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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 11 de Março de 2004(1)


Processo C-321/02



Finanzamt Rendsburg
contra
Detlev Harbs


[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof (Alemanha)]

«Sexta Directiva IVA – Artigo 25.º – Regime comum forfetário dos produtores agrícolas – Arrendamento por um produtor agrícola de uma parte dos elementos da sua exploração – Aplicação do regime geral à receita do arrendamento»






1.        No presente processo, o Bundesfinanzhof (Alemanha) solicita ao Tribunal de Justiça que precise qual o âmbito de aplicação do artigo 25.° da Sexta Directiva 77/388/CEE  (2) , que diz respeito ao regime comum forfetário dos produtores agrícolas. Este pedido tem origem num litígio entre uma administração fiscal nacional e um produtor agrícola que arrendou os elementos da sua exploração destinados à produção de leite. Trata-se de determinar se a renda pode ser sujeita ao regime comum forfetário previsto no artigo 25.° da Sexta Directiva ou ao regime geral em matéria de imposto sobre o valor acrescentado  (3) , ou ainda se deve ser totalmente isenta.

I – Quadro jurídico

2.        Na Sexta Directiva, o legislador comunitário, ao estabelecer a matéria colectável uniforme de IVA para toda a Comunidade Europeia, quis harmonizar o âmbito de aplicação deste imposto em todos os Estados-Membros. Além disso, definiu esse âmbito de aplicação de modo amplo. Assim, este imposto é aplicável a todas as entregas de bens e às prestações de serviços efectuadas a título oneroso por um operador económico que exerça, de modo independente, uma actividade económica  (4) . Entre essas actividades económicas figuram igualmente as actividades agrícolas  (5) .

3.        O IVA é concebido como um imposto sobre o consumo final. Deve, portanto, ser neutro para os operadores económicos. Todavia, é aplicado por cada operador que intervém no circuito da produção e da distribuição ou da prestação de serviços. Na prática, isto significa que cada operador aplica o IVA ao preço dos seus produtos e dos seus serviços e paga à fazenda pública, periodicamente, o imposto que cobrou, mas após ter deduzido o IVA que ele próprio pagou relativamente às compras dos produtos e serviços necessários à sua actividade económica. A aplicação deste sistema exige, portanto, que os sujeitos passivos possuam uma contabilidade suficientemente precisa e pormenorizada, de modo a permitir a aplicação do imposto sobre o valor acrescentado e a sua fiscalização pela Administração Fiscal  (6) .

4.        Essa contabilidade é muito difícil para certos operadores económicos, como as pequenas empresas e a maioria dos agricultores. O legislador comunitário, na Sexta Directiva, quis, portanto, harmonizar os regimes especiais que foram instituídos pelos Estados-Membros em benefício destas categorias profissionais  (7) . Assim, o artigo 24.° da Sexta Directiva dispõe que os Estados-Membros podem submeter as pequenas empresas a um regime simplificado, baseado num sistema de franquia.

5.        No artigo 25.° da Sexta Directiva, o legislador comunitário previu igualmente que sempre que a aplicação aos produtores agrícolas do regime normal do IVA ou, se for caso disso, do regime simplificado do artigo 24.° da mesma directiva encontrar dificuldades, os Estados-Membros podem aplicar um regime comum forfetário destinado a compensar a carga do IVA pago a montante relativamente às aquisições de bens e de serviços. Estes produtores agrícolas são denominados «agricultores sujeitos ao regime forfetário»  (8) .

6.        O artigo 25.° da Sexta Directiva prevê que este regime comum forfetário está sujeito às regras seguintes. Os Estados-Membros fixam, segundo as modalidades de cálculo determinadas pela referida directiva, percentagens forfetárias de compensação. Estas percentagens não devem ter por efeito conceder ao conjunto dos agricultores sujeitos ao regime forfetário reembolsos superiores às cargas de IVA suportadas a montante  (9) .

7.        Nos termos do artigo 25.°, n.° 5, da Sexta Directiva, estas percentagens forfetárias serão aplicadas ao preço, livre de impostos, dos produtos agrícolas e das prestações de serviços que os agricultores sujeitos ao regime forfetário tenham vendido a sujeitos passivos que não sejam agricultores sujeitos ao regime forfetário. Esta compensação exclui qualquer outra forma de dedução.

8.        A compensação forfetária é paga aos agricultores sujeitos ao regime forfetário quer pelo adquirente ou pelo destinatário, quer pelas autoridades públicas. No primeiro caso, o agricultor sujeito ao regime forfetário factura ao adquirente ou ao destinatário a percentagem forfetária de compensação fixada pelo Estado e retém por sua conta o IVA que assim facturou. No segundo caso, as autoridades públicas pagam ao referido agricultor o montante da compensação forfetária que resulta da aplicação dessa percentagem às facturações que efectuou.

9.        Em conformidade com o artigo 25.°, n.° 8, da Sexta Directiva, quando o agricultor sujeito ao regime forfetário vende os seus produtos ou presta os seus serviços a adquirentes ou a destinatários não sujeitos a IVA ou a outros agricultores sujeitos ao regime forfetário, a compensação da carga do IVA pago a montante considera-se efectuada pelo adquirente ou pelo destinatário.

10.      Na acepção do artigo 25.°, n.° 2, quinto travessão, da Sexta Directiva, consideram-se «prestações de serviços agrícolas» as «prestações de serviços enumeradas no anexo B, efectuadas por um produtor agrícola que utilize os seus próprios recursos de mão-de-obra e/ou o equipamento normal da respectiva exploração agrícola».

11.      O anexo B da Sexta Directiva que contém a lista das prestações de serviços agrícolas, dispõe que «são consideradas prestações de serviços agrícolas as prestações de serviços que contribuem normalmente para a realização da produção agrícola, designadamente [...] a locação, para fins agrícolas, dos meios normalmente utilizados nas explorações agrícolas».

12.      No direito alemão, o mecanismo da compensação forfetária previsto no artigo 25.° da Sexta Directiva é transposto pelo artigo 24.° da Umsatzsteuergesetz de 1991  (10) . Nos termos desse artigo, o imposto aplicado pelos produtores agrícolas aos seus produtos e aos seus serviços, fixado em 8%, compensa o IVA que pagaram a montante, de modo que não têm de pagar o excedente.

II – Matéria de facto

13.      Detlev Harbs é um produtor agrícola que arrendou ao seu filho, a partir de 15 de Novembro de 1992 e até 30 de Junho de 2005, o conjunto dos elementos da sua exploração destinados à produção de leite, ou seja, 31,2 ha de terrenos, um estábulo de vacas, 65 vacas leiteiras e uma quota de leite superior a 300 000 kg. A renda foi fixada nos montantes anuais de 9 360 DEM e de 10 200 DEM, pelos terrenos e pelo estábulo, bem como nos montantes anuais de 6 000 DEM e 32 136,70 DEM, pelas vacas leiteiras e pela quota de leite. Posteriormente a este contrato, Detlev Harbs continuou a sua actividade com a parte restante da sua exploração agrícola, constituída por 61,4 ha de terrenos, edifícios, uma manada de touros com cerca de 60 animais para engorda, bem como a criação de 120 bovinos.

14.      Detlev Harbs considerou que o arrendamento estava sujeito na totalidade ao regime comum forfetário previsto no artigo 24.° da UStG. O Finanzamt Rendsburg (Alemanha) entendeu, pelo contrário, que embora o arrendamento dos terrenos e do estábulo estivesse isento de impostos em virtude do direito alemão, em contrapartida, os montantes recebidos a título das vacas leiteiras e da quota de leite deviam ser sujeitos ao regime normal do IVA. O Finanzamt Rendsburg emitiu um aviso de tributação dirigido a Detlev Harbs no montante de 361 DEM correspondente ao IVA devido relativo ao ano de 1992.

15.      O Finanzgericht (Alemanha) julgou procedente o recurso de Detlev Harbs considerando que a renda que este obtém do arrendamento em causa se enquadra no artigo 24.° da UStG. O Finanzamt Rendsburg interpôs recurso de revista no Bundesfinanzhof.

III – A questão prejudicial

16.      O Bundesfinanzhof considera, como premissa da argumentação contida no seu despacho de reenvio, que Detlev Harbs, apesar do arrendamento em causa, manteve a qualidade de produtor agrícola na acepção do artigo 25.° da Sexta Directiva, porque prosseguiu a exploração da parte não arrendada, que é relativamente importante.

17.      No que respeita ao regime de IVA aplicável, o Bundesfinanzhof entende, por um lado, que a aplicação a esse produtor agrícola de dois regimes diferentes, a saber, o regime comum forfetário em relação à sua exploração própria e o regime normal em relação ao arrendamento em causa, pode ser contrária ao objectivo de simplificação que subjaz ao artigo 25.° da Sexta Directiva.

18.      O Bundesfinanzhof expõe, por outro lado, que tem dúvidas quanto à questão de saber se esse arrendamento pode ser considerado uma «prestação de serviços agrícolas» na acepção do artigo 25.° da Sexta Directiva. Além disso, no caso de o referido arrendamento não ser abrangido pelo regime comum forfetário, o Bundesfinanzhof pergunta se, à luz do espírito e da finalidade do artigo 25.° da Sexta Directiva, os rendimentos correspondentes a esse arrendamento não devem ser inteiramente isentos, de modo que, tal como o produto da cessão de uma máquina agrícola usada, não seriam objecto de tributação nem no quadro do regime comum forfetário nem no quadro do regime geral.

19.      Por isso, o Bundesfinanzhof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O proprietário de uma exploração agrícola,

–que deixa de trabalhar uma parte da sua exploração (a totalidade da produção de gado leiteiro) e dá em locação os bens económicos necessários a essa actividade a outro agricultor, e

–que, mesmo após a locação, continua activo como ‘agricultor’ de uma forma não insignificante,

pode incluir a renda – como o resto do seu volume de negócios – no regime forfetário para produtores agrícolas (artigo 25.° da Directiva 77/388/CEE), ou a parte do volume de negócios referente à locação é sujeita a tributação segundo o regime geral?»

IV – Apreciação

20.      Com a sua questão prejudicial, o Bundesfinanzhof pergunta, essencialmente, se o artigo 25.° da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que um produtor agrícola que arrendou uma parte dos elementos da sua exploração agrícola e que prossegue a sua actividade de agricultor com o remanescente da mesma, actividade pela qual está sujeito ao regime comum forfetário previsto nesse artigo, pode incluir a renda nesse regime comum forfetário, ou se a renda deve ser sujeita ao regime geral em matéria de IVA.

21.      Resulta da fundamentação do despacho de reenvio que, com esta questão, o Bundesfinanzhof entendeu submeter ao Tribunal de Justiça duas questões distintas. A primeira pretende saber se a renda em causa pode ou não ser abrangida pelo regime comum forfetário dos produtores agrícolas. A segunda visa determinar se, em caso de resposta negativa à primeira questão, a renda deve ser sujeita ao regime geral do IVA ou se pode ser completamente isenta. Analisaremos sucessivamente cada uma destas questões.

A – Quanto à aplicação do regime comum forfetário

22.      Tal como o Governo alemão e a Comissão das Comunidades Europeias, e ao contrário do demandado no processo principal, entendemos que a renda em causa não pode entrar no âmbito de aplicação do regime comum forfetário previsto no artigo 25.° da Sexta Directiva. Esta conclusão decorre logicamente, em nosso entender, de uma análise dos critérios habitualmente tidos em conta pelo Tribunal de Justiça na interpretação de uma disposição de direito comunitário, ou seja, do texto das disposições relevantes, da economia do regime comum forfetário e, por último, dos objectivos que presidiram à instituição desse regime  (11) .

1. O texto das disposições relevantes

23.      Vimos que o artigo 25.° da Sexta Directiva prevê que o regime comum forfetário dos produtores agrícolas apenas se aplica aos agricultores que exercem uma actividade de produção agrícola e de prestação de serviços agrícolas.

24.      A fim de assegurar a aplicação uniforme desse regime em toda a Comunidade, o legislador comunitário teve o cuidado de definir o conceito de «prestações de serviços agrícolas». Nos termos do artigo 25.°, n.° 2, quinto travessão, da Sexta Directiva, trata-se das «prestações de serviços enumeradas no anexo B, efectuadas por um produtor agrícola que utilize os seus próprios recursos de mão-de-obra e/ou o equipamento normal da respectiva exploração agrícola».

25.      Portanto, resulta claramente desta definição que as prestações visadas são as que o agricultor sujeito ao regime forfetário tem capacidade de prestar com a mão-de-obra e os equipamentos que utilize habitualmente na sua própria exploração agrícola. Daí resulta que a referência do anexo B, quinto travessão, da Sexta Directiva, à «locação, para fins agrícolas, dos meios normalmente utilizados nas explorações agrícolas» deve ser entendida, à luz da definição contida no artigo 25.°, n.° 2, quinto travessão, da referida directiva, no sentido de que significa a locação por um agricultor sujeito ao regime forfetário dos meios que utilize habitualmente para a sua própria exploração agrícola.

26.      Isso implica que o elemento locado pode, apesar do contrato de locação, ser ainda considerado fazendo parte dos elementos normalmente utilizados pelo agricultor sujeito ao regime forfetário para a sua exploração agrícola. O preenchimento desta condição depende, portanto, em nossa opinião, de dois critérios, que há que ter em conta conjuntamente, o primeiro referente à duração do contrato de locação e, o segundo, ao seu objecto. Assim, antes de mais, é necessário que a duração do contrato de locação seja suficientemente breve para que o(s) locador(es) não seja(m) o(s) utilizador(es) exclusivo(s) do elemento em causa. Esta condição já não está preenchida se, por exemplo, durante todo o período da ceifa, um agricultor sujeito ao regime forfetário alugasse a sua ceifeira-debulhadora e não a utilizasse por sua própria conta. Em seguida, é necessário que os elementos locados não excedam as necessidades do agricultor sujeito ao regime forfetário para a sua própria exploração. Esta condição não está preenchida se este alugasse várias ceifeiras-debulhadoras e as utilizasse alternativamente por sua própria conta, quando, para a sua própria exploração, apenas uma é necessária.

27.      Por conseguinte, em nossa opinião, o conceito de «prestações de serviços agrícolas», na acepção do artigo 25.° da Sexta Directiva, não abrange um contrato como o arrendamento celebrado no caso em apreço, ou seja, um acordo pelo qual um agricultor sujeito ao regime forfetário proporciona a um outro produtor o gozo por vários anos de uma parte dos elementos da sua própria exploração para que este último colha ele próprio os respectivos frutos. Com efeito, ao arrendar a um outro produtor, por um período de doze anos e meio, todos os elementos da sua exploração agrícola destinados à produção de leite, ou seja, os edifícios, os prados, a sua manada de vacas leiteiras e a sua quota de leite, o demandado no processo principal transferiu para esse outro produtor, durante toda a duração do arrendamento, o uso exclusivo de cada um desses elementos, bem como a possibilidade de colher os respectivos frutos. Tal acordo não pode, portanto, ser equiparado a uma prestação efectuada por um agricultor sujeito ao regime forfetário que utilize o equipamento normal da sua exploração, porque, por hipótese, ele já não poderá utilizar, durante doze anos e meio, nenhum desses elementos para o exercício da sua actividade agrícola. Por outras palavras, todos esses elementos, a partir da entrada em vigor do referido contrato, deixaram de fazer parte dos elementos normalmente utilizados para a sua exploração agrícola.

28.      Esta análise do texto do artigo 25.° e do anexo B da Sexta Directiva é confirmada pelo facto de, num certo número de versões linguísticas  (12) , a referida directiva fazer referência expressa aos conceitos de «arrendamento» e de «locação» no quadro das disposições relativas aos casos de isenção de IVA, no artigo 13.°, B, alínea b), e C, alínea a)  (13) . Como o advogado-geral F. G. Jacobs expôs no n.° 76 das suas conclusões no processo «Goed Wonen»  (14) , nas versões dinamarquesa, alemã, francesa, italiana, neerlandesa e sueca, estes dois termos designam em direito interno acordos de conteúdo diferente, no sentido de que a locação tem por objecto conceder ao locatário o direito de utilizar a propriedade de outrem, enquanto o arrendamento visa, além disso, conceder ao destinatário o direito de usufruir dos frutos produzidos pelo imóvel. É certo que, tal como o Tribunal de Justiça afirmou, os conceitos de «affermage» («arrendamento») e de «locação» visados no artigo 13.° da Sexta Directiva não devem ser interpretados em função do seu significado em direito nacional. Devem constituir conceitos autónomos de direito comunitário, a fim de garantir o carácter uniforme da matéria colectável do IVA  (15) . Todavia, a circunstância de, nessas mesmas versões linguísticas, a lista das prestações de serviços agrícolas que podem ser efectuadas por um agricultor sujeito ao regime forfetário apenas mencionar a «locação, para fins agrícolas, dos meios normalmente utilizados nas explorações agrícolas», excluindo qualquer referência ao arrendamento, permite, no entanto, pensar que o legislador comunitário não quis incluir nas prestações abrangidas pelo regime comum forfetário os acordos pelos quais um agricultor sujeito ao regime forfetário transfere para um terceiro, como no caso vertente, uma parte da sua actividade ou dos seus meios de produção.

29.      A análise do sistema do regime comum forfetário dos produtores agrícolas conduz à mesma conclusão.

2. O sistema do regime comum forfetário dos produtores agrícolas

30.      Resulta do artigo 25.°, n.°  1, da Sexta Directiva, que é reconhecida aos Estados-Membros a faculdade de aplicar um regime comum forfetário aos produtores agrícolas para os quais a sujeição ao regime normal do IVA ou, se for caso disso, ao regime simplificado, se depara com dificuldades. Por conseguinte, os agricultores são abrangidos, em princípio, pelo regime normal do IVA ou pelo regime simplificado, constituindo o regime comum forfetário uma derrogação, que compete aos Estados-Membros decidir aplicar ou não.

31.      O carácter derrogatório do regime comum forfetário é ainda confirmado pelas disposições do artigo 25.°, n.os 9 e 10, da Sexta Directiva, que prevêem, respectivamente, que os Estados-Membros podem excluir desse regime certas categorias de produtores agrícolas, e que os próprios agricultores sujeitos ao regime forfetário podem optar pelo regime normal ou pelo regime simplificado nas condições determinadas por cada Estado-Membro.

32.      Enquanto derrogação ao princípio da sujeição dos agricultores aos regimes normal ou simplificado, o âmbito de aplicação do regime comum forfetário deve ser objecto de interpretação estrita  (16) . Tal interpretação impõe-se a fim de respeitar o princípio de neutralidade do IVA que é um dos seus princípios orientadores. Este princípio implica, com efeito, que as pessoas se dediquem às mesmas operações e que as operações semelhantes sejam tratadas, respectivamente, do mesmo modo  (17) . Tal como a Sexta Directiva reafirmou no seu quarto considerando, a neutralidade do IVA quanto à origem dos bens e das prestações de serviços é uma condição para a realização de um mercado comum fundado numa concorrência sã. Daí resulta que a definição das prestações de serviços agrícolas às quais se aplica o regime comum forfetário dos produtores agrícolas e que escapam, assim, ao regime geral do IVA deve, portanto, ser objecto de interpretação estrita. Por conseguinte, o regime comum forfetário não deve ser aplicado a prestações que o legislador não quis expressamente sujeitar-lhe porque isso pode implicar uma violação do princípio referido.

33.      Em concreto, vimos que o regime comum forfetário funciona a partir de «percentagens forfetárias de compensação» que devem ser determinadas por cada Estado-Membro em conformidade com o método de cálculo previsto para esse efeito no artigo 25.°, n.°  3, da Sexta Directiva. Este método de cálculo visa evitar que essas percentagens, que devem ser notificadas à Comissão antes da sua aplicação, tenham o efeito de conceder ao conjunto dos agricultores sujeitos ao regime forfetário reembolsos superiores às cargas de IVA suportadas a montante. O regime comum forfetário não deve, portanto, ter o efeito de conferir ao conjunto dos agricultores sujeitos ao regime forfetário uma compensação excessiva da carga de IVA suportada pelas aquisições de bens e serviços necessários à sua actividade agrícola. Por outras palavras, o regime comum forfetário não deve beneficiar nem prejudicar o conjunto dos agricultores sujeitos ao regime forfetário porque isso seria contrário aos objectivos da Sexta Directiva que visam garantir uma cobrança equitativa do IVA e evitar as distorções de concorrência entre os diferentes Estados-Membros que aplicam o referido regime. Ora, pensamos que estas exigências e, portanto, o sistema comum ficariam comprometidos se os agricultores sujeitos ao regime forfetário pudessem arrendar uma parte da sua exploração e incluir a renda nesse regime, pelo qual continuam abrangidos no quadro da exploração da parte não arrendada.

34.      Com efeito, sabemos que, no regime comum forfetário, o agricultor sujeito ao regime forfetário recebe a compensação do IVA que incidir, a montante, sobre as aquisições de bens e de serviços que efectuou relativamente ao exercício da sua actividade agrícola aplicando aos preços livres de impostos dos seus produtos e serviços a percentagem fixada pelas autoridades nacionais competentes. Ao transferir para um terceiro uma parte da sua actividade, o agricultor liberta-se igualmente das despesas necessárias ao exercício da mesma. Assim, ao arrendar, como no caso vertente, todos os elementos destinados à produção de leite por um período de doze anos e meio, o demandado no processo principal libertou-se igualmente de todas as despesas necessárias a essa produção. Por exemplo, já não tem de assumir o fornecimento de forragem para a alimentação e a manutenção da manada de vacas leiteiras. A carga do IVA que deve suportar a montante é, portanto, reduzida nessa medida. Em contrapartida, se a renda em causa entrar no âmbito de aplicação do regime comum forfetário, o montante da compensação forfetária devido ao produtor agrícola em questão será aumentado em função da aplicação a esse produto da percentagem fixada pelas autoridades nacionais competentes. Isso significa que o agricultor sujeito ao regime forfetário recebe uma compensação quando deixa de suportar a montante a carga do IVA pelo exercício da actividade correspondente à parte da exploração que arrendou.

35.      Esta análise é igualmente confirmada quando, como no caso vertente, o arrendamento é celebrado com um produtor que se encontra também sujeito ao regime comum forfetário. Tal como o Tribunal de Justiça afirmou no acórdão de 28 de Junho de 1988, Comissão/Itália  (18) , e como o próprio demandado refere nas suas observações escritas  (19) , quando um agricultor sujeito ao regime forfetário vende os seus produtos ou presta os seus serviços a uma pessoa que não seja sujeito passivo ou a outro agricultor sujeito ao regime forfetário, a compensação da carga do IVA que ele suportou a montante é obtida pelo pagamento de um «preço global» dos seus produtos e serviços que se considera incluir a referida carga. Mesmo nessa hipótese, o agricultor sujeito ao regime forfetário pode, portanto, obter a compensação da carga do IVA que suportou a montante aumentando o preço dos seus produtos e dos seus serviços se as condições do mercado o permitirem.

36.     É por isso que entendemos que, se o artigo 25.° da Sexta Directiva devesse ser interpretado no sentido de que os agricultores sujeitos ao regime forfetário podem arrendar uma parte da sua exploração e incluir a renda no regime comum forfetário, haveria um risco de sobrecompensação da carga do IVA suportada a montante.

37.      Além disso, o regime comum forfetário não tem por objectivo, em nossa opinião, abranger as situações em que um produtor agrícola arrenda uma parte da sua exploração.

3. Os objectivos

38.     É certo que, como salienta o Bundesfinanzhof, o artigo 25.° da Sexta Directiva responde a um imperativo de simplificação. Todavia, há que recordar por que é que esse objectivo de simplificação conduziu o legislador comunitário a instituir a faculdade de os Estados-Membros aplicarem um regime comum forfetário.

39.      Como indica expressamente a redacção do artigo 25.°, n.° 1, da Sexta Directiva, esse regime foi previsto em benefício dos produtores agrícolas para os quais a sujeição ao regime normal do IVA ou, sendo caso disso, ao regime simplificado, se depara com dificuldades. Tal como resulta da fundamentação da proposta da Sexta Directiva, apresentada pela Comissão ao Conselho em 29 de Junho de 1973  (20) , esse regime, concebido como um regime de excepção, devia essencialmente aplicar-se a pequenos agricultores incapazes de suportar as obrigações ligadas aos regimes normal ou simplificado  (21) . Foi concebido como um regime transitório, destinado a libertar os pequenos agricultores das obrigações de contabilidade, de facturação, de declaração e de pagamento que incumbem aos outros sujeitos passivos e que eram considerados, no momento da entrada em vigor da Sexta Directiva, não terem capacidade de assumir  (22) .

40.      Por isso, o âmbito de aplicação do regime comum forfetário, no que respeita às prestações de serviços, foi definido em sentido estrito, de modo a excluir todas as prestações efectuadas regularmente, ou por meio de um equipamento que podia ser considerado excessivo em relação às necessidades, às dimensões e às características da exploração agrícola em questão. A este respeito, a Comissão tinha mesmo proposto que a Sexta Directiva precisasse expressamente que, para esse tipo de operações, o agricultor sujeito ao regime forfetário, uma vez que entra em concorrência com os comerciantes, industriais ou outros prestadores de serviços, deve ser sujeito ao regime normal do IVA ou ao regime simplificado, segundo as modalidades de aplicação a determinar por cada Estado-Membro  (23) . Nessa lógica, a Comissão apenas incluiu na lista das prestações de serviços agrícolas, contida no anexo B, quinto travessão, da sua proposta de directiva, a «locação de máquinas agrícolas».

41.      Daí resulta que o objectivo de simplificação, que subjaz ao artigo 25.° da Sexta Directiva, não deve conduzir, em nossa opinião, ao alargamento do conceito de «prestações de serviços agrícolas» visado nesse artigo a um conceito pelo qual um agricultor sujeito ao regime forfetário transfere para outro produtor agrícola uma parte da sua exploração.

42.      Além disso, não pode sustentar-se com seriedade que um agricultor que, como no caso vertente, arrenda 31,2 ha de terrenos, um estábulo de vacas, 65 vacas leiteiras e uma quota de leite de mais de 300 000 kg, e que continua a explorar por sua conta o resto de uma propriedade que tem 61,4 ha de terrenos, edifícios, cerca de 60 touros de engorda e uma criação de 120 bovinos, é incapaz de aplicar paralelamente o regime geral do IVA relativamente à renda e o regime comum forfetário em relação à sua própria exploração, tendo em conta as formalidades contabilísticas e administrativas que implica actualmente, num Estado-Membro, a exploração de uma propriedade agrícola.

43.      Entendemos, por conseguinte, que o artigo 25.° da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que um produtor agrícola que arrendou uma parte dos elementos da sua exploração agrícola e que continua a sua actividade de agricultor com o remanescente da mesma, actividade pela qual está sujeito ao regime comum forfetário previsto nesse artigo, não pode considerar que a renda é abrangida por esse regime comum forfetário.

B – Quanto à aplicação do regime geral

44.      A resposta à segunda questão do Bundesfinanzhof deduz-se já em parte dos elementos que atrás expusemos. Vimos que, em conformidade com o artigo 2.° da Sexta Directiva, o IVA se aplica a todas as prestações de serviços efectuadas por um sujeito passivo agindo nessa qualidade. Nos termos do artigo 4.° da Sexta Directiva, considera-se sujeito passivo qualquer pessoa que exerça uma actividade económica de forma independente e, segundo o referido artigo 4.°, n.° 2, é designadamente considerada uma actividade económica uma operação que implique a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência.

45.      Um acordo pelo qual um agricultor sujeito ao regime forfetário dá a um terceiro, em contrapartida de uma remuneração, o uso exclusivo de certos elementos da sua exploração, sob a forma de um contrato de locação ou de um contrato de arrendamento que visa conferir-lhe, além disso, o direito de colher os respectivos frutos, constitui a priori uma actividade económica na acepção dessa definição. No caso vertente, o arrendamento, por um agricultor sujeito ao regime forfetário, durante um período de doze anos e meio, dos elementos da sua exploração destinados à produção de leite, é efectivamente uma operação efectuada a título independente e que implica a exploração de bens corpóreos e incorpóreos com o fim de auferir receitas com carácter de permanência. Para retomar o exemplo dado pelo Bundesfinanzhof no seu despacho de reenvio, essa prestação de serviços não pode ser equiparada a uma operação puramente ocasional ou pontual como a cessão de material agrícola usado.

46.      Além disso, resulta de jurisprudência constante que não se pode derrogar o princípio geral segundo o qual o IVA apenas deve ser cobrado por cada prestação de serviços efectuada a título oneroso por um sujeito passivo nos casos expressamente visados pela Sexta Directiva e que as disposições que prevêem essas derrogações devem ser objecto de interpretação estrita  (24) . Embora, nos termos do artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Directiva, o arrendamento e a locação de bens imóveis estejam, em princípio, isentos de IVA, nenhuma derrogação está prevista no que respeita à colocação à disposição a título oneroso de bens móveis, corpóreos ou incorpóreos, tais como uma manada de vacas leiteiras e uma quota de leite. A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça decidiu que uma disposição nacional que tornava extensiva à locação de certos bens móveis a isenção do IVA que o artigo 13.°, B, alínea b), da Sexta Directiva reserva à locação dos bens imóveis era contrária às disposições da referida directiva  (25) .

47.      Portanto, embora as prestações de serviços agrícolas efectuadas a título oneroso por um agricultor sujeito ao regime forfetário não sejam abrangidas pela definição contida no artigo 25.° da Sexta Directiva, entram no âmbito de aplicação do regime geral. A circunstância de o locador estar sujeito, pela parte da sua exploração que continua a explorar por sua conta, ao regime comum forfetário, não pode constituir um motivo de isenção da renda. Por conseguinte, o produto da locação da manada de vacas leiteiras e da quota de leite deve ser sujeito ao regime geral em matéria de IVA, ou seja, ao regime normal ou ao regime simplificado.

48.      Propomos, portanto, ao Tribunal de Justiça que decida que a receita do arrendamento, efectuado por um agricultor sujeito ao regime forfetário, de uma parte dos elementos da sua exploração agrícola deve ser sujeita ao regime geral em matéria de IVA.

V – Conclusão

49.     À luz das considerações precedentes, propomos ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão apresentada pelo Bundesfinanzhof:

«O artigo 25.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que um produtor agrícola, que arrendou uma parte dos elementos da sua exploração agrícola e que continua a sua actividade de agricultor com o remanescente da mesma, actividade pela qual é sujeito ao regime comum forfetário previsto nesse artigo, não pode incluir a renda nesse regime comum forfetário. A renda deve ser sujeita ao regime geral em matéria de imposto sobre o valor acrescentado.»


1 – Língua do processo: francês.


2 – Directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54, a seguir «Sexta Directiva»).


3 – A seguir «IVA».


4 – Artigos 2.° e 4.°


5 – Artigo 4.°, n.° 2.


6 – Artigo 22.° da Sexta Directiva.


7 – Décimo quinto considerando.


8 – Artigo 25.°, n.° 2, terceiro travessão.


9 – Artigo 25.°, n.° 3.


10 – Lei relativa ao imposto sobre o volume de negócios, a seguir «UStG».


11 – V., para uma aplicação deste método de interpretação em matéria de IVA, acórdão de 16 de Janeiro de 2003, Maierhofer (C-315/00, Colect., p. I-563, n.° 27).


12 – Trata-se das versões dinamarquesa, alemã, espanhola, francesa, italiana, neerlandesa, sueca e inglesa. As versões grega, portuguesa e finlandesa utilizam um único termo.


13 – O artigo 13.° dispõe que, sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão «a locação de bens imóveis» [B, alínea b)] e que os Estados-Membros podem conceder ao seus sujeitos passivos o direito de optar pela tributação «da locação de bens imóveis» [C, alínea a)].


14 – Acórdão de 4 de Outubro de 2001 (C-326/99, Colect., p. I-6831).


15 – .Ibidem (n.° 47).


16 – V., designadamente, acórdãos de 11 de Agosto de 1995, Bulthuis-Griffioen (C-453/93, Colect., p. I-2341, n.° 19), e de 18 de Janeiro de 2001, Stockholm Lindöpark (C-150/99, Colect., p. I-493, n.° 25).


17 – V., neste sentido, acórdão de 7 de Setembro de 1999, Gregg (C-216/97, Colect., p. I-4947, n.° 20).


18 – 3/86, Colect., p. 3369, n.° 21.


19 – P. 3.


20 – Proposta de Sexta Directiva do Conselho em matéria de harmonização das legislações dos Estados-Membros relativas aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 11/73).


21 – V., igualmente, primeiro relatório da Comissão ao Conselho sobre o funcionamento do sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado apresentado em conformidade com o artigo 34.° da Sexta Directiva (COM/83/426 final).


22 – Nos anos sessenta, a agricultura da Comunidade caracterizava-se por um grande número de explorações agrícolas, na sua maioria de pequenas dimensões. Em 1 de Janeiro de 1967, havia cerca de 6,2 milhões de explorações de 1 ha ou mais; 85% das quais tinham uma área inferior a 20 ha; apenas 170 600 explorações tinham uma área superior a 50 ha. Além disso, a maior parte dessas explorações destinava-se à policultura e uma parte importante da sua produção era consumida na quinta, servindo para a alimentação humana e dos animais (Ries, A., «L’application de la TVA à l’agriculture de la CEE», Revue du marché commun, 1968, p. 560).


23 – Proposta de directiva, artigo 27.°, n.° 12, alínea b).


24 – V., designadamente, acórdãos «Goed Wonen» (já referido, n.° 46), e de 20 de Novembro de 2003, Taksatorringen (C-8/01, Colect., p. I-0000, n.° 36).


25 – Acórdão de 3 de Julho de 1997, Comissão/França (C-60/96, Colect., p. I-3827, n.° 16).