Available languages

Taxonomy tags

Info

References in this case

References to this case

Share

Highlight in text

Go

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 13 de setembro de 2012 (1)

Processo C-310/11

Grattan plc

contra

The Commissioners of Her Majesty’s Revenue & Customs

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo First-Tier Tribunal, Tax Chamber (Reino Unido)]

«Direito fiscal — Imposto sobre o valor acrescentado — Artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva 67/228/CEE — Matéria coletável no caso de devolução de uma parte da contraprestação depois de a operação ter sido efetuada»





I —    Introdução

1.        As empresas britânicas são inventivas. A sua imaginação em matéria de métodos de comercialização complexos tem ocupado regularmente o Tribunal de Justiça, sob o prisma do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA»), e conduziu à prolação de decisões importantes com nomes sonantes, como sucede por exemplo com «Naturally Yours», «Elida Gibbs» ou, mais recentemente, «Loyalty Management» (2).

2.        O presente pedido de decisão prejudicial também tem por objeto uma técnica de venda diferenciada adotada por empresas britânicas, cuja invenção, contudo, remonta já a algumas décadas atrás. Todavia, no processo principal ainda não se encontram esclarecidas as consequências dessa técnica de venda no que tange à matéria coletável do IVA, em relação aos anos 1973 a 1977. Por isso, o Tribunal de Justiça terá, no presente processo, de regressar aos primórdios do direito da União em matéria de IVA e de dedicar-se à interpretação de normas jurídicas que vigoraram, entretanto, há mais de trinta anos.

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

1.      A Segunda Diretiva IVA 67/228/CEE

3.        Durante o período de tempo em causa no processo principal o IVA encontrava-se regulado, no direito da União, na Diretiva 67/228/CEE (a seguir «Segunda Diretiva») (3).

4.        De acordo com o artigo 2.°, alínea a), da Segunda Diretiva, estão sujeitas ao IVA «[a]s entregas de bens e as prestações de serviços efetuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo».

5.        O artigo 5.° da Segunda Diretiva define melhor este facto gerador do imposto, nos seguintes termos:

«1. Por ‘entrega de um bem’ entende-se a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário.

2.      É igualmente considerada ‘entrega’, na aceção do n.° 1:

[…]

c) A transferência de um bem efetuada por força de um contrato de comissão de compra ou de venda;

[…]

5.      O facto gerador do imposto ocorre no momento em que efetua a entrega […]».

6.        O artigo 8.° da Segunda Diretiva IVA inclui disposições acerca da matéria coletável e tem o seguinte teor:

«A matéria coletável é constituída:

a)      No caso de entregas de bens e de prestações de serviços, por tudo aquilo que constitui o contravalor da entrega do bem ou da prestação de serviços, incluindo todas as despesas e impostos, com exceção do próprio imposto sobre o valor acrescentado;

[…]».

7.        O anexo A da Segunda Diretiva, que faz parte integrante da mesma de acordo com o seu artigo 20.°, presta, no ponto 13, primeiro parágrafo, o seguinte esclarecimento acerca do artigo 8.°, alínea a), da diretiva em apreço:

«Por ‘contravalor’ deve entender-se tudo aquilo que é recebido como contrapartida da entrega do bem ou da prestação de serviços […]».

8.        Por seu turno, o artigo 9.° da Segunda Diretiva regula a aplicação da taxa do imposto à matéria coletável, nos seguintes termos:

«1. A taxa normal do imposto sobre o valor acrescentado será fixada por cada Estado-Membro em uma percentagem da matéria coletável, que é a mesma para as entregas de bens e para as prestações de serviços.

[…]».

2. A Sexta Diretiva IVA 77/388/CEE

9.        No Reino Unido, a Diretiva 77/388/CEE (4) (a seguir «Sexta Diretiva») substituiu a Segunda Diretiva com efeitos a partir de 1 de janeiro de 1978 (5).

10.      A Sexta Diretiva, no que concerne à matéria coletável, contém disposições mais detalhadas em comparação com o artigo 8.° da Segunda Diretiva. Do nono considerando consta a seguinte justificação:

«Considerando que a matéria coletável deve ser objeto de harmonização, a fim de que a aplicação da taxa comunitária às operações tributáveis conduza a resultados comparáveis em todos os Estados-Membros».

11.      O artigo 11.°, A, da Sexta Diretiva dispõe o seguinte, a este propósito:

«1.      A matéria coletável é constituída:

a)      No caso de entregas de bens e de prestações de serviços […], por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro […]».

12.      Além disso, o artigo 11.°, C, n.° 1, da Sexta Diretiva inclui uma disposição que se destina a regular os casos de redução da matéria coletável depois de efetuada a operação:

«Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço, depois de efetuada a operação, a matéria coletável é reduzida em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.

Todavia, no caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar este preceito.»

B —    Direito nacional

13.      Durante o período de tempo em causa no processo principal a Section 10(2) do Finance Act 1972 previa, quanto à matéria coletável, o seguinte:

«Se a entrega de um bem é efetuada em troca de uma contraprestação em dinheiro, o seu valor corresponde ao montante dessa contraprestação, acrescido do imposto exigível.»

14.      A legislação nacional não previa qualquer disposição aplicável para o caso de redução da matéria coletável depois de efetuada a operação.

III — Processo principal e questões prejudiciais

15.      A recorrente no processo principal é a sociedade Grattan plc (a seguir «Grattan»). Invoca no processo principal, contra a administração tributária britânica, direitos de reembolso de IVA, direitos esses que são originariamente próprios ou foram adquiridos por cessão. Estes direitos reportam-se a IVA que foi pago entre 1973 e 1977 por várias sociedades, no contexto da atividade, que lhes era comum, de venda por correspondência (a seguir «empresas de venda por correspondência»).

16.      As empresas de venda por correspondência mantinham um sistema de venda especial. Este sistema abrangia pessoas, designadas por «agentes», que mantinham uma conta junto da respetiva empresa de venda por correspondência. Os agentes auferiam «comissões», quer pelas suas próprias aquisições de bens do catálogo de venda por correspondência (a seguir «aquisições próprias do agente»), quer pelas aquisições efetuadas por terceiros por intermédio do agente (a seguir «aquisições de terceiros»), que correspondiam a 10% dos montantes transferidos e que eram creditados na referida conta.

17.      Cada agente tinha, em regra, um número limitado de pessoas que lhes estavam afetas enquanto «clientes terceiros», sendo então que o agente acompanhava as aquisições de terceiros entregando catálogos aos mencionados clientes terceiros, intermediando as encomendas dirigidas às empresas de venda por correspondência, reencaminhando as mercadorias encomendadas aos ditos clientes terceiros e recebendo deles o preço de catálogo.

18.      O agente podia reclamar os montantes que tivessem sido creditados na sua conta, por força tanto das suas aquisições próprias como das aquisições de terceiros, podendo pedir, nomeadamente, que esses montantes fossem pagos por cheque ou compensados com créditos da empresa de venda por correspondência.

19.      Os montantes creditados por força de aquisições de terceiros, que eram aplicados nos mencionados termos, eram tratados pela administração tributária britânica como retribuição pelos serviços prestados pelo agente em relação ao acompanhamento dos clientes terceiros.

20.      A Grattan, no processo principal, opõe-se a este tratamento. Entende que os créditos a favor dos agentes se limitavam a reduzir o preço pago pelos agentes pela aquisição da mercadoria, não apenas no caso das aquisições próprias do agente, onde isso é indiscutível, mas também no caso das aquisições de terceiros. As «comissões» implicavam assim uma redução a posteriori da contrapartida e, por conseguinte, da matéria coletável relativa à entrega de mercadorias pelas empresas de venda por correspondência aos agentes, a partir do momento em que estes passavam a dispor dos montantes creditados. É nesta medida que, segundo a Grattan, as empresas de venda por correspondência, entre 1973 e 1977, teriam pago IVA a mais.

21.      O First-Tier Tribunal (Tax Chamber), a quem cabe decidir acerca do pedido de restituição, vê-se na necessidade de interpretar a Segunda Diretiva, então em vigor, surgindo-lhe a dúvida se, de acordo com esta diretiva, se impunha, em termos de direito da União, uma redução a posteriori da matéria coletável. É neste contexto que submete ao Tribunal de Justiça a seguinte questão:

«Em relação ao período anterior a 1 de janeiro de 1978, um sujeito passivo dispõe, ao abrigo do artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva e/ou dos princípios de neutralidade fiscal e de igualdade de tratamento, de um direito diretamente aplicável de considerar a matéria coletável relativa a uma entrega de bens reduzida retroativamente quando, depois dessa entrega, o respetivo destinatário obteve do fornecedor um crédito que optou por cobrar sob a forma de um pagamento em dinheiro ou de um crédito a deduzir dos montantes devidos ao fornecedor por entregas de bens que já lhe tinham sido efetuadas?»

IV — Apreciação jurídica

22.      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio esclareceu, na sua decisão de reenvio prejudicial, que no processo principal só é controvertido o reembolso de IVA relativo aos montantes creditados em virtude das aquisições de terceiros, importa interpretar restritivamente a questão prejudicial, neste mesmo sentido. Deste modo, seguidamente não se irei analisar as consequências, em termos de IVA, do pagamento de «comissões» pelas aquisições próprias do agente.

23.      Importa assim apreciar se, de acordo com o direito da União, os montantes, relativos a aquisições de terceiros, que de 1973 a 1977 foram primeiro creditados aos agentes e depois pagos por cheque ou por via de compensação, reduziram a matéria coletável relativa ao IVA a pagar pelas empresas de venda por correspondência, e se estas empresas de venda por correspondência têm, nesse sentido, um direito diretamente aplicável.

24.      No período em causa era o artigo 8.° da Segunda Diretiva que regulava a determinação da matéria coletável. De acordo com a respetiva alínea a), em conjugação com o anexo A, ponto 13, da referida diretiva, no caso das entregas de bens em questão no processo principal constitui matéria coletável tudo aquilo que é recebido como contrapartida dessa entrega.

25.      No caso em apreço as empresas de venda por correspondência começaram por receber os pagamentos do preço da compra e venda. Porém, após a entrega das mercadorias procederam, elas próprias, a pagamentos aos agentes, estando então em causa os montantes que primeiro eram creditados e posteriormente entregues a esses mesmos agentes. No caso em apreço coloca-se a questão de saber se, ao abrigo da Segunda Diretiva, os referidos pagamentos das empresas de venda por correspondência implicam uma redução da matéria coletável relativa às entregas de mercadoria que efetuaram, tendo em consideração que essas empresas de venda por correspondência acabaram, na realidade, por receber menos.

26.      Tal como resulta da decisão de reenvio prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio entende que só carece de esclarecimento a questão de saber se, segundo o artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva, é possível uma redução da matéria coletável mesmo após o momento da entrega. Porém, o primeiro pressuposto para uma redução da matéria coletável, nos termos da referida disposição, é que os pagamentos acima descritos, efetuados pelas empresas de venda por correspondência, correspondam, antes de mais nada, a devoluções de parte da contrapartida, que tenham por efeito uma redução da matéria coletável. Importa, por isso, começar por analisar esta questão (parte A), antes de se analisar a seguinte, que é a de saber se a Segunda Diretiva impõe uma redução da matéria coletável depois de efetuada a entrega (em B).

A —    Devolução da contrapartida pelo sujeito passivo

27.      É ponto de partida que a matéria coletável, nos termos do artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva, só pode ser reduzida em virtude de um pagamento do sujeito passivo se esse pagamento constituir devolução de uma contrapartida do destinatário do pagamento. É que nem todos os pagamentos do sujeito passivo a uma pessoa que tenha prestado uma contrapartida devem ser qualificados como devolução dessa contrapartida.

28.      Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, à luz da matéria de facto a fixar por si no processo principal, analisar a questão de saber se os pagamentos efetuados pelas empresas de venda por correspondência constituem devoluções de contrapartidas. Não obstante, a matéria de facto exposta na decisão de reenvio prejudicial e as alegações dos intervenientes suscitaram certas dúvidas que os pagamentos acima descritos devam ser considerados como devoluções de contrapartidas. Em especial, parecem carecer de maior esclarecimento as relações jurídicas obrigacionais existentes entre as empresas de venda por correspondência, os agentes e os clientes terceiros — relações essas que, aparentemente, são controvertidas entre as partes no processo principal.

29.      Dentro deste circunstancialismo, afiguram-se-me necessárias algumas referências à jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça, a fim de serem criadas condições que permitam ao órgão jurisdicional de reenvio proferir uma decisão no processo principal, que seja consentânea com o direito da União em matéria de IVA. Entendo que a jurisprudência a seguir mencionada, mesmo que não tenha sido proferida a propósito da Segunda Diretiva, se aplica à mesma, atendendo à semelhança entre as disposições desta e as disposições da Sexta Diretiva, aí interpretadas (6).

30.      O órgão jurisdicional de reenvio terá, no processo principal, de começar por esclarecer se as empresas de venda por correspondência, no caso das aquisições de terceiros, venderam diretamente aos clientes terceiros ou se existia uma cadeia de abastecimento, no âmbito da qual os agentes eram, eles próprios, compradores, no contexto dessas aquisições de terceiros, revendendo a mercadoria aos clientes terceiros de forma autónoma ou a troco de uma comissão de venda. Os pressupostos da verificação de uma devolução da contrapartida são diferentes, nestas duas hipóteses.

1.      Venda direta de mercadoria pelas empresas de venda por correspondência aos clientes terceiros

31.      Se as empresas de venda por correspondência venderam diretamente aos clientes terceiros, como foi alegado pelo Governo do Reino Unido, então afigura-se inequívoco que as «comissões» concedidas aos agentes, em virtude das aquisições de terceiros, não podem constituir devolução da contrapartida em relação à venda da mercadoria pelas empresas de venda por correspondência aos clientes terceiros. Neste caso, seria irrelevante o facto de, no final, as empresas de venda por correspondência só receberem o preço de catálogo pago pelo cliente terceiro subtraído das «comissões» pagas aos agentes. Pois o Tribunal de Justiça já decidiu várias vezes que nas hipóteses em que um terceiro intervém no procedimento de pagamento e que por causa disso cobra uma parte do preço da compra e venda pago pelo comprador, ainda assim é o preço total da compra e venda que constitui a matéria coletável da prestação do vendedor ao comprador (7). No presente caso terá necessariamente de aplicar-se o mesmo, uma vez que apesar de o agente não cobrar diretamente uma parte do preço da compra e venda pago pelo cliente terceiro, recebe-a posteriormente.

32.      Se as empresas de venda por correspondência venderam diretamente aos clientes terceiros, é também duvidoso que através das «comissões» concedidas ao agente por força das aquisições de terceiros se estivesse a devolver uma parte da contrapartida de outra operação, mais concretamente a aquisição própria do agente. É que, em princípio, se exigiria para este efeito que a relação jurídica regulasse a contrapartida da aquisição própria do agente. É certo que o Tribunal de Justiça decidiu inovadoramente no processo Elida Gibbs que, em determinadas circunstâncias, pode ser de aceitar uma redução da matéria coletável ainda que a contrapartida contratualmente determinada não tenha chegado a sofrer alteração (8). Mas, segundo esta jurisprudência, o pagamento do sujeito passivo encontra-se pelo menos condicionado pela prestação de certo serviço ao destinatário do pagamento. Contudo, no processo principal é duvidoso que se verifique este pressuposto em relação à matéria coletável das aquisições próprias dos agentes, uma vez que os montantes creditados não parecem depender de existir uma determinada aquisição própria do agente, desde logo porque também era possível fazer o pagamento por cheque, que é independente dessa mesma aquisição.

33.      Caso, ainda assim, se conclua verificar-se a devolução de uma contrapartida das aquisições próprias do agente, então o órgão jurisdicional de reenvio terá de apreciar se não é de excluir uma redução da matéria coletável pelo facto de as «comissões» constituírem a retribuição pelo serviço prestado pelos agentes às empresas de venda por correspondência. É que se o pagamento constituir, ele próprio, uma contrapartida, então acaba por não ser possível a redução da matéria coletável. Pois para efeitos de determinação da matéria coletável no lugar da parte devolvida da contrapartida entra o valor do serviço prestado para o efeito. É isto, em suma, que foi já decidido pelo Tribunal de Justiça no processo Naturally Yours Cosmetics, em relação a um desconto (9).

34.      O entendimento de que as «comissões» constituem a retribuição por um serviço prestado pelo agente pressupõe, segundo jurisprudência constante, em primeiro lugar, que entre o agente e as empresas de venda por correspondência exista uma relação jurídica em cujo quadro são realizadas prestações recíprocas (10). Em segundo lugar, tem de existir uma conexão direta entre o serviço prestado e o contravalor recebido (11). Esta conexão, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, deve ser entendida como condição recíproca da prestação e da contrapartida, no quadro da relação jurídica (12). No presente caso teria portanto de existir um acordo entre as empresas de venda por correspondência e os agentes, através do qual o pagamento das «comissões» fosse posto na dependência de uma prestação dos agentes. Da jurisprudência não se afigura possível extrair outros pressupostos — tais como, por exemplo, o da obrigação de atuação por parte dos agentes (13).

2.      Cadeia de abastecimento

35.      Se, pelo contrário, existe uma cadeia de abastecimentos, então as aquisições próprias do agente e as aquisições de terceiros devem, em princípio, ser tratadas de modo igual. A existência de uma cadeia de abastecimentos pode resultar do facto de os adquirentes da mercadoria, no contexto de todas as vendas efetuadas pelas empresas de venda por correspondência, serem exclusivamente os agentes, que por seu turno revendiam autonomamente essa mercadoria aos clientes terceiros, tal como alega a Grattan. De resto, como bem referiu a Comissão, também existe uma cadeia de abastecimentos, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea c), da Segunda Diretiva (14), quando os agentes, no quadro de um contrato de comissão de venda, tenham atuado em benefício das empresas de venda por correspondência.

36.      Em virtude da igualdade de tratamento entre aquisições próprias do agente e aquisições de terceiros não se colocariam, no quadro de uma cadeia de abastecimento, questões relativas à qualificação dos créditos decorrentes de aquisições de terceiros ou aquisições próprias do agente. Neste caso, as «comissões» apenas poderiam consubstanciar reduções de preço gerais — que, porém, só se concretizariam por meio do crédito e do pagamento por cheque, por um lado, ou da compensação com novas compras, por outro lado —, às quais foi atribuída uma designação equívoca.

37.      Do mesmo modo, ter-se-ia ainda de apreciar, nesta hipótese, se as «comissões» corresponderiam à retribuição pela prestação de um serviço pelo agente às empresas de venda por correspondência. Tal como já referi (15), neste caso até a devolução de uma contrapartida é insuscetível de conduzir a uma redução da matéria coletável.

3.      Conclusão intercalar

38.      Caso os princípios jurisprudenciais ora expostos não permitam ao órgão jurisdicional de reenvio responder à questão de saber se no processo principal é de dar por assente ter ocorrido uma efetiva devolução de uma contrapartida, subsiste ainda a possibilidade de, se necessário, submeter nova questão prejudicial. Seja como for, irei de seguida, na resposta à questão que ora nos ocupa, assumir que as «comissões» pagas pelas empresas de venda por correspondência aos agentes, em virtude das aquisições de terceiros, devem efetivamente ser qualificadas como devoluções da contrapartida pela aquisição de mercadoria, por parte dos agentes, e que estas devoluções, por seu turno, não constituem retribuição por um serviço prestado às referidas empresas de venda por correspondência.

B —    Redução da matéria coletável após a entrega

39.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um sujeito passivo, na situação descrita, dispõe, ao abrigo do artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva ou dos princípios da neutralidade fiscal ou da igualdade de tratamento, de um direito diretamente aplicável de considerar a matéria coletável relativa a uma entrega de bens reduzida retroativamente. Uma tal redução retroativa da matéria coletável, em virtude das «comissões» pagas, teria então como consequência uma redução da dívida fiscal, o que por sua vez justificaria os direitos de reembolso invocados pela Grattan no processo principal.

1.      Interpretação da Segunda Diretiva

40.      A dívida fiscal de um sujeito passivo é consequência da ocorrência de certo facto gerador do imposto. Este vem previsto, no caso em apreço, no artigo 2.°, alínea a), da Segunda Diretiva, que sujeita a IVA as entregas de bens a título oneroso. O valor da dívida fiscal resulta da aplicação da taxa do imposto à matéria coletável, como resulta do artigo 9.°, n.° 1, da Segunda Diretiva. Nos termos do artigo 5.°, n.° 5, da Segunda Diretiva, o facto gerador do imposto ocorre no momento em que a entrega é efetuada.

41.      O Governo do Reino Unido alegou, com razão, que dentro deste quadro é no momento da entrega que a matéria coletável deve ser determinada. Foi isto mesmo que o Tribunal de Justiça decidiu, a propósito da disposição comparável do artigo 10.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Sexta Diretiva (16). Por conseguinte, nos termos da Segunda Diretiva a dívida fiscal do sujeito passivo corresponde ao valor que resulta da matéria coletável determinada no momento da entrega.

42.      A determinação da matéria coletável vem prevista no artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva. Segundo esta disposição, a matéria coletável, no que toca à entrega de bens em causa no processo principal, é constituída por «tudo aquilo que constitui o contravalor da entrega do bem […]». O «contravalor», que assim assume natureza decisiva, é, segundo o anexo A, ponto 13, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva, «[…] tudo aquilo que é recebido como contrapartida da entrega do bem […]».

43.      Deste modo, coloca-se antes de mais a questão de saber se na determinação da matéria coletável, no momento em que a entrega é efetuada, devem ou não ser contabilizados na contrapartida determinados montantes que o sujeito passivo efetivamente recebeu, mas que posteriormente tem de reembolsar aos seus parceiros contratuais, logo que eles o solicitem.

44.      O texto das referidas disposições, relativas à determinação da matéria coletável, não fornece resposta a esta questão. Mas, tal como foi corretamente alegado pela Comissão, pode-se chamar à colação, para interpretação do artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva, a jurisprudência proferida pelo Tribunal de Justiça a propósito do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea a), da Sexta Diretiva. as duas disposições têm um teor e uma função comparáveis.

45.      O Tribunal de Justiça decidiu já, a propósito do artigo 11.° A, n.° 1, alínea a), da Sexta Diretiva, no acórdão Freemans, num caso factualmente semelhante ao que ora se discute, que na determinação da matéria coletável não há que tomar em consideração as devoluções da contrapartida que já tenham sido acordadas contratualmente mas que ainda não tenham sido efetuadas (17). Segundo a jurisprudência, só não é assim no caso especial (18) de se verificar uma obrigação legal de devolução parcial da contrapartida, quando estiver em causa um jogo de fortuna ou azar (19).

46.      O Tribunal de Justiça fundamentou a sua decisão, no processo Freemans, com recurso ao princípio, que tem vindo a ser reiterado em jurisprudência constante proferida a propósito da Segunda e da Sexta Diretivas (20), segundo o qual a matéria coletável corresponde à «contrapartida realmente recebida» (21). A esta luz não se afigura convincente o alegado pela Comissão, no sentido de que o respeito por este princípio impõe que as devoluções posteriores da contrapartida impliquem uma redução da matéria coletável. É que o significado deste princípio jurisprudencial depende do momento da determinação da matéria coletável. Por outras palavras, o que é decisivo é saber quanto é que o sujeito passivo «realmente recebeu» no momento em que importa determinar a matéria coletável. Tal como melhor resulta do teor do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea a), da Sexta Diretiva, está em causa o montante que o sujeito passivo «recebeu ou deve receber» no momento em causa, ou seja, o montante que lhe deve ser pago. Por isso, faz diferença o comprador pagar logo à partida um preço reduzido ou começar por pagar o preço por inteiro e poder, em certas condições, ser posteriormente reembolsado de parte do dinheiro. Pois como foi salientado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Freemans, não é certo que no futuro se verifique efetivamente a devolução de uma parte da contrapartida (22).

47.      Deste modo, o facto de a devolução parcial da contrapartida, após a entrega, ser efetivamente possível, não influencia, nos termos do artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva, a determinação da matéria coletável e, consequentemente, o valor da dívida fiscal gerada.

48.      Além disso, a Segunda Diretiva também não contém qualquer disposição que preveja a alteração de uma dívida fiscal já constituída. O caso é diferente em relação à dedução do imposto pago a montante, para o qual o artigo 11.°, n.° 2, segundo e terceiros parágrafos, da Segunda Diretiva prevê um mecanismo de revisão. O caso também é diferente já à luz da Sexta Diretiva, cujo artigo 11.°, C, n.° 1, passou a prever, com efeitos a partir de 1978, um processo de redução a posteriori da matéria coletável e, por conseguinte, da dívida fiscal resultante da ocorrência de um facto gerador do imposto.

49.      Ao contrário do que foi alegado pela Grattan e pela Comissão, não é possível interpretar o artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva como se este previsse um mecanismo de revisão a posteriori. O facto de posteriormente se ter previsto um mecanismo desse tipo, no artigo 11.°, C, n.° 1, da Sexta Diretiva, não permite que se ficcione a sua aplicação também na vigência da Segunda Diretiva. É que o grau de harmonização da Segunda e da Sexta Diretivas não são comparáveis.

50.      A Segunda Diretiva, em conjugação com a Primeira Diretiva 67/227/CEE (23), tinha por objetivo substituir os diferentes regimes de imposto sobre o volume de negócios, em vigor nos vários Estados-Membros, por um sistema comum do IVA, que seguisse regras unitárias. No sétimo considerando da Primeira Diretiva salienta-se a necessidade de se «proceder por fases». No terceiro considerando da Segunda Diretiva diz-se que é possível, a título transitório, admitir «certas diferenças entre as modalidades de aplicação do imposto nos Estados-Membros». Por isso, o sistema de imposto sobre o valor acrescentado, tal como começou por ser introduzido, ainda não continha, sob diversos pontos de vista, regimes definitivos; em particular, não previa regras relativas à determinação de uma matéria coletável uniforme, expressão esta que acabou aliás por obter consagração no título da Sexta Diretiva. Tal como indicia o nono considerando desta Sexta Diretiva, foi apenas ela que procedeu à harmonização abrangente da matéria coletável.

51.      Importa assim constatar que a Segunda Diretiva não prevê uma redução retroativa da matéria coletável e, consequentemente, uma redução da dívida fiscal, como resultado da devolução da contrapartida após o momento da entrega, que corresponde ao da ocorrência do facto gerador do imposto. Deste modo, também não é possível extrair da Segunda Diretiva um direito diretamente aplicável do sujeito passivo nesse mesmo sentido.

2.      Princípio da neutralidade fiscal

52.      Quanto ao mais, o respeito pelo princípio da neutralidade fiscal não conduz a resultado diferente.

53.      É certo que este princípio, ao contrário do que foi invocado pelo Governo do Reino Unido, não constitui mera emanação do princípio da igualdade. O Tribunal de Justiça também interpreta o princípio da neutralidade no sentido de igualmente consagrar a neutralidade na incidência, que protege o sujeito passivo, uma vez que o sistema comum do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final (24).

54.      Todavia, nesta variante o princípio da neutralidade não tem valor supralegislativo (25). Por isso, pode ser chamado à colação, em casos de dúvida interpretativa, mas não pode ampliar ou restringir os regimes jurídicos consagrados pelas diretivas IVA concretamente a aplicar (26). Assim, para o que ora importa, não pode compensar o facto de a Segunda Diretiva não conter uma disposição comparável ao artigo 11.°, C, n.° 1, da Sexta Diretiva.

3.      Princípio da igualdade de tratamento

55.      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio refere ainda, na sua questão prejudicial, ao princípio da igualdade de tratamento. Contudo, do pedido de decisão prejudicial não resulta em que medida pode o princípio da igualdade de tratamento ser relevante para o presente caso.

56.      Seja como for, este princípio não exige uma igualdade de tratamento ao longo do tempo. A diferente intensidade da harmonização do sistema comum do IVA, antes e depois de 1 de janeiro de 1978, pode efetivamente conduzir a diferentes matérias coletáveis antes e depois dessa data. É que o princípio da igualdade de tratamento não impõe que patamares mais avançados da harmonização, como aqueles que foram atingidos através do artigo 11.°, C, n.° 1, da Sexta Diretiva, tenham de produzir efeitos retroativos.

V —    Conclusão

57.      Deste modo, proponho que se responda à questão prejudicial submetida pelo First-Tier Tribunal (Tax Chamber) nos seguintes termos:

O artigo 8.°, alínea a), da Segunda Diretiva 67/228/CEE deve ser interpretado no sentido de que um sujeito passivo não dispõe de um direito diretamente aplicável de considerar a matéria coletável relativa a uma entrega de bens reduzida retroativamente quando, depois dessa entrega, o respetivo destinatário obteve do fornecedor um crédito que optou por cobrar sob a forma de um pagamento em dinheiro ou de um crédito a deduzir dos montantes devidos ao fornecedor por entregas de bens que já lhe tinham sido efetuadas.


1 —      Língua original: alemão.


2 —      V. acórdãos de 23 de novembro de 1988, Naturally Yours Cosmetics (230/87, Colet., p. 6365), de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs (C-317/94, Colet., p. I-5339), e de 7 de outubro de 2010, Loyalty Management UK (C-53/09 e C-55/09, Colet., p. I-9187).


3 —      Segunda Diretiva do Conselho, de 11 de abril de 1967, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Estrutura e modalidades de aplicação do sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado (JO 1967, 71, p. 1303; EE 09 F1 p. 6).


4 —      Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO L 145, p. 1, EE 09 F1 p. 54).


5 —      V. artigo 37.° e artigo 1.°, n.° 2, da Sexta Diretiva. A prorrogação do prazo de transposição, pela Nona Diretiva 78/583/CEE do Conselho, de 26 de junho de 1978, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios (JO L 194, p. 16; EE 09 F1 p. 102), não abrangeu o Reino Unido.


6 —      V. também, neste sentido, acórdãos de 8 de março de 1988, Apple and Pear Development Council (102/86, Colet., p. 1443, n.° 10), e Naturally Yours Cosmetics (230/87, Colet., p. 6365, n.° 10).


7 —      V. acórdãos de 25 de maio de 1993, Bally (C-18/92, Colet., p. I-2871, n.° 14), e de 15 de maio de 2001, Primback (C-34/99, Colet., p. I-3833, n.° 28 e seguintes).


8 —      V. acórdão Elida Gibbs (C-317/94, Colet., p. I-5339, n.° 31).


9 —      V. acórdão Naturally Yours Cosmetics (230/87, Colet., p. 6365). É que o Tribunal de Justiça entendeu aí que numa entrega de mercadorias em que um desconto se encontra dependente da prestação de um serviço pelo destinatário, que por conseguinte presta, ele próprio, um serviço oneroso, se deve entender que a matéria coletável da entrega da mercadoria é composta pela prestação pecuniária reduzida acrescida do valor do serviço prestado. O valor em dinheiro desta prestação de serviços deve ser feito equivaler ao do desconto. Portanto, em termos de resultado final a matéria coletável da entrega da mercadoria corresponde ao preço da venda sem o desconto.


10 —      V., entre outros, acórdãos de 3 de março de 1994, Tolsma (C-16/93, Colet., p. I-743, n.° 14), de 27 de abril de 1999, Kuwait Petroleum (C-48/97, Colet., p. I-2323, n.° 26), e de 3 de maio de 2012, Lebara (C-520/10, n.° 27).


11 —      V., entre outros, acórdãos de 5 de fevereiro de 1981, Coöperatieve Aardappelenbewaarplaats (154/80, Recueil, p. 445, n.° 12), Naturally Yours Cosmetics (230/87, Colet., p. 6365, n.° 11 e seg.), e de 3 de maio de 2012, Lebara (C-520/10, n.° 27).


12 —      V. conclusões apresentadas pela advogada-geral C. Stix-Hackl em 6 de março de 2001 no processo Bertelsmann (C-380/99, Colet., p. I-5163, n.° 32).


13 —      V. Court of Appeal, acórdão de 26 de outubro de 2001 ([2001] EWCA Civ 1542, n.° 72).


14 —      V., a este propósito, conclusões por mim apresentadas em 24 de fevereiro de 2005 no processo Comissão/Reino Unido (C-305/03, Colet., p. I-1213, n.° 67), em relação ao artigo 5.°, n.° 4, alínea c), da Sexta Diretiva, de igual teor.


15 —      V. n.° 33, supra.


16 —      V. acórdão de 27 de outubro de 1993, Muys’ en De Winter’s Bouw- en Aannemingsbedrijf (C-281/91, Colet., p. I-5405, n.° 16).


17 —      V. acórdão de 29 de maio de 2001, Freemans (C-86/99, Colet., p. I-4167, n.os 27 a 29).


18 —      V. acórdão Freemans (referido na nota 17, n.° 30).


19 —      V. acórdão de 19 de julho de 2012, International Bingo Technology (C-377/11, n.os 26 a 29, bem como a jurisprudência aí indicada).


20 —      V., entre outros, acórdãos Coöperatieve Aardappelenbewaarplaats (154/80, Recueil, p. 445, n.° 13), de 2 de junho de 1994, Empire Stores (C-33/93, Colet., p. I-2329, n.° 18), e International Bingo Technology (referido na nota 19, n.° 25).


21 —      V. acórdão Freemans (referido na nota 17, n.° 27).


22 —      V. acórdão Freemans (referido na nota 17, n.° 28).


23 —      Primeira Diretiva do Conselho, de 11 de abril de 1967, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios (JO 1967, 71, p. 1301; EE 09 F1 p. 3).


24 —      V. acórdão Elida Gibbs (já referido na nota 2, n.os 19 e 23).


25 —      V. conclusões apresentadas pelo advogado-geral Y. Bot em 18 de junho de 2009 no processo NCC Construction Danmark (C-174/08, Colet., p. I-10567, n.os 84 a 86).


26 —      V. acórdão de 19 de julho de 2012, Deutsche Bank (C-44/11, n.° 45), a propósito do princípio da neutralidade, na sua dimensão de princípio da igualdade de tratamento.