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CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 1 de dezembro de 2011 ( 1 )

Processos C-578/10, C-579/10C-580/10

Staatssecretaris van Financiën

contra

L. A. C. van Putten, Staatssecretaris van Financiën

contra

P. Mook

e

Staatssecretaris van Financiën

contra

G. Frank

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Imposto sobre veículos automóveis não registados no território nacional, mas colocados à disposição de residentes — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Artigo 21.o TFUE — Direito de livre circulação e de livre residência dos cidadãos da União»

I — Introdução

1.

Juntamente com a cidadania da União, as liberdades fundamentais parecem oferecer uma ampla proteção das atividades transfronteiriças dos cidadãos da União. Contudo, os presentes casos mostram uma eventual lacuna: o empréstimo gratuito transfronteiriço de coisas, em concreto de veículos automóveis.

2.

Se for possível subsumir esta situação numa das liberdades fundamentais, incluindo a livre circulação dos cidadãos da União, o direito da União limita os possíveis encargos fiscais que oneram a utilização do veículo no Estado de acolhimento ( 2 ). No entanto, os Países Baixos partem do princípio de que não é aplicável qualquer liberdade fundamental. Tributam a utilização, no território nacional, de um veículo automóvel emprestado no estrangeiro como uma primeira matrícula e exigem cerca de metade do valor do veículo como imposto de matrícula.

II — Quadro jurídico

A — Direito da União

3.

O quadro jurídico da União é definido pelas disposições relativas à livre circulação dos cidadãos da União, contidas no artigo 21.o TFUE, e à livre circulação de capitais, contidas no artigo 63.o TFUE.

4.

No âmbito do exame da livre circulação de capitais, deve recorrer-se à Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado CEE ( 3 ). Ela contém, no Anexo I, uma nomenclatura dos movimentos de capitais que, na rubrica XI, inclui os movimentos de capitais de caráter pessoal. São aí mencionadas, designadamente, as transações seguintes:

«A.

Empréstimos

B.

Donativos e doações

[...]

D.

Sucessões e legados

[...]»

5.

O terceiro parágrafo da introdução desta nomenclatura indica, porém, que ela não é exaustiva:

«A presente nomenclatura não é limitativa da noção de movimento de capitais e daí a presença de uma Rubrica XIII-F ‘Outros movimentos de capitais: diversos’. Esta nomenclatura não poderá portanto ser interpretada como restringindo o alcance do princípio de uma completa liberalização dos movimentos de capitais, tal como enunciado no artigo 1.o da presente diretiva.»

B — Direito neerlandês

6.

O Hoge Raad apresenta o quadro jurídico neerlandês atendendo à Wet op de belasting van personenauto’s en motorrijwielen 1992 (Lei relativa ao imposto sobre veículos automóveis e motociclos de 1992, a seguir «Lei de 1992») do seguinte modo:

7.

Nos Países Baixos, entende-se por «imposto sobre veículos automóveis e motociclos» o imposto aplicável aos veículos automóveis e aos motociclos (artigo 1.o, n.o 1, da Lei de 1992). O imposto é devido no momento da inscrição dos veículos automóveis e dos motociclos no registo automóvel dos Países Baixos, bem como no momento do início da utilização, na rede viária dos Países Baixos, de um veículo automóvel ou de um motociclo, não registado ou não registado nos Países Baixos, que se encontre na posse efetiva de uma pessoa singular residente nos Países Baixos ou de uma entidade aí estabelecida.

8.

A taxa do imposto sobre um veículo automóvel — sem prejuízo das reduções e dos agravamentos previstos no artigo 9.o, n.o 1, da Lei de 1992 — é de 45,2% do preço líquido de catálogo, ou seja, do preço de catálogo depois de subtraído o imposto sobre o volume de negócios nele incluído. Por preço de catálogo entende-se o preço indicado nos Países Baixos pelo fabricante ou importador aos revendedores como preço a praticar na venda aos consumidores finais. No caso de veículos novos (ou seja, não usados) aplica-se o preço de catálogo no dia em que é atribuída a matrícula ao veículo; no caso dos veículos usados aplica-se o preço de catálogo do momento em que o veículo seja utilizado pela primeira vez, dentro ou fora dos Países Baixos. Este último preço é igualmente aplicável quando o imposto é devido pelo início da utilização, na rede viária, de um veículo que não se encontra registado nos Países Baixos.

9.

Na cobrança do imposto sobre veículos automóveis usados é tido em conta o período de utilização já decorrido (artigo 10.o da Lei de 1992). Consoante o momento em que o veículo automóvel é utilizado pela primeira vez, a taxa do imposto é reduzida numa determinada percentagem.

III — Factos e pedido de decisão prejudicial

10.

L. A. C. van Putten e P. Mook são de nacionalidade neerlandesa, G. Frank é alemã. Todos os três residiam nos Países Baixos, quando os agentes da administração fiscal constataram que conduziam na rede viária um veículo automóvel com matrícula não neerlandesa, mas sim belga ou alemã.

11.

O veículo automóvel conduzido por L. A. C. van Putten era propriedade do seu pai, residente na Bélgica. Quando foi controlada, em 28 de março de 2005, utilizava temporariamente o veículo automóvel nos Países Baixos para fins privados. Foi-lhe aplicado um imposto no montante de 5955 euros.

12.

P. Mook utilizava um veículo automóvel, que era propriedade de um membro da sua família, residente na Alemanha. Em 19 de agosto de 1999, o recorrido foi buscar o automóvel à Alemanha e utilizou-o temporariamente para viagens, para fins privados, nos Países Baixos e na Alemanha. O seu imposto ascendia a 4 097 NLG, ou seja, 1859 euros.

13.

O veículo automóvel que G. Frank utilizava era propriedade do seu companheiro, residente na Alemanha, e tinha sido por ele conduzido para a visitar nos Países Baixos. Ao ser controlada em 18 de janeiro de 2005, G. Frank utilizava o automóvel nos Países Baixos, durante um curto período de tempo, para fins privados. Foi-lhe exigido um imposto no montante de 6709 euros.

14.

Para esclarecer se esta tributação é legal, o Hoge Raad pergunta se as situações dos três casos estão sujeitas ao direito da União:

Processo C-578/10:

«Tendo em conta o artigo 18.o CE (atual artigo 21.o TFUE), o facto de um Estado-Membro tributar o início da utilização de um veículo automóvel na rede viária no seu território, no caso de esse veículo automóvel estar registado noutro Estado-Membro, ser emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro e ser utilizado por um residente no primeiro Estado-Membro para circular no território do primeiro Estado, constitui uma situação regulada pelo direito comunitário?»

Processo C-579/10:

«Tendo em conta o artigo 18.o CE (atual artigo 21.o TFUE), o facto de um Estado-Membro tributar o início da utilização de um veículo automóvel na rede viária no seu território, no caso de esse veículo automóvel estar registado noutro Estado-Membro, ser emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro e ser utilizado por uma pessoa residente no primeiro Estado-Membro para fazer viagens, para fins privados, entre esses dois Estados, constitui uma situação regulada pelo direito comunitário?»

Processo C-580/10:

«Tendo em conta o artigo 18.o CE (atual artigo 21.o TFUE), o facto de um Estado-Membro tributar o início da utilização de um veículo automóvel na rede viária no seu território, no caso de esse veículo automóvel estar registado noutro Estado-Membro, ser emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro e ser utilizado por uma pessoa residente no primeiro Estado-Membro, mas que tem a nacionalidade do outro Estado, para circular, para fins privados, no território do primeiro Estado, constitui uma situação regulada pelo direito comunitário?»

15.

Por despacho de 1 de fevereiro de 2011, o presidente do Tribunal de Justiça apensou os três processos. Apresentaram observações escritas o Reino dos Países Baixos, a República da Finlândia e a Comissão Europeia. Não foi realizada audiência.

IV — Apreciação jurídica

16.

A tributação dos veículos automóveis controvertidos não foi harmonizada e difere consideravelmente de um Estado-Membro para outro. Os Estados-Membros são, portanto, livres de exercer a sua competência fiscal neste domínio, na condição de o fazerem respeitando o direito da União ( 4 ).

17.

A este propósito, o pedido de decisão prejudicial refere-se exclusivamente à compatibilidade da tributação com a livre circulação dos cidadãos da União. Dado, porém, que outras liberdades fundamentais prevalecem relativamente a este regime ( 5 ), examinarei em primeiro lugar a livre prestação de serviços e a livre circulação de capitais.

A — Quanto à livre prestação de serviços

18.

O empréstimo transfronteiriço de um veículo automóvel pode ser um serviço na aceção do artigo 57.o TFUE. De acordo com esta disposição, consideram-se serviços as prestações realizadas normalmente mediante remuneração.

19.

Atendendo unicamente de forma abstrata a que é colocado à disposição um veículo automóvel para ser utilizado, pode considerar-se que é prestado um serviço. Em regra, isto acontece contra remuneração, por exemplo por meio do aluguer do veículo ( 6 ) ou de leasing ( 7 ).

20.

Ao invés, se for determinante a forma jurídica concreta da colocação à disposição, não se trata de uma prestação a título oneroso. Nos casos vertentes, os veículos automóveis foram postos à disposição precisamente em virtude de um empréstimo gratuito.

21.

Ao classificar as atividades para efeitos da aplicação da livre prestação de serviços, o Tribunal de Justiça atende, em caso de dúvida, às circunstâncias concretas da prestação. Quanto esta não tem natureza económica, o Tribunal de Justiça afasta a aplicação da livre prestação de serviços. Assim, não a aplica à frequência de escolas estatais financiadas com fundos públicos, mas sim à frequência de escolas que, no essencial, são financiadas com fundos privados ( 8 ).

22.

Do mesmo modo, também quando são postos à disposição veículos automóveis, importa atender às circunstâncias concretas. Por conseguinte, a livre prestação de serviços não é aplicável ao empréstimo gratuito aqui em causa ( 9 ).

B — Quanto à livre circulação de capitais

23.

À primeira vista, também não parece ser aplicável a livre circulação de capitais, consagrada no artigo 63.o TFUE. No entanto, existem transações que, pela sua natureza, se assemelham a um empréstimo gratuito e que estão abrangidas pela referida liberdade: a transmissão por herança e a doação de bens.

24.

No que toca ao artigo 63.o TFUE, é jurisprudência assente que, na falta de definição, nos Tratados, do conceito de «movimentos de capitais», a nomenclatura do anexo I da Diretiva 88/361 tem um valor indicativo; de acordo com o terceiro parágrafo da introdução do mesmo anexo, a nomenclatura que este contém não é limitativa do conceito de movimentos de capitais ( 10 ).

25.

A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que as sucessões e os donativos, que se inserem na rubrica XI do anexo I («movimentos de capitais de caráter pessoal») da Diretiva 88/361, constituem movimentos de capitais, na aceção do artigo 63.o TFUE, com exceção dos casos em que nenhum dos elementos essenciais que os integram se situem no interior de um só Estado-Membro ( 11 ).

26.

O necessário elemento transfronteiriço é evidente nos presentes processos: os veículos são emprestados por pessoas, que residem noutro Estado-Membro, a pessoas que residem nos Países Baixos e utilizam aí os veículos.

27.

Decisivo é, contudo, se este empréstimo pode ser qualificado como movimento de capitais.

28.

Relativamente à dedução fiscal de um montante que reflete o valor de donativos feitos a terceiros estabelecidos noutro Estado-Membro, o Tribunal de Justiça decidiu que, para determinar se a legislação nacional em causa está abrangida pelas disposições do Tratado relativas aos movimentos de capitais, não é relevante saber se os donativos subjacentes foram feitos em dinheiro ou em espécie ( 12 ).

29.

A colocação à disposição de um veículo automóvel para ser utilizado a título gratuito não se distingue substancialmente de um donativo em espécie. Embora seja preciso restituir a coisa, ela pode ser utilizada temporariamente a título gratuito. Esta vantagem em termos de utilização é obtida pelo beneficiário de maneira definitiva, como no caso de um donativo. Ela pode representar um valor económico não negligenciável, suscetível de ser determinado de modo exato, através da comparação com os custos de um veículo de aluguer correspondente.

30.

O acórdão relativo aos donativos em espécie ( 13 ) não se referia, é certo, a medidas que oneravam o beneficiário do donativo, mas ao seu reconhecimento fiscal a nível do doador. Para a livre circulação de capitais não é relevante, porém, se as restrições afetam quem realiza a prestação ou o beneficiário desta. Assim, a maior parte dos casos relativos a heranças diziam respeito à tributação do herdeiro ( 14 ).

31.

Por conseguinte, o empréstimo gratuito transfronteiriço de um veículo automóvel é um movimento de capitais na aceção do artigo 63.o TFUE.

32.

Contudo, nos presentes casos, não são pertinentes as definições típicas de uma restrição aos movimentos de capitais no contexto de transações a título gratuito. A tributação da utilização de veículos automóveis por residentes não pode dissuadir os não residentes de fazerem investimentos no Estado-Membro ou de manterem tais investimentos ( 15 ), nem reduz o valor de uma sucessão ( 16 ).

33.

A tributação é, porém, suscetível de dissuadir o beneficiário do empréstimo do veículo de aceitar e utilizar a vantagem. Com efeito, o imposto pode ser várias vezes superior ao valor da utilização. Este obstáculo à aceitação de uma prestação transfronteiriça a título gratuito restringe a livre circulação de capitais ( 17 ).

34.

De resto, na perspetiva do beneficiário do empréstimo, trata-se, pelo menos, de um tratamento menos favorável do empréstimo transfronteiriço face ao empréstimo a nível nacional. Como no caso do empréstimo a nível nacional o imposto de matrícula para o veículo automóvel já foi pago, o beneficiário não tem de temer que este imposto lhe seja cobrado ( 18 ). O Hoge Raad não pergunta em que medida este tratamento menos favorável pode estar justificado. De qualquer modo, as considerações que se seguem são igualmente pertinentes para efeitos da justificação ( 19 ).

35.

Por conseguinte, há que responder ao pedido de decisão prejudicial que o imposto cobrado por um Estado-Membro quando uma pessoa residente no seu território utiliza na sua rede viária, para fins privados, um veículo automóvel que está registado noutro Estado-Membro e que foi emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro, restringe a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.o TFUE.

C — Quanto à livre circulação dos cidadãos da União

36.

Para o caso de o Tribunal de Justiça não concordar com o meu entendimento quanto à aplicação da livre circulação de capitais, passo a examinar, a título subsidiário, se é aplicável a livre circulação dos cidadãos da União.

37.

O artigo 20.o TFUE declara cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. Logo, os três interessados são cidadãos da União. Como o Tribunal de Justiça tem declarado repetidamente, a cidadania da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-Membros ( 20 ).

38.

O artigo 21.o, n.o 1, TFUE determina que qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros. A aplicação desta norma suscita, nos presentes casos, dois problemas que estão imbricados. Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio coloca a questão de saber se se trata de situações puramente internas. Em segundo lugar, é duvidoso que a tributação da utilização de veículos automóveis registados no estrangeiro restrinja o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros.

1. Quanto à exclusão de situações puramente internas

39.

A cidadania da União não tem por objetivo alargar o âmbito de aplicação material do Tratado a situações internas sem qualquer conexão com o direito da União ( 21 ).

40.

Mas, contrariamente ao entendimento dos Países Baixos, penso que não é óbvio que o presente processo se refira a situações puramente internas. A tributação neerlandesa afeta unicamente veículos automóveis estrangeiros, pois assenta no facto de os veículos automóveis utilizados não estarem registados nos Países Baixos. Na prática, aplica-se assim ao empréstimo gratuito, transfronteiriço, de veículos automóveis a pessoas residentes nos Países Baixos. Em contrapartida, este imposto não é devido quando se trata de um empréstimo gratuito a nível nacional, dado que neste caso os veículos automóveis estariam registados nos Países Baixos ( 22 ).

2. Quanto à restrição do artigo 21.o, n.o 1, TFUE

41.

É duvidoso, no entanto, se é restringida a livre circulação dos cidadãos da União.

42.

O Hoge Raad ( 23 ) defende, com base no teor do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, que a tributação afeta o âmbito de proteção da referida norma: o direito de circular livremente no território dos Países Baixos é restringido pela tributação da utilização dos veículos. As pessoas afetadas só podem utilizar os veículos para circular se pagarem o imposto.

43.

Milita a favor desta tese um acórdão, no qual o Tribunal de Justiça entendeu existir logo uma restrição quando uma região belga tinha adotado disposições que tornavam menos atrativo para os cidadãos de outras regiões belgas estabelecer o seu domicílio em determinadas localidades da Bélgica ( 24 ). O alcance da livre circulação dos cidadãos da União só foi delimitado através da exclusão de situações puramente internas, isto é, de belgas que nunca tinham exercido a sua liberdade de circulação ( 25 ).

44.

Nos presentes casos, não penso porém que seja útil aprofundar esta jurisprudência — que levanta problemas ( 26 ) — dado que existem suficientes elementos de conexão com a livre circulação transfronteiriça.

45.

A liberdade de atravessar as fronteiras dos Estados-Membros está, sem dúvida, protegida pela liberdade fundamental consagrada no artigo 21.o TFUE. As facilidades oferecidas pelo TFUE em matéria de livre circulação não poderiam produzir plenamente os seus efeitos se fosse possível dissuadir um cidadão da União de as usufruir, através de obstáculos ligados ao facto de ter desfrutado dessas facilidades ( 27 ). Logo, o artigo 21.o TFUE opõe-se a medidas que, sem justificação, sejam suscetíveis de impedir ou dissuadir os cidadãos da União de se deslocarem para outros Estados-Membros, ou de tornar menos atrativo o exercício desta liberdade ( 28 ).

46.

Nos presentes casos verificam-se restrições à livre circulação transfronteiriça, dado que, pela utilização, no território nacional, de veículos automóveis emprestados a título gratuito no estrangeiro, é devido um imposto equivalente a metade do valor do veículo. Esta tributação do uso ocasional de um veículo automóvel emprestado no estrangeiro equivale a uma proibição desta utilização. Na verdade, sendo fixado em cerca de metade do valor do veículo, o imposto é várias vezes superior ao valor económico da utilização.

47.

Neste contexto, não é pertinente se, no caso concreto, os próprios cidadãos da União, em relação com o empréstimo dos veículos automóveis, atravessaram as fronteiras entre os Estados-Membros e se esta circulação transfronteiriça se tornou menos atrativa devido à tributação. Basta que o imposto controvertido restrinja as relações transfronteiriças dos cidadãos da União afetados.

48.

O empréstimo gratuito de veículos automóveis — mas também de outros bens — é expressão de relações entre os interessados, sejam elas de parentesco ou de amizade ( 29 ).

49.

Quando estas relações ultrapassam as fronteiras dos Estados-Membros, assentam em regra na circulação transfronteiriça de pessoas. Como a Comissão refere, a justo título, esta liberdade fundamental, consagrada no artigo 21.o TFUE, destina-se precisamente a proteger as atividades transfronteiriças não económicas dos cidadãos da União e, deste modo, em especial, as relações sociais transfronteiriças.

50.

Assim, um Estado-Membro que cobra um imposto sobre o empréstimo gratuito transfronteiriço de veículos automóveis, interfere com o exercício da livre circulação. Por conseguinte, esta tributação constitui uma restrição a uma liberdade fundamental garantida pelo artigo 21.o TFUE.

51.

Se o Tribunal de Justiça não constatar nenhuma restrição à livre circulação de capitais, deverá por isso responder ao pedido de decisão prejudicial que um imposto cobrado por um Estado-Membro quando uma pessoa residente no seu território utiliza na sua rede viária, para fins privados, um veículo automóvel que está registado noutro Estado-Membro e que foi emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro, restringe a livre circulação dos cidadãos da União, consagrada no artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

D — Quanto à justificação da restrição

52.

Embora a Finlândia aborde a justificação de uma eventual restrição, o Hoge Raad nada perguntou nesse sentido. O Advocaat-Generaal van Hilten também não sugeriu questões a este respeito, limitando-se a expor brevemente as suas dúvidas quanto à possibilidade de uma justificação ( 30 ).

53.

Por conseguinte, desejo apenas acrescentar o seguinte:

54.

Segundo jurisprudência assente, um Estado-Membro pode sujeitar a um imposto de matrícula um veículo disponibilizado a uma pessoa que nele resida por uma sociedade sediada noutro Estado-Membro, quando esse veículo se destine a ser essencialmente utilizado no território do primeiro Estado-Membro de forma permanente ou quando for, de facto, utilizado desta maneira ( 31 ). Se não for possível determinar uma utilização permanente ou uma afetação correspondente, a tributação deve ter, em primeiro lugar, uma «outra» justificação ( 32 ) e, em segundo lugar, só pode ser proporcional à duração da utilização no Estado-Membro em causa ( 33 ).

55.

Dado que o regime neerlandês visa provavelmente evitar a evasão fiscal, importa notar que o Tribunal de Justiça já rejeitou uma presunção geral de evasão ou de fraude fiscal baseada na circunstância de uma entidade patronal, com sede noutro Estado-Membro, colocar um veículo da empresa à disposição de um trabalhador residente no Estado-Membro em causa para fins profissionais, ou até mesmo profissionais e privados. Tal presunção não pode, portanto, justificar uma medida fiscal que restringe o exercício de uma liberdade fundamental garantida pelos Tratados ( 34 ).

56.

Por conseguinte, muitos elementos apontam para a conclusão de que também o empréstimo gratuito de um veículo automóvel de outro Estado-Membro não pode servir de base para presumir a existência de evasão fiscal.

57.

Em contrapartida, não parece ser de excluir que, dado o risco de evasão fiscal, o empréstimo gratuito de veículos automóveis de outros Estados-Membros deva ser controlado de maneira adequada, aplicando sanções eficazes ao contorno de medidas de fiscalização. Dado que o pedido de decisão prejudicial não faz, porém, referência a regimes correspondentes, não é necessário analisar mais detalhadamente os requisitos de tal sistema.

V — Conclusão

58.

Por conseguinte, sugiro que o Tribunal de Justiça responda ao pedido de decisão prejudicial nos seguintes termos:

«Um imposto cobrado por um Estado-Membro quando uma pessoa residente no seu território utiliza na sua rede viária, para fins privados, um veículo automóvel que está registado noutro Estado-Membro e que foi emprestado por uma pessoa residente nesse outro Estado-Membro, restringe a livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.o TFUE.»


( 1 )   Língua original: alemão.

( 2 )   Despacho de 27 de junho de 2006, van de Coevering (C-242/05, Colet., p. I-5843, n.os 23 a 29 e jurisprudência aí citada).

( 3 )   JO L 178, p. 5.

( 4 )   Acórdão de 21 de março de 2002, Cura Anlagen (C-451/99, Colet., p. I-3193, n.o 40).

( 5 )   Acórdãos de 16 de dezembro de 2010, Josemans (C-137/09, Colet., p. I-13019, n.o 53), quanto à livre prestação de serviços, e de 31 de março de 2011, Schröder (C-450/09, Colet., p. I-2497, n.os 28 e segs.), quanto à livre circulação de capitais.

( 6 )   V. despacho van de Coevering (já referido na nota 2).

( 7 )   V. acórdão Cura Anlagen (já referido na nota 4).

( 8 )   Acórdão de 11 de setembro de 2007, Schwarz e Gootjes-Schwarz (C-76/05, Colet., p. I-6849, n.os 38 e segs.), e jurisprudência aí citada. V., também, acórdão de 4 de outubro de 1991, Society for the Protection of Unborn Children Ireland (C-159/90, Colet., p. I-4685, n.o 26), quanto às informações não económicas sobre clínicas que praticam o aborto.

( 9 )   V. igualmente, neste sentido, Advocaat-Generaal van Hilten, Bijlage bij de conclusies van 4 september 2009 in de zaken met rolnummers 08/04259, 08/04991, 09/01256 en 09/01693 (anexo ao presente pedido de decisão prejudicial, n.o 3.1.5).

( 10 )   Acórdão Schröder (já referido na nota 5, n.o 25), e jurisprudência aí citada.

( 11 )   Acórdão Schröder (já referido na nota 5, n.o 26), e jurisprudência aí citada.

( 12 )   Acórdão de 27 de janeiro de 2009, Persche (C-318/07, Colet., p. I-359, n.os 25 e segs.).

( 13 )   Já referido na nota 12.

( 14 )   V., por exemplo, acórdãos Schröder (já referido na nota 5), e de 15 de setembro de 2011, Halley e o. (C-132/10, Colet., p. I-8353).

( 15 )   V. acórdão Schröder (já referido na nota 5, n.o 30) e jurisprudência aí citada.

( 16 )   V. acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Missionswerk Werner Heukelbach (C-25/10, Colet., p. I-497, n.o 22).

( 17 )   No mesmo sentido, acórdão Persche (já referido na nota 12, n.os 38 e segs.).

( 18 )   V. as indicações relativas ao direito neerlandês no n.o 7 das presentes conclusões.

( 19 )   V. infra, n.os 54 e segs.

( 20 )   Acórdão de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello (C-148/02, Colet., p. I-11613, n.o 22).

( 21 )   Acórdãos de 5 de junho de 1997, Uecker e Jacquet (C-64/96C-65/96, Colet., p. I-3171, n.o 23), e Garcia Avello (já referido na nota 20, n.o 26).

( 22 )   V. indicações relativas ao direito neerlandês no n.o 7 das presentes conclusões.

( 23 )   Ao invés, o Advocaat-Generaal van Hilten, Conclusies van 4 september 2009 in zaken met rolnummers 08/04259, 08/04991, 09/01256 en 09/01693 (anexo ao presente pedido de decisão prejudicial, n.o 5.2.2.3), sugeriu perguntar ao Tribunal de Justiça se também o direito de circular livremente no território de um Estado-Membro é abrangido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

( 24 )   Acórdão de 1 de abril de 2008, Governo da Communauté française e Gouvernement wallon contra Gouvernement flamand (C-212/06, Colet., p. I-1683, n.o 41).

( 25 )   Acórdão Governo da Communauté française e Gouvernement wallon (já referido na nota 24, n.os 37 e segs.).

( 26 )   V. conclusões da advogada-geral E. Sharpston de 30 de setembro de 2010, Ruiz Zambrano (C-34/09, Colet., p. I-1177, n.o 146 e nota 118, bem como, em geral, os n.os 135 e segs.).

( 27 )   Acórdãos de 29 de abril de 2004, Pusa (C-224/02, Colet., p. I-5763, n.o 19), de 26 de outubro de 2006, Tas-Hagen e Tas (C-192/05, Colet., p. I-10451, n.o 30)

( 28 )   Acórdão de 17 de janeiro de 2008, Comissão/Alemanha (C-152/05, Colet., p. I-39, n.os 24, 26 e 30).

( 29 )   A advogada-geral E. Sharpston salientou, a justo título, nas suas conclusões Ruiz Zambrano (já referidas na nota 26, n.o 128) também esta componente humana da cidadania da União.

( 30 )   Já referido na nota 23, n.o 3.5.

( 31 )   Despacho van de Coevering (já referido na nota 2, n.o 24), e jurisprudência aí citada.

( 32 )   Acórdãos de 15 de setembro de 2005, Comissão/Dinamarca (C-464/02, Colet., p. I-7929, n.o 79), e de 23 de fevereiro de 2006, Comissão/Finlândia (C-232/03, n.o 48, sumário reproduzido na Colet., p. I-27*), bem como despacho van de Coevering (já referido na nota 2, n.o 26).

( 33 )   Acórdão Cura Anlagen (já referido na nota 4, n.o 69), e despacho van de Coevering (já referido na nota 2, n.o 27).

( 34 )   Acórdãos Comissão/Dinamarca (já referido na nota 32, n.o 81), e de 15 de dezembro de 2005, Nadin e Nadin-Lux (C-151/04C-152/04, Colet., p. I-11203, n.o 46).