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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 13 de junho de 2013 (1)

Processo C-303/12

Guido Imfeld

Nathalie Garcet

contra

État belge

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal de première instance de Liège (Bélgica)]

«Livre circulação das pessoas — Trabalhadores independentes — Liberdade de estabelecimento — Imposto sobre o rendimento — Convenção bilateral destinada a evitar a dupla tributação — Exoneração dos rendimentos auferidos num Estado-Membro diferente do Estado-Membro de residência — Tributação comum dos casais — Tomada em conta dos rendimentos exonerados na base tributável — Benefícios fiscais relacionados com a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos — Restrições à liberdade de estabelecimento»





1.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é novamente chamado a pronunciar-se sobre uma questão relativa à compatibilidade com o direito da União de uma regulamentação de um Estado-Membro relativa ao imposto sobre o rendimento que tem por efeito privar um casal de contribuintes residentes de uma parte dos benefícios fiscais que essa regulamentação prevê a favor das famílias. A particularidade deste processo reside na circunstância de um dos membros do referido casal auferir a totalidade dos seus rendimentos num outro Estado-Membro, onde é tributado a título individual e onde beneficiou parcialmente de benefícios fiscais equivalentes.

2.        O Tribunal de Justiça é assim confrontado pela primeira vez com a questão de saber se um Estado-Membro pode justificar a não atribuição a um casal de residentes, em que um dos membros fez uso das liberdades garantidas pelo Tratado FUE, de um benefício fiscal determinado, no caso vertente uma isenção de imposto por filho a cargo, pela circunstância de o referido membro do casal em causa ter obtido um benefício equivalente no âmbito da sua tributação num outro Estado-Membro. O Tribunal de Justiça é chamado a precisar, de forma mais ampla, a sua jurisprudência segundo a qual incumbe, em princípio, ao Estado-Membro de residência tomar em consideração a totalidade da situação pessoal e familiar do contribuinte, salvo na hipótese de o contribuinte auferir o essencial dos seus rendimentos num outro Estado-Membro.

I —    Quadro jurídico

A —    Convenção bilateral de 1967

3.        O artigo 14.° da Convenção entre o Reino da Bélgica e a República Federal da Alemanha destinada a evitar a dupla tributação e a regular diversas outras questões em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património, incluindo os impostos profissionais e os impostos prediais, assinada em Bruxelas em 11 de abril de 1967 (2), dispõe:

«1.       Os rendimentos obtidos por um residente de um Estado contratante a título do exercício de uma profissão liberal ou de outras atividades independentes de caráter análogo apenas podem ser tributados nesse Estado, exceto se esse residente dispuser, de forma habitual, no outro Estado contratante, de uma instalação permanente para o exercício das suas atividades. Neste caso, os rendimentos são tributados no outro Estado, mas apenas na medida em que forem imputáveis às atividades exercidas nessa instalação permanente.

2.       A expressão ‘profissões liberais’ abrange, em especial, as atividades independentes […] de médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, dentistas e contabilistas.

[…]»

4.        O artigo 23.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Convenção bilateral de 1967, que estabelece as regras segundo as quais é evitada a dupla tributação dos residentes no Reino da Bélgica, prevê, designadamente, que os rendimentos provenientes da Alemanha, que são tributáveis neste Estado-Membro ao abrigo da referida convenção, estão isentos de impostos na Bélgica. A mesma disposição precisa, no entanto, que esta isenção não limita o direito do Reino da Bélgica de tomar em consideração, na determinação da taxa dos impostos, os rendimentos assim isentos.

B —    Direito belga

5.        As principais disposições do Código do Imposto sobre os Rendimentos (3) em causa nos processos principais são o artigo 155.°, que define o regime segundo o qual estão isentos de imposto sobre o rendimento os rendimentos exonerados nos termos de convenções internacionais para evitar a dupla tributação (4), e os artigos 132.° a 134.°, que preveem um benefício fiscal por filho a cargo, atribuído a cada sujeito passivo sob a forma de uma quota-parte de rendimento isenta de impostos.

6.        O artigo 155.° do CIR 1992 dispõe:

«Os rendimentos exonerados nos termos de convenções internacionais para evitar a dupla tributação são tomados em conta na determinação do imposto, mas este é reduzido proporcionalmente à parte dos rendimentos isentos na totalidade dos rendimentos.

O mesmo acontece para:

— os rendimentos exonerados nos termos de outros tratados ou acordos, na medida em que estes prevejam uma cláusula de reserva de progressividade;

[…]

Quando se aplique o regime de tributação conjunta, a redução é calculada por sujeito passivo, sobre a totalidade dos seus rendimentos líquidos.»

7.        O artigo 134.°, n.° 1, do CIR 1992 prevê:

«A quota-parte do rendimento isenta de imposto é determinada por sujeito passivo e inclui a totalidade do valor tributável, eventualmente majorado, e os suplementos referidos nos artigos 132.° e 133.°

Quando se aplique o regime de tributação conjunta, os suplementos referidos no artigo 132.° são imputados ao contribuinte com o rendimento tributável mais elevado. […]»

8.        Além disso, para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de dezembro de 2002, de Groot (5), o Reino da Bélgica adotou a circular n.° Ci.RH.331/575.420, de 12 de março de 2008, que prevê uma redução fiscal para rendimentos exonerados nos termos de uma convenção (6), cujos n.os 3 e 4 dispõem:

«3.       Apenas poderá ser concedida uma redução suplementar por rendimentos exonerados por convenção nas seguintes condições:

—       se o sujeito passivo tiver obtido rendimentos exonerados por convenção num ou em vários Estados-Membros do [Espaço Económico Europeu (EEE)];

—       se a situação pessoal ou familiar do sujeito passivo não tiver sido tomada em consideração para o cálculo do imposto devido, nos Estados em causa, sobre os rendimentos exonerados de imposto na Bélgica;

—       se o sujeito passivo não tiver podido beneficiar totalmente, na Bélgica, dos benefícios fiscais relacionados com a sua situação familiar ou pessoal;

—       se o imposto devido na Bélgica, acrescido do imposto devido no estrangeiro, for superior ao imposto que seria devido se a fonte dos rendimentos fosse exclusivamente belga e os impostos a eles respeitantes fossem devidos na Bélgica.

4.       O sujeito passivo que requer a redução suplementar deve provar que preenche as condições exigidas.»

II — Factos na origem dos processos principais

9.        G. Imfeld, de nacionalidade alemã, e N. Garcet, de nacionalidade belga, são casados, têm dois filhos e estão domiciliados na Bélgica. Apresentaram separadamente as suas declarações de rendimentos referentes aos exercícios fiscais de 2003 e 2004, na Bélgica, sem indicar que eram casados. G. Imfeld, que exerce a profissão de advogado na Alemanha, onde aufere a totalidade dos seus rendimentos, não declarou qualquer rendimento tributável ou pessoa a cargo. Em contrapartida, N. Garcet, que exerce uma profissão assalariada na Bélgica, declarou juros hipotecários e dois filhos a cargo, bem como despesas com a guarda dos filhos.

10.      As referidas declarações deram lugar aos três litígios submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio que estão na origem do pedido de decisão prejudicial apresentado ao Tribunal de Justiça.

11.      A situação fiscal do recorrente na Alemanha deu igualmente lugar a um processo neste Estado-Membro.

A —    Contencioso resultante do tratamento fiscal dos recorrentes nos processos principais na Bélgica

1.      Litígios relativos ao exercício fiscal de 2003

12.      Em 5 de abril de 2004, a administração fiscal belga começou por emitir um aviso de liquidação de imposto relativo ao exercício fiscal de 2003 apenas em nome da recorrente.

13.      No entanto, em 16 de novembro de 2004, a referida administração verificou que a recorrente não podia ser considerada celibatária e, consequentemente, emitiu um aviso de liquidação retificativo, em que anunciava a tributação conjunta dos recorrentes e a emissão de um novo aviso de liquidação com base nos rendimentos declarados da recorrente e nos rendimentos auferidos pelo recorrente como trabalhador independente.

14.      Por carta de 9 de dezembro de 2004, os recorrentes manifestaram a sua discordância com a retificação que lhes foi comunicada, tendo impugnado a liquidação conjunta do imposto devido e exigido um cálculo separado, a fim de garantir a liberdade de estabelecimento bem como a efetiva e completa isenção dos rendimentos de origem alemã auferidos pelo recorrente nos processos principais.

15.      Em 13 de dezembro de 2004, a administração fiscal notificou aos recorrentes a decisão de liquidação, indicando que a isenção dos rendimentos alemães do recorrente era total, mas que a tributação conjunta devia ter em conta os gastos com a guarda dos filhos, a quota-parte do rendimento isenta de imposto e as deduções por rendimentos de substituição.

16.      Em 10 de fevereiro de 2005, foi emitido um aviso de liquidação de imposto relativo ao exercício fiscal de 2003 unicamente em nome da recorrente, com base em rendimentos correspondentes a 0, que os recorrentes impugnaram, por reclamação apresentada em 9 de março de 2005.

17.      Esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège (Bélgica) de 11 de julho de 2005.

18.      Os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão por petição registada na Secretaria do órgão jurisdicional de reenvio em 29 de setembro de 2005.

19.      Em 13 de outubro de 2005, foi emitido um aviso de liquidação conjunta dos recorrentes relativo ao exercício fiscal de 2003, que estes impugnaram, por reclamação apresentada em 13 de janeiro de 2006.

20.      Esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège de 7 de março de 2006.

21.      Os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão por petição registada na Secretaria do órgão jurisdicional de reenvio em 31 de março de 2006.

2.      Litígios relativos ao exercício fiscal de 2004

22.      Em 24 de junho de 2005, foi emitido um aviso de liquidação conjunta dos recorrentes relativo ao exercício fiscal de 2004, que estes impugnaram, por reclamação apresentada em 15 de setembro de 2005.

23.      Esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège de 19 de outubro de 2005.

24.      Os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão por petição registada na Secretaria do órgão jurisdicional de reenvio em 21 de novembro de 2005.

B —    Contencioso resultante do tratamento fiscal do recorrente nos processos principais na Alemanha

25.      Resulta igualmente da decisão de reenvio, das observações escritas e orais e das respostas escritas às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça que, para o exercício fiscal de 2003, as autoridades fiscais alemãs recusaram ao recorrente o benefício de um regime de liquidação conjunta de que podem beneficiar, nos termos do § 1a, n.° 1, ponto 2, da Lei relativa ao imposto sobre os rendimentos (Einkommensteuergesetz), os sujeitos passivos casados e não separados de modo duradouro que sejam tributáveis na Alemanha, apesar de residirem num outro Estado-Membro (7).

26.      Foi negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente contra esta decisão de recusa, por decisão do Finanzgericht Köln (Alemanha) de 25 de julho de 2007 (8), com o fundamento de que, por um lado, os seus rendimentos tributáveis na Alemanha eram inferiores a 90 % dos rendimentos globais do seu agregado familiar e, por outro, os rendimentos da sua mulher eram superiores tanto ao limiar absoluto de 12 372 euros como ao limiar relativo de 10 % do rendimento mundial, previstos pela regulamentação fiscal alemã.

27.      Por acórdão do Bundesfinanzhof (Alemanha) de 17 de dezembro de 2007 (9), foi negado provimento ao recurso interposto desta última decisão pelo recorrente.

28.      Tanto o Finanzgericht Köln como o Bundesfinanzhof salientaram, nomeadamente, que o Tribunal de Justiça tinha confirmado os referidos limiares no seu acórdão de 14 de setembro de 1999, Gschwind (10).

III — Questão prejudicial e processo no Tribunal de Justiça

29.      Nestas circunstâncias, apensando os diversos litígios que lhe foram submetidos pelos recorrentes nos processos principais, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu, por decisão de 31 de maio de 2012, registada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de junho de 2012, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 39.° [CE] [(atual artigo 45.° TFUE)] opõe-se a que o regime fiscal belga, nomeadamente os seus artigos 155.° e 134.°, n.° 1, segundo parágrafo, do [CIR 1992], independentemente da aplicação ou não da circular [...] de 2008, tenha como consequência que os rendimentos profissionais alemães do recorrente, exonerados nos termos do artigo 14.° da Convenção entre o Reino da Bélgica e a República Federal da Alemanha destinada a evitar a dupla tributação, sejam tidos em conta no cálculo do imposto belga, sirvam de base para a atribuição de benefícios fiscais previstos pelo [CIR 1992] e estes benefícios, como a quota-parte isenta de imposto em razão da situação familiar do recorrente, sejam reduzidos ou atribuídos em menor medida do que se ambos os recorrentes tivessem rendimentos de origem belga e a recorrente tivesse obtido, em lugar do recorrente, os rendimentos mais elevados, quando, na Alemanha, o recorrente é tributado a título individual sobre os seus rendimentos profissionais e não pode obter todos os benefícios fiscais relacionados com a sua situação pessoal e familiar, os quais apenas são tomados parcialmente em consideração pela administração fiscal alemã?»

30.      Os recorrentes nos processos principais, o Reino da Bélgica, a República da Estónia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

31.      Os recorrentes nos processos principais, o Reino da Bélgica e a Comissão foram convidados a responder por escrito, antes da audiência, a questões apresentadas pelo Tribunal de Justiça, o que fizeram.

32.      Os recorrentes nos processos principais, o Reino da Bélgica e a Comissão participaram igualmente na audiência realizada em 22 de abril de 2013.

IV — Observações preliminares sobre o enunciado e o âmbito da questão prejudicial

33.      Resumida em termos muito elementares, a questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a pronunciar-se sobre a compatibilidade com o direito da União do tratamento fiscal reservado por um Estado-Membro, no caso vertente o Reino da Bélgica, a um casal que reside nesse Estado-Membro e aufere aí rendimentos, do qual um dos membros exerce uma atividade independente num outro Estado-Membro, no caso vertente a República Federal da Alemanha, onde aufere a totalidade dos seus rendimentos que representam a parte mais significativa dos rendimentos do casal e são tributáveis na Alemanha e exonerados na Bélgica ao abrigo de uma convenção bilateral.

34.      Esta simplicidade aparente esconde, todavia, um certo número de dificuldades que importa apresentar e aplanar previamente.

35.      Estas dificuldades procedem, em primeiro lugar, das particularidades, para não dizer da complexidade, da regulamentação fiscal belga aplicável aos litígios nos processos principais, mas igualmente da necessidade de compreender o tratamento fiscal reservado aos recorrentes pelo Reino da Bélgica, tendo em consideração a regulamentação fiscal alemã.

36.      A própria formulação da questão prejudicial, que se refere às caraterísticas pertinentes das duas regulamentações, testemunha perfeitamente esta complexidade. Para medir plenamente o alcance desta questão e poder dar-lhe uma resposta útil, importa pois começar por apresentar estas características e o tratamento fiscal que foi reservado aos recorrentes.

37.      Esta apresentação permitir-me-á, em seguida, identificar a situação a examinar à luz das disposições do Tratado, a qual, como veremos, é objeto de apreciações divergentes por parte dos recorrentes, do Governo belga e da Comissão, e, portanto, à luz da liberdade aplicável à referida situação. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere-se à livre circulação dos trabalhadores quando o único elemento de estraneidade da situação em causa nos processos principais tem a ver com o exercício, pelo recorrente, de uma atividade independente na Alemanha.

A —    Características principais da situação fiscal dos recorrentes na Bélgica e na Alemanha

1.      Tratamento fiscal dos recorrentes na Bélgica

38.      Resulta expressamente da decisão de reenvio que a tributação conjunta dos recorrentes teve lugar nos termos do artigo 126.°, n.° 1, do CIR 1992, que prevê, por um lado, que «os rendimentos dos cônjuges diferentes dos rendimentos profissionais acumulam com os rendimentos profissionais do cônjuge que tem os rendimentos mais elevados» e, por outro, que «a liquidação é efetuada em nome dos dois cônjuges».

39.      Está assente que a liquidação foi efetuada em nome dos dois recorrentes e é precisamente esta liquidação conjunta o que ambos impugnam no âmbito dos litígios submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio.

40.      No caso vertente, os rendimentos auferidos pela recorrente na Bélgica e os rendimentos auferidos pelo recorrente na Alemanha, que estão exonerados na Bélgica, por força do artigo 23.° da Convenção bilateral de 1967, mas são tomados em consideração efeitos da liquidação do imposto na Bélgica, nos termos desta última disposição e do artigo 155.° do CIR 1992, foram acumulados a fim de determinar o imposto devido pelo casal sobre o seu rendimento total à taxa progressiva, tendo em conta as deduções fiscais.

41.      A isenção por filho a cargo, prevista no artigo 131.°, n.° 2, do CIR 1992, permite a cada cônjuge subtrair da base tributável uma quota-parte de rendimento num montante determinado. Esta disposição prevê que, para o cálculo do imposto, está isenta uma quota-parte de rendimento por cada cônjuge, num montante de base de 4 610 euros (montante de base). O artigo 134.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do CIR 1992 especifica que este montante de base é imputado na quota-parte de rendimento de cada um dos cônjuges compreendida na base tributável.

42.      Estes montantes de base são depois majorados, de acordo com o artigo 132.° do CIR 1992, com suplementos por pessoa a cargo, no caso, 1 180 euros por um filho a cargo e 3 050 euros por dois filhos a cargo. O artigo 134.°, n.° 1, segundo parágrafo, do CIR 1992 precisa que estas majorações são imputadas prioritariamente à quota-parte do rendimento do cônjuge com os rendimentos profissionais mais elevados. É este «suplemento de isenção por filho a cargo», imputado aos rendimentos isentos do recorrente, que está em causa nos litígios nos processos principais e que constitui o único objeto da questão prejudicial.

2.      Elementos pertinentes da regulamentação fiscal alemã

43.      Nos termos da Convenção bilateral de 1967, o recorrente foi tributado a título individual na Alemanha sobre os seus rendimentos auferidos neste Estado-Membro, ou seja, sem poder beneficiar do regime do «Ehegattensplitting», por não preencher as condições previstas pela regulamentação fiscal alemã.

44.      Resulta, contudo, da sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça que, no âmbito do imposto sobre o rendimento pago na Alemanha, beneficiou de uma vantagem por filho a cargo sob a forma de uma quota-parte do rendimento isento de imposto («Freibetrag für Kinder») (11).

B —    Quanto à identificação da situação a analisar à luz do direito da União e da liberdade aplicável à situação dos recorrentes

1.      Quanto à liberdade aplicável à situação dos recorrentes

45.      Na sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio refere-se ao artigo 39.° CE, relativo à livre circulação dos trabalhadores, embora se coloque diversas vezes, nas explicações dadas na sua decisão de reenvio, no âmbito da liberdade de estabelecimento.

46.      Ora, o recorrente, que tem nacionalidade alemã e reside na Bélgica, trabalha na Alemanha como advogado, pelo que, salvo na hipótese de exercer a sua profissão como assalariado, o que não resulta nem da decisão de reenvio nem das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, está abrangido não pela livre circulação dos trabalhadores mas pela liberdade de estabelecimento (12), que abrange o acesso às atividades não assalariadas e ao seu exercício (13). De resto, a disposição da Convenção bilateral de 1967 expressamente referida pelo órgão jurisdicional de reenvio como sendo aplicável aos processos principais diz respeito às profissões liberais e às atividades independentes de caráter análogo.

47.      Sendo certo que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar o estatuto profissional do recorrente, importa pois compreender a questão prejudicial no sentido de que tem por objeto o artigo 49.° TFUE, como entendem o Governo belga e a Comissão (14).

2.      Quanto à situação a analisar à luz da liberdade de estabelecimento

a)      Resumo das observações

48.      Os recorrentes alegam, no essencial, que a regulamentação fiscal belga os prejudica em relação aos casais que auferem todos os seus rendimentos na Bélgica e, por esse motivo, constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento. Com efeito, na medida em que, por um lado, a quota-parte de rendimento isento a título de suplemento por filho a cargo é imputada na parte de rendimento mais elevada do casal e, por outro, os referidos rendimentos são auferidos num outro Estado-Membro e exonerados na Bélgica, os recorrentes não beneficiam materialmente desta vantagem.

49.      O Governo belga contesta fundamentalmente esta perspetiva de análise. Alega que o CIR 1992 reproduz «os princípios segundo os quais os rendimentos profissionais dos cônjuges são tributados separadamente, não obstante a liquidação conjunta». Partindo da premissa de que os recorrentes foram objeto de um cálculo separado do imposto, considera que só a situação fiscal do recorrente deve ser analisada à luz da liberdade de estabelecimento. Portanto, para se concluir pela existência de um entrave à liberdade de estabelecimento, cumpre comparar a situação do recorrente com aquela que teria se não tivesse feito uso da sua liberdade e tivesse auferido todos os seus rendimentos profissionais na Bélgica.

50.      A Comissão considera que o efeito restritivo da regulamentação fiscal belga não reside num tratamento desfavorável do rendimento do recorrente, tributável na Alemanha e exonerado na Bélgica, mas num tratamento desfavorável do rendimento da sua mulher, auferido na Bélgica e integralmente tributável neste último Estado-Membro.

b)      Análise

51.      Resulta do exame das principais características da regulamentação fiscal belga que o «suplemento de isenção por filho a cargo» é atribuído ao casal no seu conjunto.

52.      Como a Comissão observou na sua resposta à questão que lhe foi colocada pelo Tribunal de Justiça, a circunstância de o referido suplemento ser calculado mediante imputação aplicada aos rendimentos tributáveis mais elevados de um dos cônjuges apenas confirma esta especificidade. A regulamentação fiscal belga pretende assim maximizar o efeito da vantagem fiscal familiar, e é tendo em conta este objetivo que deve ser examinada à luz da liberdade de estabelecimento.

53.      Do ponto de vista da liberdade de estabelecimento, a questão que se coloca é, pois, saber se a aplicação da regulamentação fiscal belga comporta para os recorrentes fiscalmente considerados como casal uma desvantagem derivada do facto de o recorrente auferir a totalidade dos seus rendimentos num outro Estado-Membro e de, por esse motivo, o casal se encontrar privado do benefício efetivo do «suplemento de isenção por filho a cargo».

C —    Quanto à reformulação da questão prejudicial

54.      A exposição precedente permite-me propor que o Tribunal de Justiça reformule a questão prejudicial apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio, reduzindo-a aos seus elementos fundamentais do ponto de vista do direito da União e, portanto, eliminando da sua redação as diferentes precisões factuais que ela inclui, relativas à estrutura dos rendimentos dos recorrentes ou às modalidades de imputação do benefício em causa, que consiste no «suplemento de isenção por filho a cargo».

55.      Com efeito, o Tribunal de Justiça é, no essencial, interrogado sobre a questão de saber se o artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação da regulamentação fiscal de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que tem por efeito privar um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos no referido Estado e num outro Estado-Membro, de um benefício fiscal determinado, em razão das suas modalidades de imputação, quanto este casal teria direito a esse benefício se os seus membros auferissem a totalidade ou a maior parte dos seus rendimentos no seu Estado-Membro de residência.

V —    Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

56.      Importa, em primeiro lugar, recordar que, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, no estado atual do desenvolvimento do direito da União, a fiscalidade direta é da competência dos Estados-Membros, devendo estes, todavia, exercer essa competência com observância do direito da União (15).

57.      Em particular, o Tribunal de Justiça salientou reiteradamente que, na falta de medidas de unificação ou de harmonização adotadas pela União Europeia, os Estados-Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos e do património, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados-Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os fatores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (16).

58.      Contudo, esta repartição da competência fiscal não permite aos Estados-Membros aplicarem medidas contrárias às liberdades de circulação garantidas pelo Tratado. No exercício do poder de tributação assim repartido no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os Estados-Membros continuam a estar obrigados a respeitarem as regras da União (17).

59.      Cumpre igualmente recordar que, segundo jurisprudência constante, é ao Estado-Membro de residência que cabe, em princípio, atribuir ao contribuinte a totalidade dos benefícios fiscais inerentes à sua situação pessoal e familiar, dado que esse Estado é o mais bem colocado para apreciar a capacidade contributiva pessoal do sujeito passivo, na medida em que este tem os seus interesses pessoais e patrimoniais aí centralizados (18).

60.      A obrigação de tomar em conta a situação pessoal e familiar apenas pode pesar sobre o Estado-Membro de emprego quando o sujeito passivo obtém a quase totalidade ou a quase totalidade dos seus rendimentos tributáveis de uma atividade exercida nesse Estado e não aufere rendimentos significativos no seu Estado de residência, pelo que este não está em condições de lhe conceder os benefícios resultantes da tomada em consideração da sua situação pessoal e familiar (19).

61.      É à luz destes princípios que a compatibilidade da aplicação da regulamentação belga à situação em causa com a liberdade de estabelecimento deve ser analisada.

62.      No caso em apreço, os recorrentes foram objeto de uma tributação conjunta dos seus rendimentos na Bélgica, onde residem, estando os rendimentos auferidos na Alemanha exonerados, e o recorrente foi objeto de uma tributação individual dos rendimentos que auferiu na Alemanha, onde trabalha, nos termos da Convenção bilateral de 1967.

63.      Tanto na Alemanha como na Bélgica, foi tida em conta, pelo menos parcialmente, a situação pessoal e familiar dos recorrentes. O recorrente teve direito, nos termos da regulamentação fiscal alemã, a uma isenção por filhos a cargo («Freibetrag für Kinder»), sem, no entanto, ter podido beneficiar do regime do «Ehegattensplitting».

64.      O casal teve igualmente direito, ao abrigo da regulamentação fiscal belga, à isenção por filhos a cargo e a uma dedução por despesas com a guarda dos filhos, mas, em contrapartida, não beneficiou materialmente de uma isenção adicional, o «suplemento de isenção por filho a cargo», previsto no artigo 134.° do CIR 1992. Com efeito, a quota-parte de rendimento suplementar suscetível de ser isenta foi imputada nos rendimentos do recorrente auferidos na Alemanha, na medida em que eram os mais elevados do casal, mas os referidos rendimentos foram em seguida subtraídos da base tributável, dado que estavam exonerados nos termos da Convenção bilateral de 1967, pelo que, no final, nenhuma quota-parte de rendimento a título específico do suplemento por filho a cargo foi isenta.

65.      Por conseguinte, a regulamentação fiscal belga, mais exatamente, a conjugação do artigo 23.° da Convenção bilateral de 1967, que permite ao Reino da Bélgica tomar em consideração os rendimentos exonerados no cálculos do imposto, por um lado, com as regras de imputação do «suplemento de isenção por filho a cargo» estabelecidas pelo artigo 134.° do CIR 1992, por outro, prejudica os casais na situação dos recorrentes, que se caracteriza pela circunstância de a parte mais significativa dos seus rendimentos ser auferida num outro Estado-Membro, relativamente aos casais que auferem a totalidade ou a parte mais significativa dos seus rendimentos na Bélgica.

66.      Os recorrentes, enquanto casal, sofreram um prejuízo real na medida em que não beneficiaram da vantagem fiscal resultante da aplicação do «suplemento de isenção por filho a cargo» a que teriam tido direito se tivessem auferido a totalidade dos seus rendimentos na Bélgica ou, pelo menos, se os rendimentos auferidos pela recorrente na Bélgica tivessem sido superiores aos auferidos na Alemanha pelo recorrente.

67.      A regulamentação fiscal belga estabelece assim uma diferença de tratamento fiscal entre os casais de cidadãos da União residentes no território do Reino da Bélgica em função da origem e da importância dos seus rendimentos suscetível de produzir um efeito dissuasivo sobre o exercício, por estes últimos, das liberdades garantidas pelo Tratado, designadamente da liberdade de estabelecimento (20).

68.      Desde logo, a referida diferença é suscetível de dissuadir os nacionais desse Estado-Membro de exercerem o seu direito tanto à livre circulação como à liberdade de estabelecimento exercendo a sua atividade num outro Estado-Membro a título permanente, ao mesmo tempo que continuam a residir no primeiro Estado-Membro (21). É igualmente suscetível de dissuadir os nacionais dos outros Estados-Membros de exercerem, na qualidade de cidadãos da União, o seu direito à livre circulação estabelecendo a sua residência no referido Estado-Membro, designadamente para efeitos de reagrupamento familiar, ao mesmo tempo que continuam a exercer uma atividade a título permanente no Estado-Membro de que são nacionais (22).

69.      De uma maneira mais geral, a regulamentação fiscal belga comporta um entrave às liberdades garantidas aos cidadãos da União pelo Tratado, na medida em que não toma em consideração as situações transfronteiriças como a que está em causa nos processos principais e, portanto, não permite atenuar a aplicação dos efeitos negativos que pode ter no exercício das referidas liberdades.

70.      Como a Comissão salientou nas suas observações escritas, a regra da imputação do «suplemento de isenção por filho a cargo» à parte mais elevada dos rendimentos do casal tem, em princípio, por objetivo maximizar o efeito da vantagem em benefício do casal, no seu conjunto. No entanto, aplicada numa situação transfronteiriça como a que está em causa nos processos principais, a referida regra pode ter um efeito exatamente inverso em certas circunstâncias, concretamente porque o casal aufere rendimentos num outro Estado-Membro que correspondem à quota-parte mais elevada da totalidade dos seus rendimentos.

71.      Contrariamente ao que alegou o Governo belga, o entrave à liberdade de estabelecimento assim identificado não é, de modo nenhum, a consequência necessária da disparidade das regulamentações nacionais em causa nos processos principais.

72.      Com efeito, o casal constituído pelos recorrentes foi privado de uma parte das isenções previstas para os casais de residentes, devido ao exercício, por um deles, da sua liberdade de estabelecimento e apenas em razão das modalidades de imputação do «suplemento de isenção por filho a cargo» previstas pela regulamentação fiscal belga (23).

73.      O Governo belga também não pode alegar que a sua regulamentação fiscal não constitui um entrave à liberdade de estabelecimento, uma vez que o exercício, pelo recorrente, da sua liberdade de estabelecimento não agravou em nada a sua situação fiscal, pois, por um lado, não teve que pagar na Alemanha um imposto superior ao que teria pago na Bélgica e, por outro, a sua situação pessoal e familiar foi tida em consideração na Alemanha, pelo que o Reino da Bélgica está inteiramente livre de qualquer obrigação a este respeito.

74.      É verdade que, como resulta da exposição dos factos na origem dos processos principais, no caso vertente, o recorrente pôde beneficiar da tomada em consideração parcial da sua situação pessoal e familiar na Alemanha, através da atribuição do «Freibetrag für Kinder».

75.      No entanto, não se pode considerar que a atribuição deste benefício fiscal na Alemanha compensa, de algum modo, a perda do benefício fiscal sofrida pelos recorrentes na Bélgica. A atribuição do «Freibetrag für Kinder» constitui, de facto, uma circunstância puramente conjuntural que pode ser alterada em qualquer momento, podendo, designadamente, a República Federal da Alemanha suprimir o referido benefício ou reduzir o seu montante sem que isso modifique em nada as condições de atribuição do «suplemento de isenção por filho a cargo» na Bélgica. Ora, a compatibilidade da regulamentação fiscal belga com o direito da União não pode depender de tais circunstâncias.

76.      Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode ser justificado pela existência de outros benefícios fiscais (24). Mais exatamente, um Estado-Membro não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado-Membro, no caso vertente o Estado-Membro onde o recorrente trabalha e aufere a totalidade dos seus rendimentos, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, nomeadamente por força das disposições deste relativas à liberdade de estabelecimento (25).

77.      Ora, a regulamentação fiscal belga estabelece um benefício fiscal a favor dos casais, sob a forma, designadamente, de um «suplemento de isenção por filho a cargo», que é imputado nos rendimentos do membro do casal que aufere os rendimentos mais elevados, sem tomar de algum modo em consideração que este último pode, no exercício das liberdades garantidas pelo Tratado, não auferir rendimentos a título individual na Bélgica, com a consequência imediata e automática de o casal perder totalmente o referido benefício. É o caráter automático desta perda que, independentemente do tratamento fiscal reservado ao recorrente na Alemanha, infringe a liberdade de estabelecimento.

78.      Na medida em que um Estado-Membro tributa os rendimentos dos contribuintes residentes tendo em conta o facto de que constituem um casal, cabe-lhe em princípio, tomar em consideração toda a sua situação pessoal e familiar.

79.      Assim sendo, a circunstância de, no caso vertente, a situação pessoal e familiar do recorrente ter sido parcialmente tida em consideração na Alemanha a título da sua tributação individual e de, consequentemente, ter podido beneficiar de uma vantagem fiscal não pode exonerar o Reino da Bélgica da sua obrigação de garantir um tratamento idêntico a todos os seus residentes que se encontrem numa situação idêntica e de não manter restrições fiscais ao exercício, por estes últimos, das liberdades garantidas pelo Tratado, a menos que estas restrições sejam justificadas por razões imperiosas de interesse público e perfeitamente proporcionadas, questão que importa agora analisar.

VI — Quanto às justificações da restrição à liberdade de estabelecimento

A —    Resumo das observações

80.      Na sua resposta à questão colocada pelo Tribunal de Justiça, o Governo belga alegou que a sua regulamentação fiscal era, em qualquer caso, justificada pela necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros.

81.      O Governo estónio considera que a regulamentação fiscal belga tem por objetivo evitar que a situação pessoal e familiar do contribuinte seja simultaneamente tida em consideração em dois Estados-Membros e, consequentemente, conduza à atribuição indevida de um duplo benefício. Nesta perspetiva, alega que o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de os Estados-Membros se oporem à dupla dedução dos prejuízos (26).

B —    Análise

82.      Supondo que se possa admitir que os diferentes benefícios fiscais respetivamente atribuídos pelos dois Estados-Membros são equivalentes e que, no final de uma avaliação quantitativa comparada das circunstâncias do caso vertente, se possa concluir que os recorrentes obtiveram efetivamente um duplo benefício, em qualquer caso, esta circunstância é apenas o fruto da aplicação paralela das regulamentações fiscais belga e alemã, conforme acordada entre os dois Estados-Membros nos termos fixados pela Convenção bilateral de 1967 (27).

83.      Os referidos Estados exercem, de facto, as suas competências próprias no domínio da fiscalidade direta, prosseguindo objetivos similares de proteção da família.

84.      Além disso, a Convenção bilateral de 1967 não impõe ao Estado-Membro de emprego nenhuma obrigação relativa à tomada em consideração da situação pessoal e familiar dos contribuintes residentes num outro Estado-Membro, seja num sentido ou no outro (28).

85.      Nestas condições, não pode incumbir ao Tribunal de Justiça assegurar a coordenação das regulamentações fiscais nacionais a fim de evitar que um casal de contribuintes, em que os dois membros são tributados conjuntamente num Estado-Membro e um dos membros é igualmente tributado individualmente num outro Estado-Membro, beneficie de um duplo benefício fiscal resultante da tomada em consideração parcial, pelos dois Estados-Membros, da sua situação pessoal e familiar.

86.      De resto, cumpre salientar que a regulamentação fiscal belga não estabelece nenhuma correlação entre os benefícios fiscais que atribui aos seus residentes e os benefícios fiscais que lhes possam ser atribuídos num outro Estado-Membro. Os recorrentes não puderam beneficiar do «suplemento de isenção por filho a cargo» não por terem obtido um benefício equivalente na Alemanha, mas apenas porque esse benefício é neutralizado pelas suas regras de imputação.

87.      Aliás, o Reino da Bélgica salientou a este respeito que a circular de 2008, que é analisada como um mecanismo que estabelece essa correlação, não se aplica à situação do recorrente por este último não ter auferido rendimentos tributáveis na Bélgica.

88.      Por conseguinte, o artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação da regulamentação fiscal de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que tem por efeito privar um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos tanto no referido Estado como num outro Estado-Membro, de um benefício fiscal determinado, em razão das suas modalidades de imputação, quando este casal teria direito ao referido benefício se os seus membros auferissem a totalidade ou a maior parte dos seus rendimentos no seu Estado-Membro de residência.

VII — Conclusão

89.      Por conseguinte, proponho que o tribunal de Justiça responda à questão prejudicial apresentada pelo Tribunal de première instance de Liège nos seguintes termos:

«O artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação da regulamentação fiscal de um Estado-Membro, como a que está em causa nos processos principais, que tem por efeito privar um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos tanto no referido Estado como num outro Estado-Membro, de um benefício fiscal determinado, em razão das suas modalidades de imputação, quando este casal teria direito ao referido benefício se os seus membros auferissem a totalidade ou a maior parte dos seus rendimentos no seu Estado-Membro de residência.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      Moniteur belge de 30 de julho de 1969, a seguir «Convenção bilateral de 1967».


3 —      Moniteur belge de 30 de julho de 1992, a seguir «CIR 1992».


4 —      Que o órgão jurisdicional de reenvio definiu como o «método de exoneração com reserva de progressividade».


5 —      C-385/00, Colet., p. I-11819.


6 —      A seguir «circular de 2008».


7 —      Regime do «Ehegattensplitting».


8 —      Az. 4 K 4725/05.


9 —      Az. 1 B 96/07.


10 —      C-391/97, Colet., p. I-5451.


11 —      Este benefício era, em 2002 e 2003, de 5 808 euros por filho, sendo esse montante reduzido prorata temporis para o filho nascido durante o período da tributação.


12 —      Para um processo relativo a um advogado na Alemanha, v. acórdão de 7 de maio de 1991, Vlassopoulou (C-340/89, Colet., p. I-2357).


13 —      V., designadamente, acórdãos de 11 de março de 2004, De Lasteyrie du Saillant (C-9/02, Colet., p. I-2409, n.° 40), e de 21 de fevereiro de 2006, Ritter-Coulais (C-152/03, Colet., p. I-1711, n.° 19).


14 —      Como o Tribunal de Justiça reiteradamente afirmou, ainda que o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado o seu pedido de decisão prejudicial à interpretação da livre circulação dos trabalhadores, esta circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito comunitário que possam ser úteis para a apreciação do litígio que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional nacional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. V., designadamente, acórdãos Ritter-Coulais, já referido (n.° 29), e de 23 de abril de 2009, Rüffler (C-544/07, Colet., p. I-3389, n.° 57).


15 —      V., designadamente, acórdãos de 14 de fevereiro de 1995, Schumacker (C-279/93, Colet., p. I-225, n.° 21), e de 21 de fevereiro de 2013, A (C-123/11, n.° 29).


16 —      V., designadamente, acórdãos de 12 de maio de 1998, Gilly (C-336/96, Colet., p. I-2793, n.° 24); de Groot, já referido (n.° 93); de 16 de outubro de 2008, Renneberg, C-527/06, Colet., p. I-7735, n.° 48); e de 28 de fevereiro de 2013, Beker (C-168/11, n.° 32).


17 —      Acórdãos, já referidos, de Groot (n.° 94); Renneberg (n.os 50 e 51); e Beker (n.os 33 e 34).


18 —      V., designadamente, acórdãos Schumacker, já referido (n.° 36); de 16 de maio de 2000, Zurstrassen (C-87/99, Colet., p. I-3337, n.° 21); e Beker, já referido (n.° 43).


19 —      V., designadamente, acórdãos, já referidos, Schumacker (n.° 36); Gschwind (n.° 27); Zurstrassen (n.os 21 a 23); e de Groot (n.° 89).


20 —      V., no mesmo sentido, acórdão Beker, já referido (n.° 52).


21 —      V., designadamente, acórdão de 27 de junho de 1996, Asscher (C-107/94, Colet., p. I-3089, n.os 32 a 35).


22 —      V. acórdão Renneberg, já referido (n.os 35 e 36). V., igualmente, acórdãos de 9 de novembro de 2006, Turpeinen (C-520/04, Colet., p. I-10685, n.os 18 a 39), e Rüffler, já referido (n.os 55 e 56).


23 —      V., no mesmo sentido, acórdão de Groot, já referido (n.° 87).


24 —      V., designadamente, acórdãos de Groot, já referido (n.° 97), e de 18 de julho de 2007, Lakebrink e Peters-Lakebrink (C-182/06, Colet., p. I-6705, n.° 24).


25 —      V., designadamente, acórdãos de 8 de novembro de 2007, Amurta (C-379/05, Colet., p. I-9569, n.° 78); de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp e o. (C-11/07, Colet., p. I-6845, n.° 69); de 11 de setembro de 2008, Arens-Sikken (C-43/07, Colet., p. I-6887, n.° 66); e de 22 de abril de 2010, Mattner (C-510/08, Colet., p. I-3553, n.° 43).


26 —      V., designadamente, acórdão de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C-446/03, Colet., p. I-10837, n.° 47).


27 —      Sobre as consequências, à luz do direito da União, do exercício paralelo, pelos Estados-Membros, da sua competência fiscal, v., designadamente, acórdãos de 14 de novembro de 2006, Kerckhaert e Morres (C-513/04, Colet., p. I-10967, n.° 20); de 6 de dezembro de 2007, Columbus Container Services (C-298/05, Colet., p. I-10451, n.° 43); de 20 de maio de 2008, Orange European Smallcap Fund (C-194/06, Colet., p. I-3747, n.os 37 a 42 e 47); de 12 de fevereiro de 2009, Block (C-67/08, Colet., p. I-883, n.° 28); de 16 de julho de 2009, Damseaux (C-128/08, Colet., p. I-6823, n.° 27); e de 15 de abril de 2010, CIBA (C-96/08, Colet., p. I-2911, n.os 25 a 29).


28 —      V., a este respeito, acórdão de Groot, já referido (n.° 88).