiscal. O auxílio é aqui neutralizado através da supressão da tributação especial de natureza fiscal. Neste contexto, pode optar-se por reembolsar à empresa em causa a tributação especial por ela suportada, a fim de restabelecer a concorrência com empresas não sujeitas a essa tributação. Esta é a solução proposta pelas recorrentes. No entanto, também se pode optar por generalizar a tributação especial e, assim, recuperar o auxílio de todos os beneficiários.

56.      A Comissão acrescenta que, em relação ao segundo tipo de auxílio, existem duas opções: ou o Tribunal de Justiça nega, por princípio, esta última solução, abordagem seguida no acórdão Banks  (9) , ou a mesma é deixada em aberto, abordagem que decorre logicamente da primeira parte do acórdão Ferring  (10) .

57.      Conforme desenvolverei em seguida, no meu entender, a Comissão parte com demasiada facilidade do princípio de que os casos por ela qualificados de «segundo tipo de auxílio» configuram invariavelmente auxílio de Estatal na acepção do artigo 87.° CE. O artigo 87.° CE adquire, assim, um âmbito material mais alargado do que o justificado pela economia do Tratado.

Quanto às distorções

58.      Nas negociações que precederam a adopção do Tratado CEE, o conceito económico «distorção» foi muito debatido. O relatório Spaak, do qual a Comissão anexou um excerto às suas observações escritas, faz eco disso.

59.      Em termos substanciais, o debate em torno do conceito de distorção centrou-se no eventual impacto que a criação de um mercado comum teria nas economias nacionais e na política económica nacional.

60.      Com a supressão das barreiras económicas internas, os Estados-Membros perderiam também parte dos instrumentos que até então lhes permitiam corrigir desequilíbrios nas relações económicas transfronteiriças.

61.      Estes desequilíbrios podiam verificar-se a vários níveis entre as diferentes economias. A nível macroeconómico, as denominadas distorções globais revelam-se, por exemplo, em preços e custos da mão-de-obra demasiado elevados, visíveis num défice estrutural na conta-corrente da balança de pagamentos e num aumento do desemprego. Na hipótese contrária, surge um importante excedente na conta corrente, com um mercado de trabalho demasiado tenso e ameaça de inflação.

62.      Num mercado comum, para corrigirem semelhantes distorções globais, os Estados-Membro têm, em princípio, que lançar mão dos seus instrumentos de política macroeconómica e, até à criação da UEM, dos seus instrumentos de política monetária. As competências comunitárias nesta matéria eram, principalmente, de – ligeira – coordenação. Estavam consagradas nos artigos 103.° a 109.° do Tratado CEE. Entretanto, foram largamente substituídas pelos artigos 99.° e 104.° CE, no domínio da política económica (financeira), e pelos artigos 105.° a 111.° CE, em relação à política monetária uniformizada no seio da UEM.

63.      A supressão das barreiras económicas internas criou ainda o risco de surgimento de desequilíbrios a nível económico intermédio, sobretudo sectorial. Estes desequilíbrios ficam sobretudo a dever-se a disparidades na legislação (ou nos sistemas legislativos). Assim, um sistema fiscal que no país A tributa essencialmente o factor do trabalho e no país B o factor do capital pode influenciar fortemente as relações de concorrência no mercado comum. Tais distorções gerais – que, em princípio, podem resultar de qualquer intervenção pública que afecte o comportamento das empresas no mercado – são susceptíveis, a longo prazo, de perturbar gravemente a afectação de recursos no mercado comum («funcionamento do mercado comum»). Esta foi uma das razões pelas quais o artigo 100.° do Tratado CEE original previa a possibilidade de harmonizar a legislação. A inegável convergência legislativa no domínio socioeconómico, económico e fiscal no interior do mercado comum não foi apenas o resultado da utilização do instrumento da harmonização. Para isso também contribuíram iniciativas autónomas dos legisladores nacionais. Esta convergência «espontânea» verificou-se principalmente na área da tributação directa, onde a Comunidade só muito dificilmente conseguia activar a sua competência.

64.      Por último, entre as economias nacionais e no seu interior podem surgir ainda desequilíbrios de nível subsectorial: as denominadas distorções específicas. Resultam de intervenções públicas específicas, destinadas a onerar especialmente determinadas produções ou empresas com tributações especiais ou a conceder-lhes vantagens especiais. As tributações especiais são frequentemente intervenções públicas conhecidas, na gestão moderna, por taxas específicas reguladoras de comportamentos. São cada vez mais frequentes no domínio da política do ambiente e da política do ordenamento. De certa forma, contrapõem-se às vantagens específicas ou aos auxílios que procuram condicionar o comportamento dos operadores no mercado através de incentivos, ao invés de desincentivos.

65.      Relativamente às distorções específicas, o Tratado CEE original previa dois instrumentos. Às distorções específicas resultantes de medidas públicas de «tributação» (devendo o termo «tributação» ser aqui entendido em sentido mais amplo do que encargo financeiro, pois os requisitos acessórios também podem ser fortes «tributações») era aplicável o mecanismo dos artigos 101.° e 102.° do Tratado CEE (actuais artigos 96.° e 97.° CE). Para as distorções resultantes de «medidas de auxílio», ou seja, as distorções imputáveis ao instrumento político especial «auxílio de Estado», os artigos 92.°, 93.° e 94.° do Tratado CEE (actuais artigos 87.°, 88.° e 89.° CE) previam uma competência especial da Comunidade. Esta competência especial caracteriza-se por normas mais rigorosas, por um mecanismo de vigilância mais apertado e por amplas competências de execução e de controlo por parte da Comissão.

66.      As principais diferenças entre os mecanismos dos artigos 96.° e 97.° CE, por um lado, e dos artigos 87.° a 89.° CE, por outro, decorrem de uma aplicação prática diametralmente oposta. Os primeiros artigos pouco ou nada são aplicados, enquanto as últimas disposições constituem a base de uma abrangente prática política e de uma jurisprudência do Tribunal de Justiça ainda em pleno crescimento e apuramento.

67.      Este último aspecto, porém, não obsta a que, do ponto de vista da história e da sistemática dos Tratados, os artigos 87.° a 89.° CE, devido à natureza especial do instrumento de intervenção – medida de auxílio –, devam ser qualificados de leges speciales face às leges generales dos artigos 96.° e 97.° CE. Daí que seja necessária grande cautela ao qualificar de auxílio uma diferença de encargos resultante da aplicação de uma tributação específica a determinada actividade económica a nível subsectorial.

Tributação específica ou auxílio de Estado?

68.      As distorções específicas resultam, em geral, de uma excepção limitada ratione materiae ou ratione personae a um regime geral. Esta excepção tem a natureza ou de uma tributação especial ou de uma vantagem pecuniária especial que onera o Estado directa ou indirectamente.

69.      Em regra, estas medidas especiais visam condicionar o comportamento dos operadores de mercado. Por conseguinte, as distorções daí decorrentes não têm necessariamente de ser valoradas de forma negativa.

70.      A tributação selectiva dos automóveis sem catalisador cria uma distorção das condições de concorrência no respectivo mercado que procura influenciar negativamente a produção e venda desses automóveis. Semelhante distorção pode justificar-se por objectivos de política do ambiente. Inversamente, uma medida de auxílio específica, por exemplo, a favor de determinados investimentos em regiões desfavorecidas, também cria uma distorção em detrimento das regiões mais prósperas. Esta distorção específica justifica-se por objectivos de política económica regional amplamente aceites.

71.      Resulta da letra dos artigos 87.° e 96.° CE que distorções específicas no mercado comum não são necessariamente inadmissíveis. O artigo 96.° CE confere implicitamente uma margem de apreciação à Comissão quando esta decide se deve ou não actuar contra uma distorção específica: «provocando assim uma distorção que deve ser eliminada». O artigo 87.°, n.os 2 e 3, CE prevê uma série de excepções, vinculativas e discricionárias, respectivamente, à norma geral de proibição do n.° 1 do mesmo artigo.

72.      A grande diferença entre as consequências jurídicas que o Tratado CE associa às distorções resultantes das tributações específicas, por um lado, e das medidas de auxílio, por outro, reclama uma rigorosa delimitação dos dois tipos de distorções.

73.      O critério deve procurar-se sempre na «origem» específica da distorção: tributação ou medida de auxílio? A ideia de que uma distorção causada por uma tributação específica pode ser encarada como uma medida de auxílio a favor dos operadores económicos que continuaram a ser abrangidos pela regra geral é, em princípio, incorrecta quer do ponto de vista jurídico e económico quer do ponto de vista político.

74.     É incorrecta do ponto de vista jurídico na medida em que uma regulamentação geral que não constitui uma medida de auxílio, pelo simples facto de introduzir um agravamento limitado ratione materiae ou ratione personae, acabaria por se transformar numa medida de auxílio a favor dos operadores de mercado que continuassem a ser abrangidos pela regra geral. Daqui resultaria, por um lado, o alargamento do âmbito de aplicação material da proibição de auxílio muito para além das fronteiras visadas pelos autores do Tratado e, por outro, a restrição do alcance dos artigos 96.° e 97.° CE.

75.      Do ponto de vista económico, a requalificação como medida de auxílio de uma medida nacional que, pela sua natureza e pelo seu alcance, é geral acarreta consequências indesejadas. Pode conduzir a um aumento ex tunc da tributação que incide sobre os operadores de mercado abrangidos pela regra geral até ao nível que onera os operadores de mercado abrangidos pela regra específica. Semelhante alteração geral dos níveis de tributação relativamente a um grande grupo de operadores de mercado ou a categorias de sectores do mercado genericamente descritas pode ser indesejável numa perspectiva económica. Por outro lado, é quase inevitável que a aplicação de uma medida geral indevidamente qualificada de medida de auxílio crie novas distorções gerais no mercado comum. Seria pior a emenda do que o soneto.

76.      Do ponto de vista político, esta alteração pode limitar a possibilidade de os Estados-Membros aplicarem taxas selectivas enquanto instrumento político, ainda que essa aplicação se justifique plenamente e seja insusceptível de desencadear a aplicação dos artigos 96.° e 97.° CE. Voltando ao exemplo fornecido no n.° 70, se a tributação selectiva dos automóveis poluentes aí referida equivalesse à concessão de auxílio à produção e venda de automóveis menos poluentes, o que levaria a que o montante – mais baixo – do imposto sobre estes últimos automóveis tivesse de ser colocado ao nível do dos automóveis muito poluentes, o Estado-Membro em causa ver-se-ia privado de um instrumento político de que carece para prosseguir um objectivo político comummente aceite. Os efeitos deste resultado perverso são tanto mais graves quanto a qualificação da taxa geral mais baixa do exemplo como medida de auxílio retiraria ao Estado-Membro em causa competências que o Tratado lhe atribui.

77.      Conclui-se assim que uma distorção específica decorrente de uma tributação especial nunca pode ser vista como uma medida de auxílio a favor dos operadores abrangidos pela regra geral. Importa referir ainda duas consequências: se a distorção tiver de ser suprimida no interesse do mercado comum, a Comunidade tem de eliminar a origem dessa distorção (o encargo especial); para o efeito tem de utilizar as competências previstas nos artigos 96.° e 97.° CE e não pode utilizar as suas competências consagradas nos artigos 87.° e 88.° CE.

Factos do processo principal

78.      A aplicação do raciocínio exposto aos factos do processo principal, conforme reproduzidos nos n.os 24 a 32, conduz aos resultados que a seguir se descrevem.

79.      A introdução, em 1994, do IPS à taxa geral de 2,5%, posteriormente elevada a 4% e depois a 5%, deve qualificar-se de medida geral (de natureza fiscal), em princípio aplicável a todos os contratos de seguros.

80.      O fornecimento de outros bens e serviços está sujeito ao IVA à taxa de 17,5% A diferença de taxa entre o IPS e o IVA tornou atractiva a prestação de determinados serviços com a aparência de prestações no âmbito de um contrato de seguro.

81.      No mercado dos aparelhos domésticos, isto levou a que os fornecedores conferissem aos contratos de manutenção acessórios de contratos de aluguer e de venda a aparência de contratos de seguros, que eram celebrados com companhias de seguros suas aliadas.

82.      As consequências foram de dois tipos. Em primeiro lugar, grande parte dos contratos de manutenção normais desapareceram, o que teve um impacto nos cofres do Estado britânico devido à diminuição das receitas do IVA. Em segundo lugar, neste sector do mercado de seguros, os denominados contratos de seguro directo – em que o consumidor segurado celebra directamente um contrato com o segurador – foram em grande parte suplantados pelos contratos conexos, em que o fornecedor dos aparelhos domésticos actua como intermediário.

83.      Este impacto nas relações de concorrência ficou directamente a dever-se à disparidade entre o nível da taxa do IPS e o nível do IVA. Os fornecedores podiam aproveitar esta disparidade nos serviços que prestavam acessoriamente à sua prestação principal, dando a estes a aparência de contratos de seguros.

84.      A taxa agravada do IPS deve qualificar-se de medida específica de natureza fiscal estritamente limitada ratione materiae a certos tipos de contratos de seguros. Quanto ao seu alcance e efeito, deve qualificar-se de taxa reguladora, que comporta um desincentivo específico à celebração desses contratos. O impacto que produziu nas relações de mercado foi o desejado: os contratos de manutenção clássicos, sujeitos a IVA, regressaram e, no – entretanto reduzido – mercado dos contratos de seguros acessórios, a proporção dos denominados seguros directos voltou a aumentar.

85.      Conforme resulta da resposta proposta para as duas primeiras questões, esta intervenção não violava a Sexta Directiva. Enquanto o Conselho não adoptar, sob proposta da Comissão, medidas em sentido contrário nos termos dos artigos 96.° e 97.° CE, deve a mesma ser considerada legal. O silêncio da Comissão indica que a eventual distorção do comércio entre os Estados-Membros resultante desta medida específica de natureza fiscal não foi considerada grave ao ponto de justificar uma actuação.

86.      Resulta do exposto que a medida específica de natureza fiscal em causa de modo algum configura uma medida de auxílio, que poderia levar o Governo britânico a ter de revogar ex tunc uma medida específica de natureza fiscal legalmente adoptada e cujo alcance se justifica.

87.      Resulta ainda do exposto que a eventual solução, nos termos dos artigos 96.° e 97.° CE, deve passar pela identificação da causa da distorção específica, ou seja, a própria medida específica de natureza fiscal, e não a taxa geral normal do IPS, de que a taxa agravada constitui uma excepção específica.

88.      No contexto dos factos subjacentes ao processo principal, conclui-se, assim, que a aplicabilidade dos artigos 87.° e 88.° CE tem de ser excluída. Por conseguinte, a terceira, quarta e quinta questões do VAT and Duties Tribunal repousam numa interpretação manifestamente incorrecta do direito comunitário.

89.      Consequentemente, a terceira, quarta e quinta questões não têm de ser respondidas.

VI – Conclusão

90.      Com base no exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões do VAT and Duties Tribunal do seguinte modo:

–Quanto à segunda questão: o artigo 33.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, não obsta à introdução de um imposto sobre os prémios de seguro que seja calculado com base nos serviços prestados, que seja proporcional ao preço dos serviços prestados, que seja cobrado na fase final da venda ao consumidor, que seja repercutido no consumidor final da mesma forma que o imposto sobre o valor acrescentado, recaindo sobre o consumidor o encargo dele resultante, que seja aplicável à totalidade do território do Reino Unido, mas que não seja aplicável de uma forma geral a todas as transacções de bens e serviços.

–Quanto à primeira questão: para a introdução de uma taxa agravada desse imposto sobre os prémios de seguro compatível com o artigo 33.° da Sexta Directiva não se exige qualquer autorização prévia do Conselho na acepção do artigo 27.° da referida directiva.

–Quanto à terceira, quarta e quinta questões: estas questões não carecem de resposta, pois uma medida específica de natureza fiscal que introduza uma taxa mais elevada limitada ratione materiae não pode ser considerada uma medida de auxílio na acepção dos artigos 87.° e 88.° CE.


1 – Língua original: neerlandês.


2 – JO L 145, p. 1, EE 09 F1 p. 54.


3 – Do despacho de reenvio resulta que, em 1968, 67,5% dos aparelhos de televisão do Reino Unido eram alugados, enquanto em 1998 já eram apenas 8,1%. Em relação aos videogravadores, o aluguer representava 69,6% em 1979 e em 1998 apenas 4,4%


4 – V. acórdão de 27 de Novembro de 1985, Rousseau Wilmot (295/84, Recueil, p. 3759).


5 – V. acórdão de 31 de Março de 1992, Dansk Denkavit e Poulsen Trading (C-200/90, Colect, p. I-2217).


6 – V. e.o. acórdão de 17 de Setembro de 1997, Solisnor-Estaleiros Navais (C-130/96, Colect., p. I-5053). V. também acórdão de 9 de Março de 2000, EWK e Wein &Co. (C-437/97, Colect., p. I-1157).


7 – Acórdão de 10 de Abril de 1984, Comissão/Bélgica (324/82, Recueil, p. 1861).


8 – Acórdão de 4 de Fevereiro de 1988, Comissão/Bélgica (391/85, Colect., p. 579).


9 – Acórdão de 20 de Setembro de 2001, Banks (C-390/98, Colect., p. I-6117).


10 – Acórdão de 22 de Novembro de 2001, Ferring (C-53/00, Colect., p. I-9067).