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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER
apresentadas em 23 de Novembro de 2004(1)


Processo C-412/03



Hotel Scandic Gåsabäck AB
contra
Riksskatteverket


(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Regeringsrätten)

«Sexta Directiva sobre o IVA – Facto tributário – Operações equiparadas às entregas de bens e às prestações de serviços a título oneroso – Fornecimento de refeições ao seu pessoal, mediante um preço inferior ao de custo, por uma empresa do sector da hotelaria e da restauração – Interpretação dos artigos 2.°, 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea b)»






I – Introdução

1.        O Regeringsrätten (supremo tribunal administrativo) da Suécia tem pendente um recurso sobre o tratamento a dar, em termos de imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA»), à alimentação que uma empresa de hotelaria fornece ao seu pessoal, a troco de um preço inferior ao valor da operação.

2.        Para tomar uma decisão precisa de saber se a Sexta Directiva  (2) , em especial os seus artigos 2.°, 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea b), se opõem a uma regulamentação nacional que, como acontece com as transacções gratuitas, considera autoconsumo as situações em que um sujeito passivo transfere bens ou efectua prestações por um valor inferior ao da venda da mercadoria ou ao do custo do serviço.

II – Quadro jurídico

A – Direito comunitário: a Sexta Directiva

3.        O artigo 2.°, n.° 1, descreve o seu âmbito de aplicação, determinando que «[e]stão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado as entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade». Os dois tipos de negócios jurídicos são definidos mais adiante, no n.° 1 dos artigos 5.° e 6.°, respectivamente.

4.        A matéria colectável é calculada atendendo a tudo o que constitui a contrapartida recebida por quem fornece o bem ou presta o serviço do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço [artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea a)].

5.        Por equiparação, fica também sujeita a tributação a afectação, por um empresário, de bens da própria empresa a seu uso privado ou dos seus trabalhadores, ou a cessão gratuita a um terceiro e, em geral, a sua afectação a fins estranhos ao seu negócio, sempre que, relativamente a esses bens ou aos elementos que os compõem, tenha havido dedução total ou parcial do IVA (artigo 5.°, n.° 6).

6.        Nestas hipóteses a matéria colectável é constituída pelo preço de compra no momento em que ocorre, e, na sua falta, pelo preço de custo [artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea b)].

7.        Nos termos do artigo 6.°, n.° 2, alínea b), são equiparadas a prestações a título oneroso as efectuadas gratuitamente pelo sujeito passivo para fins estranhos à própria empresa, ou, em especial, para seu uso privado ou do seu pessoal, situações tributadas pela totalidade das despesas efectuadas para facilitar o serviço [artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea c)].

B – Direito sueco: a Lagen om medvärdesskatt

8.        A Lagen om mervärdesskatt (Lei 1994:200), lei que regula o IVA na Suécia, considera autoconsumo a disposição de bens a título gratuito por um valor inferior ao preço de compra ou, se não se achar esse valor, pelo seu preço de custo no momento da afectação [capítulo 2, § 2, n.° 2, conjugado com o capítulo 7, § 3, n.° 2, alínea a)].

9.        Há autoconsumo de serviços se forem estes prestados pelo sujeito passivo, por outrem ou, de qualquer modo, a si próprio ou ao seu pessoal, para fins estranhos à empresa, a título gratuito ou a título oneroso por um valor inferior ao seu custo no momento da actuação [capítulo 2, § 5, primeiro parágrafo, primeiro período, conjugado com o capítulo 7, § 3, n.° 2, alínea b)].

10.      Nos dois casos é imprescindível que a redução não obedeça a razões de índole comercial; nos termos do capítulo 7, § 2, primeiro parágrafo, o valor da operação, calculado num dos modos indicados, constitui a matéria colectável.

III – Factos, processo principal e questões prejudiciais

11.      O Hotel Scandic Gåsabäck AB (a seguir «Scandic») explora um hotel e um restaurante, fornecendo aos seus empregados (entre 23 e 25 pessoas) alimentação durante a jornada laboral por um preço inferior ao seu custo  (3) . Os trabalhadores recebem os alimentos e transportam-nos para um refeitório. Uma vez terminada a refeição, recolhem a louça e restantes utensílios, colocando-os nuns cestos preparados para esse efeito.

12.      Para se informar sobre o regime fiscal das prestações descritas, a Scandic submeteu à Skatterättsnämnden (organismo que decide nos pedidos de informação vinculativa em matéria fiscal) duas perguntas. A primeira, para saber se tais prestações eram consideradas entrega de alimentos, tributada a 12%, ou serviço de restauração, tributado a 25%. A segunda questão dizia respeito à matéria colectável, destinando-se a precisar se deveria ser determinada atendendo à quantia paga pelo trabalhador ou de acordo com as regras previstas na legislação sueca sobre o autoconsumo.

13.      O referido organismo consultivo, por decisão de 10 de Junho de 2002, respondeu que se tratava de um serviço de restauração, cuja matéria colectável se deveria calcular de acordo com o capítulo 2, § 5, primeiro parágrafo, primeiro período, conjugado com o capítulo 7, § 3, n.° 2, alínea b), da Lagen om mervärdesskatt.

14.      Discordando dessa apreciação, a Scandic recorreu para o Regeringsrätten, por entender que os referidos alimentos devem considerar-se uma entrega de bens, devendo a matéria colectável ser calculada em função da contraprestação dos trabalhadores.

15.      O órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à questão de saber se o conceito de autoconsumo, contido nos artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea b), da Sexta Directiva, abrange só as operações gratuitas ou inclui também, como a lei sueca, as actuações em que o destinatário tem a cargo um pagamento simbólico ou estreitamente ligado ao preço de custo. Para as esclarecer, submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)No caso de [...] o fornecimento efectuado pela sociedade [ser] uma entrega de bens, devem os artigos 2.° e 5.°, n.° 6, da Sexta Directiva IVA ser interpretados no sentido de que obstam a que a legislação de um Estado-Membro prescreva que se considere [autoconsumo] o facto de o sujeito passivo transmitir um bem a outrem mediante retribuição inferior ao valor de compra dos bens ou de bens semelhantes ou, se não se achar esse valor, pelo preço de custo?

2)No caso de [...] o fornecimento efectuado pela sociedade [...] ser considerado uma prestação de serviço de restauração, devem os artigos 2.° e 6.°, n.° 2, alínea b), da Sexta Directiva IVA ser interpretados no sentido de que obstam a que a legislação de um Estado-Membro prescreva que se considere [autoconsumo] o facto de o sujeito passivo efectuar, permitir que seja efectuado ou por qualquer outro modo prestar um serviço a si próprio ou ao seu pessoal, para uso privado ou para outro fim estranho à própria empresa, se o serviço for prestado mediante retribuição inferior ao custo de execução do serviço?»

IV – Processo no Tribunal de Justiça

16.      A Comissão Europeia e os Governos sueco, dinamarquês e grego apresentaram observações escritas no prazo fixado no artigo 20.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça.

17.      Em 21 de Outubro de 2004, realizou-se uma audiência a que compareceram para formular alegações, além da representante da referida instituição, os representantes dos Governos sueco, helénico e finlandês.

V – Análise das questões prejudiciais

A – Consideração prévia: a qualificação jurídica da operação

18.      Parece que ao Regeringsrätten não interessa a opinião do Tribunal de Justiça sobre a natureza do negócio controvertido no processo principal, já que submeteu a mesma pergunta para duas hipóteses diferentes, conforme se entenda ser o fornecimento de alimentação aos empregados da Scandic uma entrega de bens ou uma prestação de serviços. Na divisão de tarefas que o processo prejudicial comporta, a qualificação jurídica dos factos incumbe ao juiz nacional, que, se tiver de aplicar disposições do direito europeu, deve seguir as regras hermenêuticas indicadas pelo Tribunal de Justiça.

19.      Como a Comissão indica nas suas observações escritas, no âmbito da Sexta Directiva, os conceitos «entrega de bens» e «prestação de serviços» requerem uma interpretação uniforme e, por conseguinte, uma decisão prejudicial do Tribunal comunitário. Importa, pois, apesar de o órgão jurisdicional sueco o não ter pedido, recordar as linhas orientadoras da jurisprudência quanto a este ponto.

20.      Nessa perspectiva o acórdão Faaborg-Gelting Linien  (4) declarou que, para se qualificar determinada operação como entrega de bens ou prestação de serviços, devem tomar-se em consideração todas as circunstâncias em que se desenvolve a operação em questão para apurar os seus elementos característicos (n.° 12)  (5) . Tendo em conta esta regra, considerou que a exploração de um restaurante a bordo dos ferry-boats que fazem o trajecto regular entre os portos de Faaborg (Dinamarca) e Gelting (Alemanha) constitui uma prestação de serviços (n.° 15), visto predominarem os componentes próprios desta modalidade contratual, representando a entrega de alimentos uma fracção mínima da totalidade da operação (n. os  13 e 14)  (6) .

21.      Não há, pois, que dissecar o facto tributário nas suas diferentes partes para as sujeitar separadamente a IVA. O Tribunal de Justiça, recorrendo ao princípio da «unidade da prestação»  (7) , centra-se no conjunto, que adjectiva de uma ou outra forma em função da componente predominante. Ao seguir esse critério, o Regeringsrätten deve examinar globalmente a actividade desenvolvida pela Scandic em benefício dos seus trabalhadores, tendo em conta o elemento preponderante, para a qualificar de entrega de bens ou de prestação de serviços.

B – Autoconsumo e IVA

22.      O cerne da questão radica em saber se a Sexta Directiva admite que uma regulamentação nacional considere autoconsumo a situação debatida no processo principal, uma vez que os empregados da Scandic pagam à empresa uma quantia pelas refeições, embora inferior ao preço de custo.

23.      A letra e o espírito da Sexta Directiva e, logo, a vontade do legislador comunitário orientam-se numa direcção contrária a essa possibilidade.

1. Porque é tributado o autoconsumo?

24.      A equiparação do autoconsumo às entregas de bens e às prestações de serviços onerosas obedece ao princípio da neutralidade, elemento básico no sistema comum do IVA  (8) , tendente a que a cobrança do imposto não influencie os processos produtivos  (9) , tratando de igual maneira todas as actividades comerciais, sem alterar o seu preço  (10) . O mecanismo é simples: o IVA tributa os actos de consumo, como manifestação indirecta da capacidade económica das pessoas, através da oneração das operações dos empresários ou dos profissionais, que, pela técnica da repercussão, transferem para o consumidor final este encargo, conseguindo, deste modo, um imposto «neutro» para os sujeitos passivos, uma vez que só é suportado pelo último elo da cadeia, por quem recebe o produto ou beneficia da prestação  (11) .

25.      Um dos corolários do referido princípio conduz à proibição de tratamento diferente de situações idênticas. Para o que agora interessa, os destinatários finais e todos os que, sem o serem, se encontram numa situação materialmente semelhante devem sujeitar-se ao mesmo regime tributário no sistema do IVA, pelo que, quando os empresários ou profissionais se comportam como o adquirente definitivo ou o utente último, devem como tal ser considerados, a isso se equiparando os seus actos jurídicos, a fim de «impedir que o consumo privado de um sujeito passivo seja subtraído» ao imposto  (12) .

26.      Neste sentido, o acórdão De Jong, que referi na nota 12, indicou que o artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Directiva garante a igualdade tributária entre o sujeito passivo que afecta um bem da sua empresa ao seu uso privado e o consumidor normal que o adquire (n.° 15)  (13) . Os acórdãos Enkler  (14) e Fillibeck  (15) atribuíram um propósito paralelo ao artigo 6.°, n.° 2, alínea a), equiparando o uso do bem para tais fins às prestações onerosas de serviços.

27.      Quer-se evitar, em suma, que o sujeito passivo, uma vez deduzido o IVA na compra de um bem afecto à sua empresa, eluda o pagamento do imposto quando o «afecta a fins privados» [artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea a)], beneficiando assim, indevidamente, de vantagens relativamente ao consumidor normal que o recebeu ou o usou pagando o correspondente tributo  (16) .

28.      O princípio da neutralidade e a igualdade de regime que implica conduzem à mesma solução no caso das prestações gratuitas do empresário para as suas necessidades particulares ou para as do seu pessoal, contempladas no artigo 6.°, n.° 2, alínea b). Se se pretende que, perante situações comparáveis, os operadores económicos suportem um encargo equivalente, o empresário que beneficia na sua esfera privada dos serviços próprios do seu negócio encontra-se, no que ao IVA se refere, na mesma situação que os destinatários particulares que têm de pagar: ambos são o último elo da cadeia.

29.      Em resumo, um sujeito passivo pode afectar a seu uso privado (artigo 5.°, n.° 6) ou destinar [artigo 6.°, n.° 2, alínea a)] um bem da sua empresa a propósitos alheios à sua actividade. Se no momento da sua aquisição deduziu o IVA, ao comportar-se depois como um consumidor final e ao não pagar o imposto, acaba por ser indevidamente favorecido relativamente aos compradores ou utentes comuns, que são obrigados a pagá-lo  (17) . Quando, de forma gratuita e com finalidades semelhantes, presta um serviço próprio da sua profissão [artigo 6.°, n.° 2, alínea b)], sem qualquer tributação, incorre num consumo isento, privilegiado e que viola o princípio da neutralidade.

30.      Para facilitar a compreensão da interpretação proposta parece aconselhável apresentar alguns exemplos  (18) .

31.      Um empresário que se dedica à compra e venda de automóveis destina um deles ao seu uso privado ou oferece-o a um amigo. Esta transmissão fica sujeita a IVA (1 000 euros), pois, de outra forma, eludir-se-ia a tributação do consumo final, razão pela qual se criou o imposto. Mas se o referido empresário, no momento da aquisição do veículo, não tiver deduzido o IVA pago, tributar-se-á o autoconsumo e o automóvel suportará um encargo fiscal duplo (2 000 euros), violando-se o princípio da neutralidade; se, pelo contrário, o tiver deduzido, o referido princípio exigirá a liquidação do imposto, para evitar que um facto tributável deixe de o ser. Por esta razão os artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva condicionam a tributação do autoconsumo à dedução prévia do imposto já pago.

32.      Por outro lado, um arquitecto prepara um projecto técnico para construir uma vivenda unifamiliar. Neste caso, a «cadeia produtiva» começa e termina com a prestação do serviço, sem fases prévias que tenham podido dar origem à cobrança do IVA, pelo que não há que sujeitar a tributação desta operação à dedução de imposto anterior que não foi pago. No entanto, a finalidade do preceito [artigo 6.°, n.° 2, alínea b)] continua a ser a mesma: «Evitar que um sujeito passivo receba prestações de serviço comerciais da sua empresa isentas de impostos, relativamente às quais um sujeito privado teria que pagar o imposto sobre o valor acrescentado»  (19) .

2. Matéria colectável no autoconsumo

33.      A matéria colectável é calculada, regra geral, tendo em conta a contrapartida que recebe quem realiza a entrega ou a prestação [artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva]. Em contrapartida, no autoconsumo, tem-se em conta quer o preço de compra dos bens, de bens similares ou de custo, quer o montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços [artigo 11.°, parte A, n.° 1, alíneas b) e c)].

34.      Não há, pois, meio-termo. No autoconsumo a referência é outra, pois não há qualquer pagamento a cargo de quem recebe, excluindo-se, como há que concluir do teor literal dos referidos preceitos, todo o negócio que não seja gratuito.

35.      Esta ideia respeita a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito de contraprestação, cujas linhas gerais exigem a existência, entre quem aliena (ou quem presta o serviço) e quem adquire (ou o destinatário), de uma relação jurídica em que existem obrigações recíprocas, de modo a que a retribuição recebida pelo primeiro consista no valor real do benefício obtido pelo segundo  (20) , constituindo um parâmetro subjectivo que tem em conta o valor efectivamente cobrado em cada caso concreto, e não um valor calculado segundo critérios objectivos  (21) . Portanto, a circunstância de uma actividade económica ser levada a cabo a um preço superior ou inferior ao de custo revela-se irrelevante para a qualificar de onerosa.

36.      Além disso, como indica a Comissão, não há nada na Sexta Directiva nem na jurisprudência que requeira a fixação da matéria colectável tendo em conta a valorização no mercado da operação tributada, independentemente da quantia paga. Neste sentido, segundo o próprio artigo 11.°, tal elemento para a determinação da dívida tributária não inclui as reduções de preço, os descontos nem os abatimentos (parte A, n.° 3), reduzindo-se esta em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço, depois de efectuada a operação (parte C, n.° 1). A matéria colectável é sempre decidida em função da prestação recebida  (22) , regra que também se baseia no princípio da neutralidade e na configuração deste imposto como um imposto indirecto que tributa a capacidade económica manifestada no consumo, exigindo que o imposto seja determinado de acordo com o valor que realmente é «acrescentado» na fase final do processo económico  (23) .

37.      Na sistemática dos artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea b), da Sexta Directiva só se incluem as transacções gratuitas; as restantes, ainda que acordadas abaixo do custo, consideram-se onerosas e enquadram-se no artigo 2.°, n.° 1. Por conseguinte, tais normas não admitem uma legislação nacional que qualifique de autoconsumo as «vendas com prejuízo».

38.      O Governo sueco refuta esse entendimento, acrescentando que não há qualquer diferença entre a operação de preço simbólico e a gratuita. A sua argumentação peca por retórica e é irrelevante para o caso aqui debatido, já que o despacho de reenvio explica que os trabalhadores da Scandic pagam pelas refeições uma quantia superior às despesas assumidas pela empresa, embora «possa vir a ser inferior», mas nunca utiliza o conceito de «pagamento simbólico».

39.      O medo da fraude que a sua posição demonstra, assim como a dos Governos grego e finlandês, não a justifica; esquece que o legislador comunitário teve presente essa eventualidade, deixando em aberto, no artigo 27.° da Sexta Directiva, a possibilidade de os Estados-Membros, em determinadas circunstâncias, não a aplicarem; e não tem em conta que o interesse legítimo em evitar a fraude à lei não deve erigir-se em razão absoluta, transformando a excepção (determinação da matéria colectável segundo o preço de mercado nas operações gratuitas) em regra geral e ampliando o teor de uma norma fiscal, uma vez que a analogia, como adiante se explica, se conjuga mal com os princípios directores deste sector do ordenamento jurídico.

40.      De qualquer forma, a tese do Governo sueco, mesmo quando pretende salvaguardar a neutralidade do imposto, não parece admissível. De acordo com as suas observações, se uma empresa subvenciona as refeições do seu pessoal através de outra empresa de restauração, entrega-lhe o valor correspondente à subvenção, completando-o com a quantia que o pessoal paga. Essa contribuição estará directamente visada ao preço e, nos termos do artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva, integrar-se-á na matéria colectável. Em sua opinião, o empregador que também colabora na alimentação dos trabalhadores através dos seus próprios serviços deveria receber igual tratamento, não sendo isso possível se só a quantia paga pelos empregados for tributada.

41.      O Governo sueco atribui ao conceito de «subvenção» uma amplitude que não lhe corresponde, uma vez que a Sexta Directiva o utiliza no sentido técnico-jurídico de medida de fomento, para que o poder público possa impulsionar alguns sectores, atribuindo aos particulares vantagens de carácter económico. Por este motivo, o Tribunal de Justiça exige que a subvenção seja concedida por uma administração, condição que tem implícita a existência de três agentes na relação: a autoridade que a concede, o empresário que dela beneficia e o consumidor final  (24) . Em resumo, o artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva «compreende unicamente as subvenções que constituem a contrapartida total ou parcial de uma operação de entrega de bens ou de prestação de serviços e que são pagas por um terceiro ao vendedor ou ao prestador de serviços»  (25) .

42.      Na realidade, o Governo sueco inobserva a dimensão material do princípio da legalidade no direito fiscal, que, como no direito penal relativamente à liberdade, aspira a que o poder legislativo, depositário da soberania, seja o único com capacidade para limitar o património dos cidadãos  (26) . Como complemento indispensável desse princípio figura a proibição de interpretação analógica das normas fiscais contra o sujeito passivo, para que quem as aplica em geral, e os juízes em especial, não vão além da vontade expressa na lei, cobrando impostos por factos não previstos no seu texto. Ao propor a ampliação da noção de subvenção do artigo 11.°, parte A, n.° 1, alínea a), da Sexta Directiva, o Governo sueco baseia-se nessa técnica hermenêutica, mas essa forma de alargar o alcance objectivo das normas tributárias está expressamente proibida nos sistemas jurídicos de alguns Estados-Membros  (27) .

VI – Conclusão

43.      Tendo em conta o exposto, sugiro ao Tribunal de Justiça que, em resposta às questões prejudiciais do Regeringsrätten, declare:

«Os artigos 2.°, 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, alínea b), da Sexta Directiva, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que considera autoconsumo as operações não gratuitas, em que exista um preço, mesmo quando seja inferior ao de aquisição dos bens entregues, de bens semelhantes ou de custo do serviço prestado.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, Sexta Directiva relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Directiva»).


3 – Na realidade, segundo o despacho de reenvio, os trabalhadores pagam uma quantia um pouco superior ao custo, mas passarão a pagar um montante inferior. De facto, a questão tributária que deu lugar ao processo principal baseia-se nesta segunda hipótese.


4 – Acórdão de 2 de Maio de 1996, Faaborg-Gelting Linien (C-231/94, Colect., p. I-2395).


5 – O mesmo critério, de atender aos pormenores que envolvem a operação, foi utilizado pelo acórdão de 17 de Novembro de 1993, Comissão/França (C-68/92, Colect., p. I-5881), para definir determinados negócios como «prestações de serviços de publicidade» (n. os  16 a 19).


6 – O Tribunal de Justiça indicou que o fornecimento de pratos preparados e de bebidas prontos para consumo imediato era o resultado de uma série de serviços que iam desde a preparação dos pratos até à sua entrega material num suporte, acompanhado pela colocação à disposição do cliente da infra-estrutura necessária (sala de restauração, vestiário, mobiliário, louça). Negou tal carácter, contudo, às operações de compra de comida «pronta a levar», sem prestações destinadas a tornar mais agradável o consumo imediato, num quadro adequado (n. os  13 e 14 do acórdão Faaborg-Gelting Linien).


7 – Esta expressão («Grundsatz der Einheitlichkeit der Leistung») é uma paráfrase de Haunold, P.: «Der Steuergegenstand» , in EuGH-Rechtsprechung und Umsatzsteuerpraxis , Viena 2001, p. 111.


8 – V. acórdãos de 27 de Junho de 1989, Kühne (50/88, Colect., p. 1925, n.° 12), e de 25 de Maio de 1993, Mohsche (C-193/91, Colect., p. I-2615, n.° 9), qualificam o referido princípio de «inerente» ao IVA.


9 – Lohse, C.: «Der Neutralitätsgrundsatz im Mehrwertsteuerrecht» , in EuGH-Rechtsprechung und Umsatzsteuerpraxis , Viena 2001, p. 49.


10 – Esta consequência, a que aludem Mochón Lopez, L., e Jabalera Rodríguez, A., na introdução da obra colectiva El impuesto sobre el valor añadido. Comentarios a sus normas reguladoras, editorial Comares, Granada 2001, p. 14, acaba por ser a razão de ser do princípio da neutralidade.


11 – Utilizei termos semelhantes, respectivamente, nos n. os  33 e 38 das conclusões apresentadas em 13 de Janeiro e 25 de Março de 2004 nos processos que deram origem aos acórdãos de 27 de Maio de 2004, Lipjes (C-68/03, Colect., p. I-0000), e de 16 de Setembro de 2004, Cimber Air (C-382/02, Colect., p. I-0000).


12 – Conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs apresentadas em 27 de Fevereiro de 1992, no processo que deu origem ao acórdão de 6 de Maio de 1992, De Jong (C-20/91, Colect., p. I-2847, n.° 10).


13 – Acórdãos de 27 de Abril de 1999, Kuwait Petroleum (C-47/97, Colect., p. I-2323), e de 8 de Março de 2001, Bakcsi (C-415/98, Colect., p. I-1831), insistiram na mesma ideia (n. os  21 e 42, respectivamente).


14 – Acórdão de 26 de Setembro de 1996, Enkler (C-230/94, Colect., p. I-4517, n.° 33).


15 – Acórdão de 16 de Outubro de 1997, Fillibeck (C-258/95, Colect., p. I-5577, n.° 25).


16 – V. acórdãos, já referidos, De Jong, n.° 15; Enkler, n.° 33; e Bakcsi, n.° 42.


17 – Esta ideia está latente, a sensu contrario, no acórdão Kühne, já referido, em que o Tribunal de Justiça decidiu que o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Directiva devia ser interpretado no sentido de excluir a tributação da amortização de um bem da empresa com fundamento na sua utilização privada, sempre que, relativamente a esse bem, não tenha havido dedução do imposto sobre o valor acrescentado, por ter sido comprado a uma pessoa que não tem a qualidade de sujeito passivo, n.° 11. Em termos semelhantes, acórdão Bakcsi, já referido, n.° 44.


18 – Inspiro-me, embora as altere, nas hipóteses colocadas por López Molino, A. M.: «Entregas de bienes y prestaciones de servicios sujetos al IVA», in El impuesto sobre el valor añadido. Comentarios a sus normas reguladoras, editorial Comares, Granada 2001, pp. 49 e segs.


19 – São palavras do advogado-geral F. G. Jacobs nas conclusões que apresentou no processo Mohsche, n.° 22.


20 – Confirmado pelos acórdãos de 3 de Março de 1994, Tolsma (C-16/93, Colect., p. I-743, n.° 14), e de 14 de Julho de 1998, First National Bank of Chicago (C-172/96, Colect., p. I-4387, n.° 26).


21 – Acórdãos Fillibeck, já referido, n.° 13; de 24 de Outubro de 1996, Elida Gibbs (C-317/94, Colect., p. I-5339, n.° 27); e de 29 de Março de 2001, Comissão/França (C-404/99, Colect., p. I-2667, n.° 38).


22 – Afirmação permanente na jurisprudência comunitária. Podem consultar-se, a este respeito, o acórdão de 29 de Maio de 2001, Freemans (C-86/99, Colect., p. I-4167, n.° 27), e os que nele são referidos.


23 – Outro exemplo (desta vez utilizo um caso que Mochón López, L., e Jabalera Rodríguez, A., expõem na op. cit , p. 13): um empresário B vende pelo seu valor de mercado (150 euros) um determinado bem, comprado a outro empresário A por 100 euros. O IVA na aquisição foi 16 euros (taxa de 16%), cobrando-se na venda 24 euros, quantia que se vai repercutir no consumidor. O imposto a cobrar é o encargo devido menos o pago (24 euros - 16 euros = 8 euros), suportando o consumidor final o imposto total (24 euros). Observa-se que, relativamente a B, o imposto opera de forma neutra. Efectivamente, num primeiro momento o imposto representou uma despesa (16 euros), mas, posteriormente, transformou-se numa receita (24 euros), perdendo, depois, a vantagem através do pagamento à administração fiscal da diferença a seu favor (8 euros). Desta forma, o imposto não influencia o preço dos bens nem dos serviços sobre os quais incide, uma vez que não implica custos nem benefícios para a actividade empresarial ou profissional. Mas se por qualquer razão, o empresário B vendesse por 90 euros o bem comprado por 100 euros, tendo pago imposto no valor de 16 euros, o IVA não poderia ser calculado segundo o valor de mercado (150 euros), sem se ter em conta o preço real da transacção (90 euros), uma vez que seria de 24 euros, em vez de 14,4 euros, ficando assim prejudicado e desaparecendo a neutralidade que deve presidir ao sistema deste imposto indirecto.


24 – Acórdão de 22 de Novembro de 2001, Office des Produits Wallons (C-184/00, Colect., p. I-9115, n.° 10). Encontra-se a mesma ideia nos acórdãos de 15 de Julho de 2004, Comissão/Itália (C-381/01, Colect., p. I-0000, n.° 32), e Comissão/Alemanha (C-144/02, Colect., p. I-0000, n.° 31).


25 – Dispositivo do acórdão Office des Produits Wallons, já referido.


26 – O princípio da legalidade foi criado nos âmbitos «penal» e «fiscal», no final da Idade Média, como limite às prerrogativas do soberano. Em Espanha, as comunidades, as vilas e as cidades puderam sujeitar a votação de tributos a favor da Coroa e a punição de certas condutas à aprovação por assembleias («cortes») representativas. O amadurecimento de um «pacto» entre a monarquia e a «sociedade política», que consolidou a organização política «estamental» e bloqueou um maior desenvolvimento da autoridade régia, é uma constante, embora com importantes diferenças e matizes, na formação dos reinos da Espanha medieval. Em Aragão e Navarra, as Cortes conseguiram poderes de controlo legislativo e financeiro entre finais do século XIII e meados do século XIV (v. Ladero Quesada, M. A., «España: reinos y señoríos medievales», in España. Reflexiones sobre el ser de España, Real Academia de la Historia, 2. a edição, Madrid, 1998, pp. 95 a 129). Em Castela, esta instituição, que alcançou o seu apogeu nos séculos XIV e XV, apresentou uma menor relevância e, mesmo quando desempenhou um papel de primeira linha na vida política, as suas competências foram mais reduzidas (Valdeón, J., «Los reinos cristianos a fines de la Edad Media», in Historia de España , editorial Historia 16, Madrid, 1986, pp. 391 a 455, em especial, pp. 414 a 423).


27 – Um exemplo é o artigo 14.° da Ley General Tributaria espanhola (Lei 58/2003, Boletín Oficial del Estado de 18 de Dezembro de 2003), que não admite a analogia para alargar, para além dos seus termos estritos, a delimitação do facto tributário. Na Alemanha, o Bundesfinanzhof (Tribunal Supremo Federal em matéria fiscal) recusou várias vezes o uso desse critério interpretativo e de aplicação contra o sujeito passivo (Bundesteuerblatt II 1972, 455, 457; Bundesteuerblatt II 1976, 246, 248; Bundesteuerblatt II 1977, 283, 287; Bundesteuerblatt II 1978, 346; Bundesteuerblatt II 1979, 347; Bundesteuerblatt II 1982, 618). A doutrina belga parece unânime ao censurar a interpretação das disposições fiscais por analogia e alude a uma decisão da Cour de cassation, de 13 de Abril de 1978 (processo État belge, Ministre des Finances, c. Bodson Fr., A. e M., Pasicrisie belge 1978, 910). Neste sentido pronunciam-se, por exemplo, Tiberghien, A., e o.: Manuel de droit fiscal: 2000, editorial Larcier, 21. a edição, Bruxelas 2000, pp. 68 e 69, e Dassesse, M., e Minne, P.: Droit fiscal, principes généraux et impôts sur les revenus, editorial Bruylant, 5. a edição, Bruxelas 2001, pp. 58 e 59. A situação em França, onde a doutrina está dividida, é menos clara (v. Marchesson, P.: L’interpretation des textes fiscaux, editorial Economica, Paris 1980, pp. 197 a 234; Philip, L.: Dictionnaire encyclopédique des finances publiques, editorial Economica, Paris 1991, vol. II, pp. 971 e 972; Trotabas, L., e Cotteret, J. M., Droit Fiscal, editorial Dalloz, 8. a edição, Paris 1996, pp. 272 e 273; Donet, F.: Contribution à l’étude de la sécurité juridique en droit fiscal interne français, editorial L.G.D.J., Paris 1997, pp. 157 a 164; e Bouvier, M.: Introduction au droit fiscal général et la théorie de l’impôt, editorial L.G.D.J., 5. a edição, Paris 2003, pp. 42 a 47), contudo, algumas vezes, a Cour de cassation afirmou que a interpretação por analogia não é permitida no âmbito tributário (decisão de 25 de Outubro de 1975, Bull. III, n. os  309, 234).