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CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 10 de abril de 2014 (1)

Processo C-92/13

Gemeente ’s-Hertogenbosch

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«IVA — Operações tributáveis — Entrega efetuada a título oneroso — Primeira utilização por uma autoridade municipal de um edifício construído por sua conta e em terreno que lhe pertence — Atividades exercidas na qualidade de autoridade pública e na qualidade de sujeito passivo»





1.        Uma autoridade municipal (que, nos termos do artigo 4.°, n.° 5, da Sexta Diretiva do IVA (2), não deve ser considerada sujeito passivo relativamente a atividades ou operações que exerça na qualidade de autoridade pública) encomendou a construção de um edifício de escritórios num terreno que lhe pertencia. Foi cobrado IVA sobre os trabalhos de construção. O edifício é utilizado principalmente para as suas atividades enquanto autoridade pública, mas também para atividades económicas, tanto tributáveis como isentas de IVA. Por motivos aparentemente relacionados com a instituição de um fundo nacional de compensação do IVA que lhe permite libertar-se do encargo do imposto pago a montante, a autoridade municipal pretende que a sua primeira utilização do edifício seja equiparada a uma entrega efetuada a si própria («autoentrega»). A autoridade tributária discorda. O Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos) pretende saber se a equiparação a uma autoentrega tributável é compatível com a Sexta Diretiva.

 Quadro jurídico

 Sexta Diretiva

2.        Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da Sexta Diretiva «as entregas de bens e as prestações de serviços, efetuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade» estão sujeitas a IVA.

3.        O artigo 4.°, n.os 1 e 2, daquela diretiva define como sujeito passivo qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade. Tais atividades económicas incluem todas as atividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, bem como a «exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência».

4.        Nos termos do artigo 4.°, n.° 5, os Estados, as coletividades territoriais e outros organismos de direito público não serão considerados sujeitos passivos relativamente às atividades ou operações que exerçam na qualidade de autoridades públicas, mesmo quando em conexão com essas mesmas atividades ou operações cobrem direitos, taxas, quotizações ou remunerações. Contudo, devem ser considerados sujeitos passivos relativamente a tais atividades ou operações caso a não sujeição ao imposto possa conduzir a distorções de concorrência significativas. Também devem ser consideradas sujeitos passivos quando realizam qualquer uma das operações enumeradas (todas de natureza comercial ou económica) no Anexo D da Sexta Diretiva.

5.        O artigo 5.°, n.° 1, define a entrega de um bem como a «transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário». Nos termos do artigo 5.°, n.° 5, os Estados-Membros podem considerar a entrega de determinados trabalhos imobiliários como uma tal entrega. Nos termos do artigo 5.°, n.° 6, «a afetação, por um sujeito passivo, de bens da própria empresa a seu uso privado […] ou, em geral, a sua afetação a fins estranhos à empresa», também é equiparada a entrega efetuada a título oneroso sempre que tenha havido dedução total ou parcial do IVA pago a montante.

6.        O artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva dispõe que os Estados-Membros podem equiparar a entrega efetuada a título oneroso «a afetação, por um sujeito passivo, aos fins da própria empresa de um bem produzido, construído, extraído, transformado, comprado ou importado no âmbito da atividade de empresa, no caso de a aquisição de tal bem a outro sujeito passivo não conferir direito à dedução total do IVA».

7.        O artigo 6.°, n.° 1, da Sexta Diretiva define prestação de serviços como «qualquer prestação que não constitua uma entrega de bens na aceção do artigo 5.°». Nos termos do artigo 6.°, n.° 2, tal inclui «a utilização de bens afetos à empresa para uso privado do sujeito passivo ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado». O artigo 6.°, n.° 3, autoriza os Estados-Membros, em determinadas circunstâncias, a equiparar a uma prestação de serviços efetuada a título oneroso a execução, por um sujeito passivo, de um serviço, para os fins da própria empresa, sempre que a execução desse serviço, se efetuado por outro sujeito passivo, não confira direito à dedução total do IVA.

8.        As operações (fictícias) abrangidas pelos artigos 5.°, n.os 6 e 7, e 6.°, n.os 2 e 3, são, por vezes, identificadas como «autoentregas».

9.        Por força do artigo 11.°, A, n.° 1, alíneas b) e c), o valor tributável deve ser constituído, no caso das operações referidas nos n.os 6 e 7 do artigo 5.°, pelo preço de compra dos bens ou de bens similares ou, na falta de preço de compra, pelo preço de custo, determinados no momento em que tais operações se efetuam, e, no caso das operações referidas no n.° 2 do artigo 6.°, pelo montante das despesas suportadas pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços.

10.      Nos termos do artigo 17.°, n.° 1, o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível. O artigo 17.°, n.° 2, especifica que, desde que os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis, o sujeito passivo está autorizado a deduzir do imposto de que é devedor, designadamente o IVA devido ou pago em relação a bens que lhe tenham sido fornecidos ou que lhe devam ser fornecidos e a serviços que lhe tenham sido prestados ou que lhe devam ser prestados por outro sujeito passivo [artigo 17.°, n.° 2, alínea a)] e o IVA devido nos termos do n.° 7, alínea a), do artigo 5.° e do n.° 3 do artigo 6.° [artigo 17.°, n.° 2, alínea a)].

11.      No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo não só para operações que conferem um direito a dedução do IVA como para operações que não conferem esse direito, o artigo 17.°, n.° 5, estabelece que «a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações» (sendo as regras específicas definidas no artigo 19.°). Esta proporção deve ser determinada para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo. O artigo 20.° estipula que as deduções devem ser ajustadas quando necessário, sobretudo quando se verifique que foram superiores ou inferiores às deduções que o sujeito passivo tinha o direito de praticar, ou quando se verificarem posteriormente alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do seu montante. No que diz respeito aos bens de investimento, o ajustamento deve repartir-se por um período de cinco anos. Em relação aos bens [de investimento] imobiliários, esse período pode ser alargado até vinte anos (3).

 Jurisprudência relativa às autoentregas na aceção do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva

12.      No processo Gemeente Vlaardingen (4), em que uma autoridade municipal tinha contratado um empreiteiro externo para pavimentar artificialmente campos de jogos que lhe pertenciam (o «material fornecido») e que estavam revestidos de relva natural, o Tribunal de Justiça declarou, designadamente:

«25      O referido artigo 5.°, n.° 7, alínea a), dizia respeito a situações em que o mecanismo de dedução previsto, regra geral, pela Sexta Diretiva não se podia aplicar. Na medida em que os bens são utilizados para os fins de uma atividade económica tributada a jusante, impõe-se uma dedução do imposto que tenha incidido sobre esses bens a montante a fim de evitar uma dupla tributação. Quando, em contrapartida, bens adquiridos por um sujeito passivo forem utilizados para os fins de operações isentas, não poderá haver dedução do imposto que incidiu sobre esses bens a montante (v., designadamente, acórdãos de 30 de março de 2006, Uudenkaupungin kaupunki, C-184/04, Colet., p. I-3039, n.° 24; de 12 de fevereiro de 2009, Vereniging Noordelijke Land en Tuinbouw Organisatie, C-515/07, Colet., p. I-839, n.° 28; e de 16 de fevereiro de 2012, Eon Aset Menidjmunt, C-118/11, n.° 44). […] [O] artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva dizia nomeadamente respeito a essa hipótese em que, estando a atividade económica exercida a jusante isenta de IVA, se exclui uma dedução, a jusante, de uma quantia de IVA paga a montante.

26      Em particular, […] o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), [da Sexta Diretiva] permitia aos Estados-Membros organizar a sua legislação fiscal por forma a que as empresas que, por exercerem uma atividade económica isenta de IVA, estão na impossibilidade de deduzirem o IVA que pagaram na aquisição dos seus bens de empresa não sofressem uma desvantagem em relação aos seus concorrentes que exercem a mesma atividade por meio de bens que obtiveram sem pagamento de IVA produzindo esses bens elas próprias ou, de maneira mais geral, obtendo-os ‘no quadro da [sua] empresa’. Para que esses concorrentes estivessem submetidos à mesma carga fiscal das empresas que adquiriram os seus bens junto de terceiros, o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva dava a faculdade aos Estados-Membros de equipararem a afetação, aos fins do exercício das atividades isentas da empresa, de bens obtidos no quadro da empresa, a uma entrega de bens efetuada a título oneroso na aceção dos artigos 2.°, n.° 1, e 5.°, n.° 1, desta diretiva, e de submeter, portanto, a referida afetação ao IVA.

27      A fim de que essa faculdade […] possa ser exercida de uma maneira que elimine efetivamente qualquer desigualdade em matéria de IVA entre os sujeitos passivos que adquiriram os seus bens junto de outro sujeito passivo e os que os adquiriram no âmbito da sua empresa, cumpre […] compreender os termos ‘bem produzido, construído, extraído, transformado […] no âmbito da atividade de empresa’ no sentido de que não só abrangem os bens integralmente produzidos, construídos, extraídos e transformados pela própria empresa em causa mas também os produzidos, construídos, extraídos e transformados por terceiro por meio de materiais disponibilizados pela referida empresa.»

13.      O Tribunal de Justiça declarou que, nos termos dos artigos 5.°, n.° 7, alínea a), e 11.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Diretiva, lidos conjugadamente, «a afetação por um sujeito passivo, aos fins de uma atividade económica isenta de IVA, de campos de que é proprietário e que manda transformar por um terceiro pode ser objeto de tributação em sede de IVA que tem por base a soma do valor do terreno que suporta esses campos e dos custos de transformação destes, contanto que o referido sujeito passivo não tenha ainda liquidado o IVA relativo a esse valor ou a esses custos, e desde que os campos em causa não estejam abrangidos pela isenção prevista no artigo 13.°, B, alínea h), da referida diretiva» (relativa às «entregas de bens imóveis não construídos, com exceção das entregas de terrenos para construção»).

14.      O Tribunal de Justiça tinha declarado anteriormente, no n.° 33 do acórdão Uudenkaupungin kaupunki (5), em relação a atividades de uma autoridade local não excluída do âmbito de aplicação do IVA nos termos do artigo 4.°, n.° 5, da Sexta Diretiva, que «os artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, só poderiam ser aplicados no caso de reafetação do bem em questão a um uso privado e não no caso da reafetação desse bem a uma atividade isenta».

 Jurisprudência relativa à afetação de imóveis de utilização mista

15.      A jurisprudência constante do Tribunal de Justiça sobre a afetação de imóveis de utilização mista, para fins profissionais e privados, foi recentemente resumida no acórdão Van Laarhoven (6):

«25      […] o interessado, quando utilize um bem de investimento para fins quer profissionais quer privados, pode optar, para efeitos de IVA, por [i] afetar totalmente esse bem ao património da sua empresa ou [ii] conservá-lo totalmente no seu património particular, excluindo-o assim por completo do sistema do IVA, ou ainda [iii] integrá-lo na sua empresa apenas na parte correspondente à utilização profissional efetiva (v. acórdãos de 14 de julho de 2005, Charles e Charles-Tijmen, C-434/03, Colet., p. I-7037, n.° 23 e jurisprudência referida, e de 14 de setembro de 2006, Wollny, C-72/05, Colet., p. I-8297, n.° 21).

26      Se o sujeito passivo optar por tratar como bens empresariais os bens de investimento utilizados simultaneamente para fins profissionais e para fins privados, o IVA devido a montante sobre a aquisição desses bens é, em princípio, integral e imediatamente dedutível (v. acórdãos, já referidos, Charles e Charles-Tijmens, n.° 24, e Wollny, n.° 22) (7).

27      No entanto, nesse caso, o direito de deduzir integral e imediatamente o IVA pago no momento da aquisição desse bem origina a obrigação correspondente de pagar o IVA sobre a utilização privada dos bens empresariais (v. acórdãos Charles and Charles-Tijmens, n.° 30, e Wollny, n.° 24). Para o efeito, o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Diretiva equipara a utilização para fins privados a uma prestação de serviços efetuada a título oneroso, pelo que o sujeito passivo deve, nos termos do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea c) desta diretiva, pagar o IVA sobre o montante das despesas relacionadas com essa utilização (v. acórdão de 8 de maio de 2003, Seeling, C-269/00, Colet., p. I-4101, n.os 42 e 43)».

16.      A vantagem, para o sujeito passivo, de proceder desta forma, foi explicada da seguinte forma no n.° 74 das conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs no processo Charles and Charles-Tijmens:

«[…] mesmo estando esse seu consumo privado sujeito ao IVA, como o de qualquer outro consumidor privado, o sujeito passivo pode em certos casos obter vantagens fiscais da aplicação dos artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, pois, designadamente:

–        a dedução é imediata, ao passo que a tributação é diferida e repartida ao longo do período de utilização privada, proporcionando um possível benefício em termos de fundo de maneio;

–        o IVA é cobrado sobre o custo dos bens ou serviços utilizados, provavelmente menor do que o preço a que uma pessoa singular os poderia ter adquirido a outro empresário;

–        no caso dos bens de investimento, incluindo os imobiliários, o custo da prestação do «serviço» de utilização dos bens ou dos imóveis para o sujeito passivo (e, consequentemente, o imposto devido a jusante) pode ser especialmente baixo em relação ao custo da sua aquisição (e, por conseguinte, ao do valor do imposto a montante que é dedutível), pelo que o uso privado estará efetivamente sujeito a uma carga fiscal menos gravosa — vantagem suscetível de aumentar com a proporção de utilização privada».

17.      No entanto, no acórdão Vereniging Noordelijke Land- en Tuinbouw Organisatie (a seguir «VNLTO») (8), o Tribunal de Justiça declarou, no essencial, que os princípios que regem a opção de afetar bens de investimento ao património da empresa ou ao património privado (isto é, utilizá-los enquanto sujeito passivo ou enquanto particular) não podiam ser transpostos para uma situação em que um sujeito passivo exerce tanto atividades económicas abrangidas como atividades não económicas não abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA. Consequentemente, os artigos 6.°, n.° 2, alínea a), e 17.°, n.° 2, da Sexta Diretiva não eram aplicáveis à utilização de bens e de serviços afetos à empresa para os fins de operações diversas das operações tributáveis do sujeito passivo, dado que o IVA devido pela aquisição desses bens e desses serviços, relacionado com essas operações, não era dedutível.

18.      Diversamente da situação subjacente ao acórdão Charles e Charles-Tijmens, que dizia respeito a um «bem imobiliário afeto ao património da empresa antes de ser afeto, em parte, a uma utilização privada, por definição totalmente estranha à empresa do sujeito passivo», a situação subjacente ao acórdão VNLTO dizia respeito a «operações diferentes das operações tributáveis da VNLTO, que consistem em assumir a defesa dos interesses gerais dos membros desta e que não podem ser consideradas, no presente caso, estranhas à empresa, visto que constituem o objeto social principal dessa associação» (9).

 Direito neerlandês

19.      Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da Lei do Imposto sobre o Volume de Negócios (Wet op de Omzetbelasting; redação em vigor em 2002), constituem entregas de bens, designadamente:

«c)      a entrega de imóveis por aquele que os construiu, com exceção da entrega de terrenos não edificados que não sejam terrenos para construção […]

[…]

h)      a afetação aos fins da própria empresa de bens nela produzidos, nos casos em que, se os bens fossem adquiridos por um empresário, não haveria lugar a dedução, total ou parcial, do imposto que onera esses bens; são equiparados a bens produzidos na própria empresa os bens produzidos por encomenda com fornecimento de materiais, incluindo o terreno; são excluídos desta alínea os terrenos não construídos que não sejam terrenos para construção […]» (10).

20.      O artigo 11.°, n.° 1, alínea a), primeiro parágrafo, desta lei dispõe que estão isentas de IVA, por um lado, as entregas de bens imóveis e as transmissões de direitos sobre tais bens, excetuando as entregas de edifícios ou de partes de edifícios juntamente com o terreno em que foram construídos, efetuadas, o mais tardar, dois anos após a sua primeira utilização e, por outro, as entregas de terrenos para construção.

21.      Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento de execução da lei relativa ao imposto sobre o volume de negócios (Uitvoeringsbeschikking Omzetbelasting; redação em vigor em 2002), as autoridades públicas são consideradas sujeitos passivos em relação às entregas de bens imobiliários (11).

22.      A Lei relativa ao fundo de compensação do IVA (Wet op het BTW-compensatiefonds) entrou em vigor em 1 de janeiro de 2003. O artigo 2.° institui um fundo de compensação do IVA dentro do Ministério de Finanças. Nos termos do artigo 3.°, as entidades regidas pela lei pública têm direito a uma contribuição paga através desse fundo para financiar o imposto sobre o volume de negócios que lhes é cobrado sobre bens e serviços utilizados para fins estranhos à sua empresa. O artigo 13.°, n.° 1, alínea a), exclui do direito à contribuição as entregas efetuadas antes da entrada em vigor da lei.

 Matéria de facto, tramitação processual e questão prejudicial

23.      O Gemeente ’s-Hertogenbosch (a seguir «Gemeente») é um município e, como tal, nos termos do artigo 4.°, n.° 5, da Sexta Diretiva, não é considerado sujeito passivo em relação a atividades ou operações que exerce na qualidade de autoridade pública. No entanto, também exerce determinadas atividades e operações económicas, tanto tributáveis como isentas de IVA.

24.      Por conseguinte, tem, em princípio, o direito à dedução do imposto sobre os bens e serviços que adquiriu para os fins das suas atividades económicas tributáveis, mas não sobre os que adquiriu para os fins das atividades que exerceu enquanto autoridade pública nem para os fins das suas atividades económicas isentas.

25.      Em 2000, o Gemeente encomendou a construção de um edifício de escritórios num terreno que lhe pertencia (12). A sua declaração de IVA referente a julho de 2002 (antes da instituição do fundo de compensação do IVA) incluía o montante total de EUR 287 999 a título de IVA sobre os trabalhos de construção. O Gemeente ocupou o edifício pela primeira vez em 1 de abril de 2003 (após a instituição do fundo).

26.      A utilização do edifício pelo Gemeente estava fracionada do seguinte modo: 94% para a realização de atividades enquanto autoridade pública (fora do âmbito de aplicação do IVA e, por conseguinte, sem conferir o direito à dedução do imposto sobre o volume de negócios), 5% para a realização de atividades económicas tributáveis (sujeitas a IVA e conferindo o direito à dedução do imposto sobre o volume de negócios) e 1% para a realização de atividades económicas isentas (sujeitas a IVA e não conferindo o direito à dedução do imposto sobre o volume de negócios) (13).

27.      Resulta das observações do Gemeente que, inicialmente, tinha optado, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à afetação de imóveis de utilização mista (14), por afetar o edifício ao seu património da empresa, a fim de beneficiar de um direito à dedução total do IVA pago a montante durante a fase de construção. No entanto, concluiu posteriormente do acórdão VNLTO (15) que, neste caso, essa afetação não seria possível, pelo que abandonou essa abordagem.

28.      O Gemeente continua a querer deduzir a totalidade do imposto sobre o volume de negócios, no montante de EUR 287 999, relativo às prestações adquiridas em 2002, mas agora com fundamento, resumidamente, no facto de a primeira utilização do edifício, em 2003, ter constituído uma autoentrega tributável, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, alínea h), da Wet op de Omzetbelasting e com o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva; por conseguinte, o Gemeente alega que as prestações adquiridas a montante em 2002 foram adquiridas para efeitos de uma entrega tributável a jusante e conferiam um direito imediato à dedução total.

29.      A autoridade tributária discorda desta análise e considera que apenas podem ser deduzidos 6% do imposto sobre o volume de negócios cobrado em 2002, que correspondem à fração das atividades do Gemeente abrangida pelo âmbito de aplicação do IVA, pode ser deduzida.

30.      O Hoge Raad der Nederlanden, chamado a decidir o recurso, admite quatro interpretações possíveis da Sexta Diretiva (16), mas não tem a certeza qual delas será a correta. Consequentemente, pergunta ao Tribunal de Justiça:

«O artigo 5.°, n.° 7, proémio e alínea a), da Sexta Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que é considerada uma entrega a título oneroso a situação em que um município [ocupa pela primeira vez] um edifício que mandou construir num terreno propriedade sua e que utiliza a 94% para as atividades que exerce enquanto autoridade pública e a 6% para as atividades que exerce enquanto sujeito passivo, sendo 1% destas últimas atividades prestações isentas, a que não está associado qualquer direito à dedução?»

 Posições diversas

31.      Além da apreciação feita pelo próprio Hoge Raad der Nederlanden, conforme exposta no pedido de decisão prejudicial, foram apresentadas observações escritas pelo Gemeente, pelos Governos grego e neerlandês e pela Comissão, que também apresentaram alegações orais na audiência de 22 de janeiro de 2014.

32.      No essencial, são sugeridas duas linhas gerais de abordagem ao Tribunal de Justiça.

33.      A primeira (a que chamarei «abordagem da autoentrega», e que engloba três das abordagens admitidas pelo Hoge Raad der Nederlanden) parte do pressuposto de que a situação subjacente ao processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva. Esta premissa é partilhada pelos Governos grego e neerlandês e constitui a base das posições atualmente avançadas pelo Gemeente.

34.      A segunda abordagem (a que chamarei «abordagem da afetação») parte do pressuposto de que, em 2002, o Gemeente afetou o edifício ao seu património empresarial e ao seu património privado, determinando, assim, a posição subsequente do IVA, e de que o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), não se aplica. Tal abordagem é fortemente acolhida pela Comissão e parece ter sido a que o Gemeente inicialmente adotou. Pode, no entanto, não ser inteiramente independente da abordagem da autoentrega; nalgumas circunstâncias até é possível combinar as duas (v. n.° 39, infra).

35.      Nos termos da abordagem da autoentrega, deve considerar-se que o próprio Gemeente «produziu» o edifício (porque contribuiu com o terreno e com a fachada original do edifício concluído, adquirindo os restantes bens e serviços a terceiros) em 2002, e depois o «entregou» a si próprio no momento da primeira utilização em 2003, nos termos do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva.

36.      Na primeira variante dessa abordagem proposta pelo Hoge Raad der Nederlanden, 6% do IVA faturado sobre as entregas referentes a 2002 deveria ser dedutível, correspondente à utilização efetiva para fins empresariais. A autoentrega em 2003 deveria, assim, ser ignorada para efeitos da imposição e dedução do IVA, porque apenas dizia respeito à mesma proporção (irrelevante) da utilização do edifício para fins empresariais. Esta variante não é acolhida em nenhuma das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

37.      Na segunda das três variantes proposta pelo Hoge Raad der Nederlanden, o IVA faturado sobre as entregas referentes a 2002 deveria ser totalmente dedutível em virtude da sua utilização para uma operação tributável a jusante, nomeadamente a autoentrega em 2003, cujo IVA também deveria ser plenamente exigível. A seguir, o IVA sobre a autoentrega deveria ser dedutível em 5% (correspondente aos 5% de atividades económicas tributáveis), sendo os 95% remanescentes (correspondentes aos 94% de atividades enquanto autoridade pública, acrescidos do 1% de atividades económicas isentas) não dedutíveis. Esta é a atual posição do Gemeente. A Comissão também a admite como uma interpretação possível, mas não lhe dá preferência. No entanto, aos olhos da Comissão, se esta variante da abordagem da autoentrega for considerada correta, deve ser combinada com a abordagem da afetação, equiparando a utilização subsequente do edifício pelo Gemeente para os fins das suas atividades enquanto autoridade pública a uma utilização para fins estranhos à sua própria «empresa» na aceção da Sexta Diretiva e, assim, a uma entrega tributável efetuada a título oneroso, em conformidade com o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), desta diretiva.

38.      Na terceira variante do Hoge Raad der Nederlanden, a autoentrega em 2003 deve ser considerada uma entrega tributável apenas na proporção da utilização do edifício para fins empresariais, ou seja, 6%; por conseguinte, o imposto pago a montante sobre as entregas referentes a 2002 deve ser dedutível na mesma proporção. Esta variante corresponde, amplamente, às posições dos Governos grego e neerlandês.

39.      Segundo a abordagem da afetação, deve considerar-se que o Gemeente adquiriu os bens e serviços de 2002 a terceiros e os afetou (incluindo o edifício que os incorpora) ao seu património empresarial, dando lugar a um direito à dedução total do IVA pago a montante. Seguidamente, ao ter utilizado o edifício em 94% para fins em relação aos quais atuou como sujeito não passivo e, portanto, enquanto consumidor final, o Gemeente devia faturar a si próprio IVA não dedutível sobre os custos relacionados com a disponibilização do edifício para esses fins, nos termos do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Diretiva. No que diz respeito aos restantes 6% da dedução original, deveriam ser fracionados em 1%, a título de utilização para operações empresariais isentas, e 5%, a título de utilização para operações tributáveis. A Comissão considera, em alternativa, que esta abordagem deveria ser aplicada na sequência da autoentrega de 2003, nos termos do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), se se considerar que tal entrega teve efetivamente lugar (v. n.° 37, supra).

40.      A abordagem da afetação não é aceite, enquanto tal, pelo Hoge Raad der Nederlanden, que, não obstante, considera que o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), pode não ser, de todo, aplicável, pelo facto de não haver qualquer disposição que preveja um mecanismo de dedução para autoridades públicas relacionado com aquele artigo; se houvesse, a abordagem da afetação seria, naturalmente, admissível. Esta abordagem é, porém, a preferida da Comissão e corresponde, aparentemente, ao principal argumento inicial do Gemeente. A dificuldade — salientada, designadamente, pelo Governo neerlandês, mas reconhecida também pelo Gemeente — consiste em de saber se, no seguimento do acórdão VNLTO, é possível aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à afetação entre património empresarial e privado em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal. A Comissão considera que não existe essa dificuldade (17).

 Apreciação

 Importância do fundo de compensação do IVA

41.      Parece resultar das observações no presente caso que os motivos para o Gemeente defender a apreciação que atualmente defende estão relacionados com a criação do fundo de compensação do IVA, em 1 de janeiro de 2003. Enquanto um encargo de IVA não dedutível pago em 2003 era elegível para compensação através desse fundo, o mesmo não acontecia em relação a um encargo semelhante pago em 2002. Por conseguinte, parece ser do interesse do Gemeente que o IVA faturado sobre as entregas referentes a 2002 seja totalmente dedutível e que o IVA não dedutível lhe seja faturado apenas em 2003.

42.      Todavia, da informação constante dos autos não se podia inicialmente depreender com clareza até que ponto a existência do fundo de compensação do IVA podia ser relevante para a apreciação da questão prejudicial. Parecia possível que a compensação paga através desse fundo representasse o equivalente a uma dedução, o que provocava uma distorção do funcionamento do sistema comum do IVA.

43.      Esta dúvida foi amplamente dissipada na audiência. Do modo como agora compreendo a questão, o financiamento das autoridades locais pelo governo central nos Países Baixos é feito principalmente através do Gemeentefonds («fundo dos municípios»), ao qual as autoridades locais podem recorrer a fim de pagar as suas despesas, até a um limite determinado por certos critérios, incluindo a dimensão e a população [do respetivo município]. Até finais de 2002, os municípios recebiam contribuições de montante fixo através desse fundo em relação a todas as suas despesas, incluindo IVA, quando aplicável. O fundo de compensação do IVA foi separado do fundo dos municípios em 2003 — com a consequência de que o IVA é agora tratado separadamente das despesas isentas de IVA — de modo a assegurar que todo o IVA sobre prestações adquiridas para efeitos das atividades exercidas na qualidade de autoridade pública, que escapam inteiramente ao âmbito de aplicação do IVA, e apenas esse IVA, possa ser objeto de compensação. Esse sistema não constitui, conforme foi clarificado na audiência pelo Governo neerlandês e reforçado pela Comissão, uma medida fiscal mas sim orçamental, concebida tão-só para garantir o financiamento adequado das despesas das autoridades locais e para eliminar as distorções de custos entre serviços internos e externos.

44.      Se esse entendimento for correto, quer-me parecer que não é provável que o sistema do IVA sofra uma distorção entre uma situação em que o Gemeente estivesse autorizado a tratar as entregas de 2002 como encargos destinados a autoentregas tributáveis em 2003, e uma situação em que não estivesse. No primeiro caso, o IVA devido sobre essas entregas seria dedutível em 2002 e, portanto, não seria tido em conta para efeitos da compensação através do fundo dos municípios nesse ano, enquanto o IVA devido sobre a autoentrega poderia ser compensado através do fundo de compensação do IVA, em 2003. No segundo caso, os custos incluindo IVA seriam tidos em conta para calcular a compensação através do fundo dos municípios em 2002, e não seria devido IVA em 2003.

45.      Nestas circunstâncias, já não apreciarei a relevância do fundo de compensação do IVA e sugiro que o Tribunal de Justiça também não o faça. No entanto, caso o órgão jurisdicional nacional considere que o recurso ao fundo de compensação do IVA possa ter um efeito de distorção sobre o sistema do IVA, deveria ter esse efeito em conta e, se necessário, submeter uma nova questão ao Tribunal de Justiça a esse respeito.

 Resultado final

46.      O Gemeente foi tributado em IVA, em 2002, sobre bens e serviços que adquiriu com a finalidade de utilizar um edifício de escritórios, na proporção de 94% para atividades exercidas na qualidade de autoridade pública (que escapavam ao âmbito de aplicação do IVA e não conferem, por isso, um direito à dedução do imposto pago a montante), de 5% para atividades tributáveis (sujeitas a IVA e que conferem o direito à dedução do imposto pago a montante) e de 1% para atividades isentas (sujeitas a IVA e que não conferem um direito à dedução do imposto pago a montante).

47.      Em última análise, portanto, qualquer solução que seja compatível com o sistema previsto na Sexta Diretiva deve conferir um direito à dedução em relação aos 5% da utilização do edifício para fins tributáveis a jusante, mas não em relação à parte restante (18).

48.      O Hoge Raad der Nederlanden e todas as partes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça parecem concordar com este resultado final.

49.      A dificuldade está em determinar como obter esse resultado com base nas diversas disposições da Sexta Diretiva e na jurisprudência do Tribunal de Justiça que as interpreta, a respeito das quais não existe consenso.

 Relevância do acórdão VNLTO

50.      A primeira questão deverá ser, em minha opinião, saber se a abordagem da afetação é excluída pelo acórdão do Tribunal de Justiça no processo VNLTO (19). Em caso afirmativo, não é necessário examinar essa abordagem. Caso contrário, continua a ser necessário determinar se a abordagem da autoentrega é aplicável e, se assim for, analisar até que ponto as duas abordagens são compatíveis.

51.      Analisando o acórdão VNLTO, acho difícil discordar com o Gemeente e com o Governo neerlandês, segundo os quais o Tribunal de Justiça declarou efetivamente que, quando um sujeito passivo realiza, no quadro da sua empresa, tanto operações (tributáveis ou isentas) abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA como operações excluídas desse âmbito, a faculdade e o mecanismo referidos na jurisprudência relativamente à afetação de bens de investimento de utilização mista não se aplicam. Apesar de a fundamentação do acórdão poder ter sido mais completa e mais clara, parece seguir a apreciação, bastante mais completa, feita pelo Advogado-Geral P. Mengozzi nos n.os 20 a 57 das suas conclusões nesse processo. Concordo plenamente que a frase «uso privado […] ou […] para fins estranhos à própria empresa», no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Diretiva, obviamente não abrange o uso para fins ligados à própria empresa mas que não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do IVA.

52.      O acórdão VNLTO dizia respeito a uma associação de empresas agrícolas, financiada através das contribuições dos seus membros, que promovia os interesses do setor rural em diversas províncias dos Países Baixos. Essa atividade, em regra financiada por meio de contribuições em vez de taxas específicas, não era exercida a título oneroso e, assim, não caía no âmbito de aplicação do IVA. No entanto, a VNLTO também prestava serviços individuais aos seus membros e a terceiros, pelos quais emitia faturas e os quais constituíam entregas a título oneroso incluídas no âmbito de aplicação do IVA. A questão colocada ao Tribunal de Justiça era saber se o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Diretiva era aplicável à utilização, para os fins de operações excluídas do âmbito de aplicação do IVA, de bens e serviços adquiridos pela VNLTO e afetos à empresa. A resposta foi negativa. As operações em causa não podiam ser consideradas operações estranhas à empresa, «visto que constituem o objeto social principal dessa associação» (20).

53.      O presente caso diz respeito a um município que não deve ser considerado sujeito passivo em relação às atividades ou operações que exerce na qualidade de autoridade pública e que, por conseguinte, caem fora do âmbito de aplicação do IVA. Tais atividades parecem constituir o seu «objeto social principal». Além disso, presta serviços, tanto tributáveis como isentos, que estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do IVA e em relação aos quais é considerado sujeito passivo.

54.      Parece-me que o mesmo princípio se deve aplicar em ambos os casos.

55.      Não sou dissuadida desta opinião pelos argumentos da Comissão de que o processo VNLTO dizia respeito a serviços, enquanto o presente caso diz respeito a bens de investimento; que, no processo VNLTO, as atividades ou operações relevantes não estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA porque não havia uma contraprestação específica, enquanto no presente caso o motivo reside no facto de o Gemeente não ser considerado sujeito passivo; e que, no acórdão Uudenkaupungin kaupunki (21), o Tribunal de Justiça aceitou que as autoridades públicas dispunham da faculdade de afetar bens de investimentos de utilização mista ao património da empresa.

56.      Em primeiro lugar, a fundamentação e a decisão do Tribunal de Justiça no acórdão VNLTO diziam claramente respeito a «bens e serviços», e não encontro qualquer sugestão de que o conceito de «bens» apenas diga respeito a «bens que não sejam bens de investimento», enquanto o advogado-geral chegou à clara conclusão (22) de que o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Sexta Diretiva não se aplicava às circunstâncias daquele caso, mesmo estando em causa bens de investimento. Em segundo lugar, não considero que o motivo pelo qual as atividades ou operações caem fora do âmbito de aplicação do IVA possa ser relevante para determinar se constituem «fins estranhos à própria empresa»; o que importa, segundo o acórdão VNLTO, é saber se estão abrangidas pelo «objeto social principal» da empresa em causa. Por último, não encontro no acórdão Uudenkaupungin kaupunki qualquer indicação de que o Tribunal de Justiça subscrevesse a posição de que as autoridades públicas tinham a faculdade de afetar bens de investimentos de utilização mista ao património da empresa. O n.° 34 daquele acórdão, citado pela Comissão, está redigido em termos gerais e refere-se a uma objeção geral suscitada pelo Governo finlandês, ao passo que, no n.° 33, o Tribunal de Justiça declarou claramente que «os artigos 5.°, n.° 6, e 6.°, n.° 2, só poderiam ser aplicados no caso de reafetação do bem em questão a um uso privado e não no caso da reafetação desse bem a uma atividade isenta».

57.      Por conseguinte, sou da opinião que, nas circunstâncias do presente caso, o Gemeente não dispunha da faculdade de afetar o edifício de escritórios à sua atividade exercida na qualidade sujeito passivo, e de, posteriormente, equiparar a sua utilização para atividades realizadas na qualidade de autoridade pública a uma prestação de serviços a título oneroso tributável.

 Artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva

58.      De seguida, cabe apreciar se o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva é aplicável e, em caso afirmativo, com que efeito.

59.      Esta disposição oferece uma faculdade aos Estados-Membros. No entanto, concordo com o Governo neerlandês que, quando um Estado-Membro tiver usado essa faculdade — como é o caso dos Países Baixos — o regime do IVA em questão deve ser aplicado a todas as situações que preencham os critérios previstos naquela disposição, em conformidade com o modo como foram transpostos para a legislação nacional. A contrario senso, é evidente que não pode ser aplicado em circunstâncias que não preencham esses critérios.

60.      Considero que resulta da leitura do artigo 3.°, n.° 1, alínea h), da Wet op de Omzetbelasting à luz do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva e da jurisprudência relevante que, quando um sujeito passivo, cumulativamente i) produz bens no âmbito da sua empresa (ou fornece materiais, incluindo terrenos, para a produção de bens por encomenda) ii) utiliza os bens produzidos para os fins da sua empresa, e quando iii) o IVA sobre esses bens não teria sido totalmente dedutível se tivessem sido adquiridos a outro sujeito passivo, a sua utilização para os fins da empresa deve ser equiparada a uma entrega tributável.

61.      Esses três requisitos são cumulativos: se todos forem preenchidos, a utilização para os fins da empresa deve ser equiparada a uma entrega tributável; caso contrário, essa equiparação não é possível.

62.      Parece-me, prima facie, que esses requisitos estão preenchidos no caso do Gemeente. O edifício de escritórios foi construído por encomenda, tendo sido utilizados (designadamente) um terreno e uma fachada fornecidos pelo Gemeente — uma situação comparável à do acórdão Gemeente Vlaardingen. Também considero que o edifício construído no âmbito da atividade de empresa do Gemeente e utilizado para os fins dessa empresa; o significado de «atividade de empresa» no artigo 5.°, n.° 7, da Sexta Diretiva deve ser o mesmo que no artigo 6.°, n.° 2, num contexto paralelo de autoentrega. Além disso, como o edifício também foi utilizado para fins diversos das operações tributáveis, o IVA pago a montante não teria sido totalmente dedutível se tivesse sido adquirido a outro sujeito passivo.

63.      Seguidamente, levanta-se a questão de saber se essa primeira apreciação é invalidada pelo facto de apenas 6% da utilização do edifício se ter destinado aos fins das atividades de empresa do Gemeente enquanto sujeito passivo.

64.      Na minha opinião, não é. O artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva preocupava-se com a eliminação de distorções da concorrência originadas pelo facto de, no caso de o imposto pago a montante não ser totalmente dedutível, aqueles que produzissem os seus próprios bens terem uma vantagem sobre aqueles que tivessem de os adquirir a terceiros, a não ser que ambas as prestações fossem tributadas da mesma forma. Essa preocupação não depende de valores específicos. Assim, a medida da vantagem não é relevante. Em todo o caso, não podia ser avaliado em termos proporcionais: a vantagem representada por 6% de um elevado montante de IVA pode ser maior do que a representada por 94% de um montante inferior.

65.      Por conseguinte, parece-me que a tomada de posse pelo Gemeente do edifício de escritórios (independentemente do momento preciso em que a mesma teve lugar), no seguimento da sua construção com recurso a elementos fornecidos pelo Gemeente, deve ser equiparada a uma autoentrega tributável, conforme previsto no artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva.

66.      É, no entanto, essencial recordar que tal tratamento não tem qualquer relevância no caso de os bens serem simplesmente adquiridos, na sua totalidade, a outro sujeito passivo e de lhes ser dado determinado uso, qualquer que ele seja. No sistema comum do IVA, não há nenhum motivo imaginável que possa justificar que se comece por considerar a mesma prestação como uma aquisição (inteiramente tributável com dedução total do imposto pago a montante), para depois a considerar como uma autoentrega (inteiramente tributável e, consoante o caso, sem dedução ou com dedução parcial), em vez de uma entrega única inteiramente tributável e, consoante o caso, sem dedução ou com dedução parcial. Por conseguinte, se o regime fiscal em causa no processo principal apenas dissesse respeito às entregas de bens e às prestações de serviços realizadas por um ou mais operadores externos ao Gemeente, independentemente do facto de alguns elementos do edifício concluído terem sido disponibilizados pelo próprio Gemeente, não haveria lugar à aplicação do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva (23).

67.      Tal tratamento é adequado (e obrigatório) apenas se, e na medida em que, todos os requisitos previstos no artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva forem inteiramente preenchidos. Por conseguinte, não se pode aplicar unicamente às entregas de bens e às prestações de serviços realizadas pelos operadores externos ao Gemeente. A autoentrega deve abranger todas as entregas, incluindo o terreno e a fachada existente. Se assim não fosse, não haveria contribuição pelo Gemeente, e toda a operação seria tratada de acordo com o regime normal. Consequentemente, o montante do IVA de que o Gemeente deve ser considerado devedor em relação à autoentrega deve ser calculado com base no preço total de compra (ou, na falta de preço de compra, o preço de custo no momento da entrega) de cada elemento do terreno e do edifício, nos termos do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Diretiva — desde que o IVA já não tenha sido cobrado sobre esses elementos (24).

68.      Partindo do princípio de que o artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva pode e deve ser aplicado à entrega do edifício na sua totalidade, concordo com o Gemeente que deve efetivamente prevalecer a segunda variante daquela abordagem proposta pelo Hoge Raad der Nederlanden (v. n.° 37, supra), posição esta que também é aceite, mas não privilegiada pela Comissão.

69.      O artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva, visa «a afetação, por um sujeito passivo, aos fins da própria empresa» de, essencialmente, bens produzidos no âmbito da atividade de empresa. Nesse caso, a afetação pode (e, num Estado-Membro que exerceu a opção, deve) ser equiparada a uma entrega a título oneroso, na aceção do artigo 2.°, n.° 1, da mesma diretiva, e, por conseguinte, sujeita a IVA. A disposição não contempla a afetação de tais bens a fins parcialmente ligados à empresa do sujeito passivo e parcialmente excluídos do âmbito de aplicação do sistema do IVA, nem a equiparação dessa afetação a uma entrega efetuada parcialmente a título oneroso e parcialmente a título não oneroso. De facto, os fins para os quais um bem é utilizado não são, em princípio, relevantes para a questão de saber se a entrega é tributável ou não (apesar de serem relevantes para a questão de saber se há ou não um direito à dedução total do IVA cobrado sobre a entrega).

70.      Assim, se houver uma autoentrega do tipo previsto no artigo 5.°, n.° 7, alínea a), aquela entrega constitui necessariamente uma operação totalmente tributável, salvo se estiver total ou parcialmente abrangida por uma isenção do IVA.

71.      No presente caso, não há qualquer indício de uma isenção que se possa aplicar à autoentrega do edifício de escritórios.

72.      Assim sendo, essa autoentrega deve ser equiparada a uma operação a jusante inteiramente tributável, efetuada pelo Gemeente. Resulta daqui que todo e qualquer IVA pago a montante sobre bens adquiridos pelo Gemeente para efeitos daquela operação deve ser elegível para dedução nos termos do artigo 17.°, n.° 2, da Sexta Diretiva.

73.      No que diz respeito à própria autoentrega, o Gemeente será devedora do IVA sobre o valor total da operação. Seguidamente, nos termos do artigo 17.°, n.os 2 e 5, da Sexta Diretiva, pode deduzir o valor desse imposto pago a montante do imposto a jusante que declara às autoridades tributárias, na proporção em que o edifício for utilizado para as operações tributáveis do Gemeente (neste caso, em 5%). Para os restantes 95%, relativos ao uso para outras operações, não há direito à dedução.

74.      Resumindo, a interpretação que proponho produziria o seguinte resultado no presente caso. A primeira ocupação, pelo Gemeente, do seu edifício em 2003 deve ser equiparada a entrega a título oneroso e o valor tributável deve ser calculado, nos termos do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea b), da mesma diretiva, com base no valor total do bem, incluindo do terreno, desde que já não tenha sido cobrado IVA sobre este último. O Gemeente pode deduzir o IVA pago a montante sobre todos os bens ou serviços que adquiriu para esse fim, incluindo, se for caso disso, o terreno, quando pagar o IVA de que é devedor sobre essa entrega, que é equiparada a uma operação a título oneroso. Se utilizar o edifício para outras prestações de bens ou serviços no âmbito das suas atividades, apenas pode deduzir do imposto a jusante sobre essas prestações, nos termos do artigo 17.°, n.os 2 e 5, da Sexta Diretiva, a proporção do IVA de que é devedor sobre a entrega que é equiparada a uma operação a título oneroso, nos termos do artigo 5.°, n.° 7, alínea a), e que corresponde à utilização do edifício para operações tributáveis, designadamente 5% nas circunstâncias do processo principal.

 Conclusão

75.      À luz destas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões apresentadas pelo Hoge Raad der Nederlanden do seguinte modo:

«O artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que se aplica à situação em que um município ocupa pela primeira vez um edifício que mandou construir num terreno propriedade sua e que utilizará na proporção de 94% para as suas atividades enquanto autoridade pública e de 6% para as suas atividades enquanto sujeito passivo, 1% dos quais para atividades isentas relativamente às quais não existe um direito à dedução do IVA.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Diretiva»). A Sexta Diretiva estava em vigor à data dos factos no processo principal mas foi entretanto substituída, sem alteração material, pela Diretiva n.° 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO L 347, p. 1).


NT: O artigo 20.°, n.° 2, terceiro parágrafo, da Sexta Diretiva refere dez anos (e não vinte anos).


4 – Acórdão de 8 de novembro de 2012 (C-299/11).


5 – Referido no n.° 25 do acórdão Gemeente Vlaardingen, já referido no n.° 12, supra.


6 – Acórdão de 16 de fevereiro de 2012 (C-594/10). V. também acórdão de 23 de abril de 2009, Puffer, C-460/07, Colet.,I-3251, n.os 39 e segs.


7 –      Esta posição foi alterada pelo artigo 168.°-A, n.° 1, da Diretiva 2006/112, introduzido, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2011, pela Diretiva 2009/162/UE do Conselho, de 22 de dezembro de 2009, que altera diversas disposições da Diretiva 2006/112/CE (JO 2010 L 10, p. 14), nos termos do qual, nomeadamente: «No caso de bens imóveis integrados no património da empresa de um sujeito passivo e por este utilizados tanto para as atividades da empresa como para seu uso próprio ou do seu pessoal ou, de um modo geral, para fins alheios à empresa, o IVA que incide sobre as despesas relativas a esses bens imóveis é dedutível […] apenas na proporção da sua utilização para as atividades da empresa do sujeito passivo». Nos termos do artigo 168.°-A, n.° 2, os Estados-Membros podem aplicar a mesma regra a outros bens. Ratione temporis, porém, a nova legislação não tem qualquer efeito sobre o caso no processo principal.


8 – Citado no n.° 25 do acórdão Gemeente Vlaardingen (já referido no n.° 12, supra), n.os 26 a 40. V. também acórdão de 13 de março de 2008, Securenta (C-437/06, Colet., p. I-1597, n.os 26 a 31).


9 – N.° 39 do acórdão.


10 –      O artigo 3.° n.° 1, alínea h), é baseado no artigo 5.°, n.° 7, alínea a), da Sexta Diretiva.


11 – Por força do artigo 4.°, n.° 5, segundo parágrafo, da Sexta Diretiva.


12 – De acordo com o Gemeente, isto envolvia a demolição de um edifício existente, com exceção da respetiva fachada, seguido de uma nova construção por detrás dessa fachada.


13 – Aparentemente, o fracionamento tinha sido acordado entre o Gemeente e a autoridade tributária.


14 – V. n.° 15 das presentes conclusões.


15 – V. n.° 17 das presentes conclusões.


16 – V. n.os 35 a 38, infra.


17 – V. n.os 55 e segs., infra.


18 – V. também acórdão Securenta, já referido na nota 7, n.° 37.


19 – V. n.os 17 e 18, supra.


20 – Acórdão VNLTO, já referido no n.° 12, supra, n.° 39.


21 – Ibidem.


22 – V. n.° 57 das conclusões.


23 – V. também nota 10 das conclusões do advogado-geral J. Mazák no processo Gemeente Vlaardingen, já referido na nota 3, e, a contrario, n.° 27 do acórdão proferido nesse processo.


24 – V. acórdão Gemeente Vlaardingen, já referido na nota 3, n.os 30 e segs.