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CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

JULIANE KOKOTT

19 de dezembro de 2013 (1)

Processo C-107/13

«FIRIN» OOD

contra

Direktor na Direktsia «Obzhalvane i danachno-osiguritelna praktika» Veliko Tarnovo pri Tsentralno upravlenie na Natsionalnata agentsia za prihodite

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Veliko Tarnovo (Bulgária)]

«Fiscalidade — Imposto sobre o valor acrescentado — Diretiva 2006/112/CE — Dedução do imposto pago a montante — Regularização da dedução do imposto no caso de pagamentos por conta, quando a prestação não é cumprida»





I —    Introdução

1.        Foram novamente submetidas ao Tribunal de Justiça questões que se suscitaram à justiça búlgara no quadro da recusa da dedução do imposto, relacionada com uma presumível fraude ao IVA. A especificidade do presente caso consiste no facto de a dedução do imposto ter sido exercida com referência a um pagamento adiantado ao qual, porém, não se seguiu qualquer prestação.

2.        O Tribunal de Justiça, até ao momento, ainda não se debruçou sobre o destino da dedução do imposto, neste tipo de situação. Por isso, no presente caso importa não apenas atender, como é habitual, à jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça acerca da recusa da dedução do imposto em caso de fraude ao IVA - que é, por vezes, de difícil prova -, mas também dar resposta a uma questão interpretativa até ao momento não tratada, que tem importância geral no quadro do direito em matéria de IVA.

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

3.        O direito à dedução vem tratado no artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (2) (a seguir «diretiva IVA»):

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)       O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;».

4.        Nos termos do artigo 167.° da diretiva IVA, o direito à dedução surge «no momento em que o imposto dedutível se torna exigível». De acordo com o artigo 63.° da diretiva IVA, o imposto torna-se exigível «no momento em que é efetuada a entrega de bens ou a prestação de serviços». Contudo, o artigo 65.° contém a seguinte regra especial:

«Em caso de pagamentos por conta antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, o imposto torna-se exigível no momento da cobrança e incide sobre o montante recebido.»

5.        A diretiva IVA prevê, para determinados casos, a regularização do imposto exigível e do direito à dedução. A regularização do imposto exigível encontra-se regulada no artigo 90.°, n.° 1:

«1.       Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.»

6.        Nos termos do artigo 184.° da diretiva IVA, «[a] dedução inicialmente efetuada é objeto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito». O artigo 185.° da diretiva IVA prevê, a este propósito, o seguinte:

«1.       A regularização é efetuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.

2.       Em derrogação do disposto no n.° 1, não é efetuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afetações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.°

No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados-Membros podem, todavia, exigir a regularização.»

7.        A diretiva IVA contém ainda, nos artigos 192.°-A e segs., determinadas regras sob a epígrafe «Devedores do imposto perante o Fisco». Segundo a regra geral consagrada no artigo 193.°, o IVA é devido por sujeitos passivos «que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis […]».

8.        Neste contexto, o quadragésimo quarto considerando da diretiva IVA refere o seguinte:

«É necessário que os Estados-Membros possam aprovar disposições que prevejam que pessoas diferentes do devedor são solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto.»

9.        Por isso, o artigo 205.° da diretiva IVA menciona, complementarmente, o seguinte:

«Nas situações previstas nos artigos 193.° a 200.°, 202.°, 203.° e 204.°, os Estados-Membros podem prever que uma pessoa diversa do sujeito passivo seja solidariamente responsável pelo pagamento do IVA.»

B —    Direito interno

10.      Nos termos do artigo 177.° da lei búlgara do IVA (Zakon za danak varhu dobavenata stoynost, a seguir «ZDDS»), a pessoa registada que receber uma entrega sujeita a imposto é responsável pelo imposto devido e não pago por outra pessoa registada, desde que tenha sido exercido o direito à dedução do imposto pago a montante e que tal dedução tenha uma relação direta ou indireta com o imposto devido e não pago.

III — Processo principal e tramitação processual no Tribunal de Justiça

11.      O processo principal tem por objeto uma decisão da inspeção fiscal que negou à recorrente Firin OOD o direito de deduzir o imposto pago a montante indicado na fatura que lhe foi emitida pela Agra Plani EOOD (a seguir «Agra Plani»).

12.      Em 2010 foi celebrado entre ambas um contrato de compra e venda de 10 000 toneladas de trigo, apesar de a Agra Plani não estar autorizada, de acordo com o direito búlgaro, a exercer o comércio de cereais. A Agra Plani devia fornecer o trigo até 31 de dezembro de 2012, e a Firin devia pagar adiantadamente o preço da compra, no montante de 3 600 000 BGN (aproximadamente 1 800 000 euros). A Firin invocou, a este propósito, o seu direito à dedução do imposto pago a montante, depois de ter pago à Agra Plani 4 170 000 BGN.

13.      A Agra Plani transferiu de imediato este montante para a sociedade York Sky EOOD, pretensamente a título de mútuo, tendo esta, por seu turno, devolvido no mesmo dia 3 600 000 BGN à Firin, pretensamente a título de entrada de capital. Eram sócios da Firin a York Sky EOOD e uma pessoa singular, que por sua vez era sócio único da Agra Plani.

14.      Depois de ter constatado que a Agra Plani não pagou o IVA devido por força do contrato de compra e venda, não forneceu o trigo e, além disso, foi em abril de 2011 oficiosamente eliminada do registo de sujeito passivo do IVA, a administração tributária búlgara exigiu à Firin a entrega do imposto pago a montante no âmbito do contrato, que já fora deduzido. A administração tributária entende que o direito inicial à dedução do imposto pago a montante sobre um pagamento antecipado deixa de existir quando a prestação prometida não é, posteriormente, realizada. Parte, além do mais, do princípio de que estão em causa um negócio e um fluxo de dinheiro fictícios, pelo que a Firin sabia que o imposto sobre o valor acrescentado devido por força do contrato de compra e venda nunca seria pago.

15.      O Administrative sad Veliko Tarnovo, ao qual cabe decidir este litígio, cujo objeto é a recusa de direito à dedução do imposto pago a montante, submeteu entretanto ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 267.° do TFUE, as seguintes questões:

«1.       Em circunstâncias como as do processo principal, em que é imediata e efetivamente deduzido o imposto sobre o valor acrescentado relativo a um pagamento adiantado de um fornecimento futuro de bens sujeito a imposto claramente identificado, as disposições do artigo 168.°[, alínea a)], em conjugação com os artigos 65.°, 90.°, n.° 1, e 185.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretadas [conjuntamente] no sentido de que, tendo em conta que, por motivos objetivos e/ou subjetivos, a contraprestação principal prevista no contrato de fornecimento não foi realizada, o direito [à] dedução do imposto pago a montante deve ser negado na data em que foi exercido?

2.       Decorre desta interpretação [conjunta], e tendo em consideração o princípio da neutralidade fiscal do imposto sobre o valor acrescentado, que nesta situação é relevante [(ou irrelevante)] que [a] fornecedor[a] tenha […] a possibilidade objetiva de corrigir, nos termos e pelas formas previstos no direito nacional, o imposto sobre o valor acrescentado [e/]ou [o] respetiv[o] [valor tributável,] indicado[s] na fatura? Como afetaria essa correção a recusa da dedução inicial do imposto?

3.       O artigo 205.°, em conjugação com o artigo 168.°-A, com o artigo 193.° e também com o quadragésimo quarto considerando da Diretiva 2006/112, deve ser interpretado no sentido de que os Estados-Membros têm a faculdade de negar ao destinatário de uma entrega o direito [à] dedução do imposto pago a montante exclusivamente com base em critérios estabelecidos na legislação nacional segundo os quais a responsabilidade pelo pagamento do imposto é transferida para outra pessoa diferente do sujeito passivo, se o resultado final ao nível fiscal fosse diferente se se aplicassem estritamente apenas as demais regras fiscais desse Estado-Membro?

4.       Caso seja dada resposta afirmativa à terceira questão, disposições nacionais como as que estão em causa no processo principal são compatíveis com a aplicação do artigo 205.° da Diretiva 2006/112 e com os princípios da efetividade e da proporcionalidade, quando a responsabilidade solidária pelo pagamento do imposto sobre o valor acrescentado é estabelecida com base em presunções que não decorrem de quaisquer factos objetivos diretamente verificáveis, mas apenas de um instituto do direito das obrigações, que, no caso em litígio, será decidido definitivamente noutro processo?»

16.      No processo no Tribunal de Justiça, a administração tributária búlgara, a República da Bulgária, a República da Estónia, a República Italiana e a Comissão apresentaram observações escritas.

IV — Apreciação jurídica

17.      As quatro questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio incidem sobre duas áreas de regulamentação diferentes da diretiva IVA. Por um lado, a primeira, a segunda e a terceira questões prejudiciais têm por objeto a recusa do direito à dedução do imposto pago a montante e, em especial, os respetivos pressupostos, tais como previstos nos artigos 167.° e segs. e nos artigos 184.° e segs. da diretiva IVA. Por outro lado, a quarta e, em parte também, a terceira questões prejudiciais têm por objeto a responsabilidade solidária de um sujeito passivo pela dívida fiscal de outro, nos termos do artigo 205.° da diretiva IVA.

18.      Importa salientar que a questão da recusa do direito à dedução deve ser claramente autonomizada da questão da responsabilidade pela dívida fiscal de terceiro. É que dedução do imposto e responsabilidade estão sujeitos a pressupostos e a disposições distintas da diretiva IVA.

19.      Foi o próprio órgão jurisdicional de reenvio que referiu, no seu pedido de decisão prejudicial, que a administração tributária búlgara não invocou a responsabilidade solidária da recorrente pela dívida fiscal da Agra Plani, tendo-se limitado a recusar-lhe o direito à dedução do imposto pago a montante. Segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça pode recusar-se a conhecer de um pedido quando se verifique de forma manifesta que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com o objeto do litígio no processo principal (3). Neste sentido, as questões prejudiciais são inadmissíveis na parte em que se reportam à responsabilidade solidária de um sujeito passivo pela dívida fiscal de outro, uma vez que da fundamentação do pedido de decisão prejudicial não se extrai que estas questões relevem para o processo principal. Por conseguinte, não há que responder nem à quarta questão prejudicial nem à terceira questão prejudicial, na parte em que esta se refere à interpretação do artigo 205.° da diretiva IVA.

20.      No que tange ao direito à dedução do imposto, pretende o órgão jurisdicional de reenvio saber, através da suas primeiras três questões prejudiciais, se importa negar este direito no caso em que, verificando-se um pagamento por conta, nos termos do artigo 65.° da diretiva IVA, a prestação não é cumprida (v., infra, B), e se releva o facto de o fornecedor permanecer devedor do IVA que recai sobre a prestação não cumprida (v.,infra, C). Além disso, a fim de dar ao órgão jurisdicional de reenvio nacional uma resposta útil (4), irei começar por incidir, antes de mais, sobre a questão de saber em que circunstâncias surge o direito à dedução do imposto, no caso em que se verifica um pagamento por conta (v., infra, A).

A —    Surgimento do direito à dedução no caso de pagamentos por conta

21.      O direito à dedução surge, nos termos do artigo 167.° da diretiva IVA, logo que o imposto dedutível se torna exigível. Por conseguinte, o surgimento do direito à dedução controvertido no processo principal, invocado pela Firin com referência ao contrato de compra e venda celebrado com a Agra Plani, pressupõe a exigibilidade do imposto pelo Fisco relativamente à Agra Plani. Nos termos do artigo 63.° da diretiva IVA, esta exigibilidade verifica-se, em regra, apenas no momento da entrega dos bens - à qual a Agra Plani, contudo, não procedeu.

22.      Se, contudo, se verificar um pagamento por conta da operação tributável, então, nos termos do artigo 65.° da diretiva IVA, o imposto torna-se exigível no momento da cobrança, pelo sujeito passivo, do montante pago por conta, surgindo concomitantemente o direito à dedução. O pagamento por conta não tem de restringir-se a um pagamento parcial, podendo também - como sucede no caso em apreço - representar a contraprestação integral (5). Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a aplicação do artigo 65.° da diretiva IVA pressupõe, contudo, que todos os elementos pertinentes do facto gerador, isto é, da futura entrega dos bens ou da futura prestação de serviços, já sejam conhecidos e, por conseguinte, em particular, que, no momento do pagamento por conta, os bens ou os serviços sejam designados com precisão (6).

23.      Na fundamentação do pedido de decisão prejudicial parte-se do princípio de que, independentemente de procedimentos de pagamento posteriores, a contraprestação da fornecedora Agra Plani foi efetivamente disponibilizada, tendo-se, por conseguinte, verificado um pagamento por conta, na aceção do artigo 65.° da diretiva IVA. Além do mais, a primeira questão prejudicial, em especial, toma ainda como certo que se verificam, no presente caso, os pressupostos estabelecidos na citada jurisprudência, em matéria de designação precisa do fornecimento. O órgão jurisdicional de reenvio conclui, a partir daqui, que a Firin tem, em princípio, direito à dedução do imposto.

24.      Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio deve ter ainda em conta que o artigo 65.° da diretiva IVA também não pode ser aplicado se o cumprimento da prestação for incerto no momento em que o pagamento por conta é efetuado.

25.      Assim, por exemplo, o Tribunal de Justiça já rejeitou a aplicação desta disposição porque, entre outros, o comprador podia resolver unilateralmente o acordo a todo o momento (7). Atendendo a esta possibilidade de resolução, não era portanto certo que mais tarde se viesse efetivamente a verificar um fornecimento tributável.

26.      Acresce que o artigo 65.°, que constitui uma derrogação à regra enunciada no artigo 63.° da diretiva IVA, deve, enquanto tal, ser objeto de uma interpretação estrita (8). Com efeito, segundo o artigo 62.°, n.° 1, da diretiva IVA, é só através do facto gerador do imposto que são preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto pelo Fisco. Daqui decorre que o imposto se pode tornar exigível ao mesmo tempo ou depois da ocorrência do facto gerador, mas, em regra, não antes (9). Porém, o facto gerador do imposto que ora importa considerar, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da diretiva IVA, só se verifica com a entrega de bens. Ora se o artigo 65.° da diretiva IVA permite que, em caso de pagamentos por conta, o imposto se torne logo exigível, antes de estar verificado o facto gerador do imposto e, portanto, ainda antes de haver razão para a tributação, então também é de esperar que, no quadro da normal tramitação da operação, a prestação tributável seja efetivamente cumprida. Caso existam dúvidas concretas a este propósito, então o artigo 65.° da diretiva IVA não é aplicável.

27.      É possível que no processo principal se suscitem dúvidas deste tipo.

28.      É o que resulta, por um lado, do facto de o órgão jurisdicional de reenvio admitir, na fundamentação do pedido de decisão prejudicial, que o contrato de compra e venda possa ser «fictício». Ou seja, é possível que logo à partida nunca se tenha querido, de forma séria, proceder ao fornecimento do trigo.

29.      Por outro lado, importa ainda ter em consideração, neste contexto, que a Agra Plani não estava legalmente autorizada a fornecer o trigo, pelo que provavelmente o contrato de compra e venda é ineficaz. É certo que o princípio da neutralidade fiscal se opõe ao tratamento diferenciado de operações lícitas e de operações ilícitas (10). Mas a existência de uma proibição legal do fornecimento torna desde logo duvidoso, no momento do pagamento por conta, que o referido fornecimento venha alguma vez a verificar-se.

30.      Uma vez que estas duas questões se prendem com matéria de facto e interpretação do direito nacional, é ao órgão jurisdicional de reenvio que compete esclarecê-las, no âmbito do processo principal. Caso se constate que o artigo 65.° da diretiva IVA não é aplicável no presente caso, em virtude da existência de dúvidas concretas, no momento do pagamento por conta, acerca do futuro cumprimento da prestação, então, nos termos do artigo 167.°, em conjugação com o artigo 63.° da diretiva IVA, à data do pagamento por conta ainda não tinha surgido o direito à dedução. Contudo, para efeitos de resposta às questões prejudiciais irei seguidamente partir do princípio de que a Firin adquiriu o referido direito.

B —    Recusa do direito à dedução do imposto no caso de falta de cumprimento da prestação

31.      O órgão jurisdicional de reenvio, através da sua primeira questão, pretende saber se existe direito à dedução num caso em que se verifica um pagamento por conta, que dá azo à aplicação do artigo 65.° da diretiva IVA, mas em que posteriormente a entrega tributável acaba por não ser cumprida.

32.      Neste quadro, as partes chamaram a atenção para o facto de, segundo jurisprudência constante, caber às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o direito a dedução, se for provado, face a elementos objetivos, que esse direito é invocado de forma fraudulenta ou abusiva. É o que sucede quando uma fraude fiscal é cometida pelo próprio sujeito passivo ou quando este sabia ou devia saber que, através da sua aquisição, estava a participar numa operação que fazia parte de uma fraude ao IVA (11).

33.      Contudo, a questão de saber se o direito à dedução deve ser recusado em virtude de uma atuação fraudulenta, é antecedida, em termos lógicos, por outra, que consiste em determinar se tal direito realmente existe - ou seja, independentemente, de todo, da prévia demonstração de que se verificou uma qualquer fraude -, ao abrigo das regras gerais em vigor. Por isso, no presente caso importa começar por esclarecer se o direito à dedução deve ser regularizado, nos termos do artigo 184.° e seguintes, no caso em que a um pagamento por conta na aceção do artigo 65.° da diretiva IVA não se segue uma entrega de bens.

34.      Nos termos do artigo 185.°, n.° 1, da diretiva IVA, a regularização é efetuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções. Tal como já referi, com mais detalhe, no âmbito do processo TETS Haskovo, está nomeadamente em causa saber se as expetativas que estavam na origem do direito à dedução efetivamente se concretizaram em momento posterior (12).

35.      Tal como já se expôs (13), entre os elementos que, num caso como o presente, importa atender no âmbito do direito à dedução, quando se verifica um pagamento por conta nos termos do artigo 65.° da diretiva IVA, conta-se também a expetativa de que, no quadro da normal tramitação da operação, a prestação tributável seja efetivamente cumprida. Caso se constate que essa expetativa perdeu a razão de ser, por ser previsível que a prestação tributável não será cumprida, então alteraram-se os elementos de que depende o direito à dedução. Por conseguinte, importa, em princípio, regularizar o direito à dedução, nos termos do artigo 185.°, n.° 1, da diretiva IVA, se se deixar de poder contar com o cumprimento da prestação. Este é um aspeto que importa ao órgão jurisdicional de reenvio esclarecer, no âmbito do processo principal.

36.      O regime derrogatório contido no artigo 185.°, n.° 2, da diretiva IVA não obsta a esta regularização. Referem-se aí vários casos em que a regularização não é efetuada. Contudo, o caso da falta de cumprimento de uma prestação, em momento posterior ao da realização de um pagamento por conta, não se encontra aí enunciado.

37.      Nestes termos, em princípio importa responder à primeira questão prejudicial que, no caso de um pagamento por conta que implicou a aplicação do artigo 65.° da diretiva IVA, importa regularizar o direito à dedução se a prestação tributável não vier a ser cumprida.

C —    Relação com a correção da dívida fiscal

38.      Através da segunda e terceira questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pretende ainda saber, essencialmente, se, tendo em consideração o princípio da neutralidade fiscal, a regularização do direito à dedução depende da possibilidade objetiva da correção da dívida fiscal correspondente. É que se a dívida fiscal não for corrigida, apesar de o direito à dedução ser corrigido, então poderá o Fisco acabar por arrecadar mais do que aquilo que lhe pertenceria, se a operação decorresse normalmente.

39.      O princípio da neutralidade fiscal não apenas constitui uma específica emanação do princípio da igualdade no quadro do direito em matéria de IVA, como também se destina a libertar inteiramente o empresário, através do mecanismo de dedução, do encargo do IVA devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas (14). Poder-se-ia então entender existir, numa situação como aquela que ora se discute, uma oneração do sujeito passivo, contrária ao sistema, pelo facto de a fornecedora Agra Plani poder manter-se obrigada ao pagamento do IVA enquanto a sua parceira contratual Firin, não obstante ter efetuado um pagamento por conta, tem agora de proceder à regularização da dedução do imposto entretanto realizada.

40.      Neste sentido, importa ter em conta que numa situação como a presente existe uma dívida fiscal, por duas razões.

41.      Em primeiro lugar, tal como foi corretamente referido pelas partes, o fornecedor deve o IVA, por força do artigo 203.° da diretiva IVA, pelo facto de o ter mencionado na fatura. É certo que, segundo jurisprudência constante, o fornecedor pode, em determinadas condições, corrigir a dívida fiscal (15), não sendo essa correção excluída pelo simples facto de, no momento da correção, o emitente da fatura ter deixado de estar registado como sujeito passivo do IVA (16). Porém, enquanto não se verificar essa correção, a dívida fiscal persiste, enquanto a correspondente dedução do imposto deve, como se viu já, em princípio ser regularizada.

42.      Neste sentido, nos acórdãos Stroy trans e LVK o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou já que os operadores envolvidos numa determinada operação não têm necessariamente de ser tratados da mesma maneira, se o emitente da fatura não a tiver corrigido. Com efeito, o emitente da fatura é devedor do IVA nela mencionado, em conformidade com a regra contida no artigo 203.° da diretiva IVA, ainda que efetivamente não exista operação tributável, enquanto o destinatário da fatura não tem, num caso destes, direito à dedução (17).

43.      Em segundo lugar, no presente caso o fornecedor também deve o IVA ao abrigo do artigo 193.°, em conjugação com o artigo 65.° da diretiva IVA, por força do pagamento por conta. É certo que, em princípio, ao abrigo do artigo 90.° da diretiva IVA uma dívida fiscal do tipo ora em causa pode ser anulada, através da redução do valor tributável. Contudo, é duvidoso que isso possa suceder sem devolução do pagamento por conta. Isto porque se pode considerar que o Tribunal de Justiça entendeu, no acórdão Freemans (18), que uma redução do valor tributável pressupõe, em termos gerais, que os montantes pagos ao sujeito passivo sejam efetivamente devolvidos (19). Portanto, se o fornecedor não proceder à devolução do pagamento por conta, então a dívida fiscal - diferentemente do que sucede no artigo 203.° da diretiva IVA - já não poderá ser corrigida, apesar de simultaneamente se impor a regularização da dedução do imposto pago a montante.

44.      Sob este ponto de vista, importa ponderar dois aspetos diferentes.

45.      Comece-se por salientar que, segundo a jurisprudência, não merece em geral censura o facto de subsistir uma dívida fiscal, apesar de o correspondente direito à dedução do imposto pago a montante não poder ser invocado. Dentro desta linha, o Tribunal de Justiça decidiu, no acórdão Petroma Transports e o., que a exigibilidade do imposto não depende do exercício efetivo do direito à dedução do imposto pago a montante. Neste sentido, o IVA pode ser aplicado a determinadas operações, ainda que o direito à dedução correspondente não possa ser invocado, em virtude de erros formais nas faturas (20).

46.      Mas, para além disso, coloca-se ainda a questão de saber se uma regularização da dedução do imposto pressupõe, em especial no caso de um pagamento por conta, a devolução do mesmo. Por um lado, isto estaria em conformidade com os pressupostos, acima expostos, para a correção do valor tributável e, desta forma, da dívida fiscal. Por outro lado, evitaria que o titular do direito à dedução do imposto pago a montante sofresse, em caso de insolvência do seu fornecedor, um prejuízo equivalente à parte do pagamento por conta que corresponde à tributação.

47.      Independentemente de saber se as exigências do acórdão Freemans também se aplicam a um caso de pagamento por conta, o certo é que a correção do valor tributável, nos termos do artigo 90.° da diretiva IVA, e a regularização da dedução do imposto pago a montante, nos termos dos artigos 184.° e segs. da diretiva IVA, estão sujeitas a pressupostos distintos. Neste sentido, o Tribunal de Justiça partiu do princípio, no acórdão Freemans, de que, de acordo com a jurisprudência constante, o valor tributável definitivo é constituída pela contraprestação realmente recebida (21). Contudo, no que tange ao direito à dedução do imposto pago a montante, não existe um princípio comparável, que estabeleça uma conexão entre a dedução do imposto pago a montante e o efetivo cumprimento da contraprestação. É o que resulta, desde logo, do facto de o artigo 185.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da diretiva IVA, em princípio, prever a exclusão da regularização, no caso de operações total ou parcialmente por pagar. Neste caso, o sujeito passivo mantém o direito à dedução, apesar de nada ter pago.

48.      Além disso, tampouco resulta do princípio da neutralidade fiscal a necessidade de, no caso de um pagamento por conta, não se regularizar o direito à dedução enquanto esse pagamento por conta não for devolvido. O Tribunal de Justiça já decidiu que, por regra, é compatível com o referido princípio um regime em que o destinatário de um serviço apenas dispõe de uma pretensão civil para repetição do indevido em relação ao seu parceiro contratual, como forma de salvaguarda dos seus interesses financeiros (22).

49.      No entanto, o caso do acórdão Reemtsma Cigarettenfabriken, em que o Tribunal de Justiça reconheceu ao destinatário de um serviço, no caso de insolvência do seu parceiro contratual, o direito de requerer diretamente ao Fisco o reembolso do IVA pago indevidamente, não é comparável ao presente caso, em que o Fisco não chegou a arrecadar qualquer IVA. Nesta linha, a República Italiana salientou, com razão, que no presente caso, através da recusa da dedução do imposto com simultânea falta de pagamento da dívida fiscal, só se consegue evitar a verificação de um prejuízo na esfera do Fisco, mas não a cobrança de IVA em termos que contrariam o respetivo regime. O facto de, em vez disso, no caso vertente se gerar esse prejuízo na esfera do potencial destinatário de uma prestação, que pode eventualmente ficar sem receber de volta o pagamento por conta que efetuou, justifica-se pelo facto de o destinatário dispor de autonomia na escolha do seu parceiro contratuais e, por conseguinte, correr conscientemente o risco inerente à realização de um pagamento por conta.

50.      Em conclusão, é de responder à segunda e à terceira questões do órgão jurisdicional de reenvio que a regularização do direito à dedução não depende da correção da dívida fiscal correspondente, nem da devolução do pagamento por conta.

V —    Conclusão

51.      Pelo exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais que lhe foram submetidas pelo Administrativen sad Veliko Tarnovo nos seguintes termos:

1.       Constitui pressuposto para a exigibilidade do imposto, nos termos do artigo 65.° da diretiva IVA, a expetativa de que, no quadro da normal tramitação da operação, a prestação tributável seja efetivamente cumprida.

2.       Nos termos do artigo 185.°, n.° 1, da diretiva IVA, no caso de um pagamento por conta na aceção do artigo 65.° da diretiva IVA, importa regularizar o direito à dedução se a prestação tributável não vier a ser cumprida. A regularização da dedução do imposto não depende da correção da dívida fiscal correspondente, nem da devolução do pagamento por conta.


1 —      Língua original: alemão.


2 —      JO L 347, p. 1.


3 —      Acórdão de 11 de abril de 2013, Della Rocca (C-290/12, n.° 29 e jurisprudência aí referida).


4 —      Cf., a propósito deste poder do Tribunal de Justiça e a título de mero exemplo, acórdãos de 20 de março de 1986, Tissier (35/85, Colet., p. 1207, n.° 9), e de 30 de maio de 2013, Worten (C-342/12, n.° 30).


5 —      Acórdãos de 19 de dezembro de 2012, Orfey (C-549/11, n.° 37), e de 7 de março de 2013, Efir (C-19/12, n.° 39).


6 —      Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (C-419/02, Colet., p. I-1685, n.° 48), de 16 de dezembro de 2010, MacDonald Resorts (C-270/09, Colet., p. I-13179, n.° 31), e de 3 de maio de 2012, Lebara (C-520/10, n.° 26), bem como ainda acórdãos Orfey (já referido na nota 5, n.° 28) e Efir (já referido na nota 5, n.° 32).


7 —      Cf. acórdão BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (já referido na nota 6, n.° 51).


8 —      Acórdãos BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (já referido na nota 6, n.° 45), Orfey (já referido na nota 5, n.° 27) e Efir (já referido na nota 5, n.° 32).


9 —      Acórdão BUPA Hospitals e Goldsborough Developments (já referido na nota 6, n.° 46).


10 —      V., a título de mero exemplo, os acórdãos de 11 de junho de 1998, Fischer (C-283/95, Colet., p. I-3369, n.° 22), e de 7 de março de 2013, GfBk (C-275/11, n.° 32).


11 —      V., a título de mero exemplo, acórdão de 18 de julho de 2013, Evita-K (C-78/12, n.os 39 e segs. e jurisprudência aí referida).


12 —      Cf. as conclusões de 14 de junho de 2012 no processo TETS Haskovo (C-234/11, n.os 25 a 28).


13 —      V., supra, n.os 24 e segs.


14 —      Cf. acórdão de 15 de novembro de 2012, Zimmermann (C-174/11, n.os 46 a 48 e jurisprudência aí referida).


15 —      Cf., a título de mero exemplo, acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C-138/12, n.os 25 a 27 e jurisprudência aí referida).


16 —      Acórdão de 31 de janeiro de 2013, LVK (C-643/11, n.° 49).


17 —      Acórdão de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C-642/11, n.os 41 e segs.), e acórdão LVK (já referido na nota 16, n.os 46 e segs.).


18 —      Decidiu neste sentido o Bundesfinanzhof, no acórdão de 2 de setembro de 2010, V R 34/09, n.° 17, com referência ao acórdão do mesmo órgão jurisdicional de 18 de setembro de 2008, V R 56/06, n.os 43 e segs.


19 —      Cf. acórdão de 29 de maio de 2001, Freemans (C-86/99, Colet., p. I-4167, n.° 35).


20 —      Cf. acórdão de 8 de maio de 2013, Petroma Transports e o. (C-271/12, n.os 41 a 43).


21 —      Cf. acórdão Freemans (já referido na nota 19, n.° 27).


22 —      Cf. acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C-35/05, Colet., p. I-2425, n.° 39).