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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 28 de junho de 2017 ( 1 )

Processo C-262/16

Shields & Sons Partnership

contra

The Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs

[pedido de decisão prejudicial do Upper Tribunal (Tax and Chancery Chamber) [Tribunal Superior, Secção Tributária e da Chancelaria (Reino Unido)]]

«Reenvio prejudicial — Tributação — Imposto sobre o valor acrescentado — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 296.o, n.o 2, e artigo 299. — Regime comum forfetário dos produtores agrícolas — Exclusão de produtores agrícolas do regime — Requisitos»

Introdução

1.

A aplicação do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) implica a sujeição dos contribuintes a um certo número de obrigações administrativas. O cumprimento de tais obrigações pode ser excessivamente oneroso para alguns desses contribuintes, especialmente se se dedicam a uma atividade económica de pequena escala. Assim, nas disposições relativas ao IVA foram estabelecidas regras simplificadas a determinadas categorias de contribuintes. Isto diz respeito, entre outros, aos produtores agrícolas, para os quais está previsto um regime forfetário. A aplicação desse regime é facultativa para os Estados-Membros. Porém, caso decidam implementá-lo, não dispõem de um poder discricionário absoluto quanto à sua forma. No presente caso, o Tribunal de Justiça terá a oportunidade de clarificar os princípios fundamentais nesta matéria.

Quadro jurídico

Direito da União

2.

De acordo com o artigo 296.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado ( 2 ):

«1.   Os Estados-Membros podem aplicar aos produtores agrícolas em relação aos quais seja difícil aplicar o regime normal do IVA ou, se for o caso, o regime especial previsto no capítulo 1 um regime forfetário destinado a compensar a carga do IVA pago relativamente às aquisições de bens e de serviços efetuadas pelos agricultores sujeitos ao regime forfetário em conformidade com o presente capítulo.

2.   Os Estados-Membros podem excluir do regime forfetário certas categorias de produtores agrícolas e bem assim os produtores agrícolas relativamente aos quais a aplicação do regime normal do IVA ou, se for o caso, das regras simplificadas previstas no artigo 281.o não apresente dificuldades de ordem administrativa.

[…]»

3.

O primeiro parágrafo do artigo 297.o da Diretiva 2006/112 dispõe o seguinte:

«Os Estados-Membros estabelecem, se necessário, as percentagens forfetárias de compensação. Os Estados-Membros podem estabelecer percentagens forfetárias de compensação diferenciadas para a silvicultura, para os diversos subsetores da agricultura e para as pescas.»

4.

O primeiro parágrafo do artigo 298.o dessa diretiva estabelece o seguinte:

«As percentagens forfetárias de compensação são determinadas com base nos dados macroeconómicos relativos apenas aos agricultores sujeitos ao regime forfetário nos últimos três anos.»

5.

Por último, o artigo 299.o da Diretiva 2006/112 prevê o seguinte:

«As percentagens forfetárias de compensação não podem ter por efeito que os agricultores sujeitos ao regime forfetário recebam reembolsos superiores à carga fiscal do IVA a montante.»

Direito do Reino Unido

6.

No Reino Unido, o regime comum forfetário dos produtores agrícolas foi introduzido pela section 54 do Value Added Tax Act 1994 (Lei de 1994 relativa ao imposto sobre o valor acrescentado). A Value Added Tax (Flat rate Scheme for Farmers) (Percentage Addition) Order 1992 [Portaria de 1992 relativa ao imposto sobre o valor acrescentado (regime forfetário para produtores agrícolas) (percentagem adicional)], SI 1992/3221, fixa em 4% a percentagem relevante para o regime forfetário. Esta percentagem aplica-se a todos os produtores agrícolas que participam no regime forfetário. A Regulation 206 das Value Added Tax Regulations 1995 (Regulamento de 1995 relativo ao imposto sobre o valor acrescentado), compreendida na parte XXIV desse regulamento e adotada em aplicação da section 54 do Value Added Tax Act 1994, prevê as circunstâncias em que os Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs (Autoridade Tributária e Aduaneira, Reino Unido) podem revogar o certificado que autoriza a participação de uma exploração agrícola no regime forfetário. Essas circunstâncias incluem as situações em que as autoridades tributárias reconhecem a necessidade de revogar um certificado a fim de proteger a receita orçamental.

7.

A autoridade tributária do Reino Unido publica informações destinadas aos contribuintes sobre a interpretação das disposições relativas ao IVA [a seguir «Vat Notices» (circulares sobre o IVA)]. De acordo com os elementos contidos no pedido de decisão prejudicial, essas circulares não têm força vinculativa mas, na prática, as autoridades tributárias invocam-nas nas suas relações com os contribuintes. Na decisão em causa no processo principal, as autoridades tributárias invocaram a VAT Notice 700/46, relativa ao regime comum forfetário dos produtores agrícolas. Segundo o ponto 7.2 dessa circular, um produtor agrícola deve abandonar o regime caso «se tenha constatado que recupera um montante substancialmente mais elevado como participante no regime forfetário do que se estivesse sujeito ao regime normal do IVA».

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

8.

A sociedade Shields & Sons Partnership (a seguir «Shields & Sons») explora uma propriedade agrícola em Castlewellan (Reino Unido). A atividade económica desenvolvida nessa exploração agrícola é a criação de gado, estando, por conseguinte, abrangida pelo regime comum forfetário dos produtores agrícolas no Reino Unido.

9.

A Shields & Sons tem estado abrangida pelo regime comum forfetário dos produtores agrícolas desde o exercício fiscal de 2004-2005. Nesse exercício, o reembolso recebido pela Shields & Sons a título de compensação forfetária correspondeu, em princípio, ao montante do IVA que essa sociedade teria direito a receber na qualidade de contribuinte que exerce a sua atividade ao abrigo do regime normal. Nos exercícios subsequentes, porém, esses montantes começaram a divergir significativamente, de tal modo que o excedente acumulado da compensação relativa aos exercícios fiscais de 2004-2005 a 2011-2012 ascendeu a 374884,23 libras esterlinas (GBP) ( 3 ).

10.

Nessas circunstâncias, as autoridades tributárias, por decisão de 15 de outubro de 2012, revogaram o certificado que autorizava a Shields & Sons a participar no regime forfetário dos produtores agrícolas, invocando o facto de se ter constatado que essa sociedade recuperava, como produtor agrícola participante no regime forfetário, um montante substancialmente mais elevado do que aquele que teria recuperado se estivesse sujeita ao regime normal do IVA. Essa decisão foi confirmada por ofício de 21 de dezembro de 2012.

11.

Por decisão de 8 de outubro de 2014, o First-tier Tribunal (Tax Chamber) [Tribunal de Primeira Instância (Secção Tributária), Reino Unido] negou provimento à reclamação apresentada contra essa decisão pela Shields & Sons. Essa sociedade interpôs um recurso dessa decisão no Upper Tribunal (Tax and Chancery Chamber) [Tribunal Superior, Secção Tributária e da Chancelaria (Reino Unido)], o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

12.

Segundo esse órgão jurisdicional, as partes no processo principal discordam quanto à correta interpretação das disposições da Diretiva 2006/112 relativas ao regime comum forfetário dos produtores agrícolas. Nessas circunstâncias, o Upper Tribunal (Tax and Chancery Chamber) (Tribunal Superior, Secção Tributária e da Chancelaria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

No contexto do regime comum forfetário para produtores agrícolas estabelecido pelo capítulo 2 do título XII da [Diretiva 2006/112], deve o artigo 296.o, n.o 2, [dessa diretiva] ser interpretado no sentido de que regula de forma exaustiva os casos em que um Estado-Membro pode excluir um produtor agrícola do referido regime? Em especial:

1.1

Um Estado-Membro só pode excluir produtores agrícolas do regime comum forfetário nos casos previstos no artigo 296.o, n.o 2 [da Diretiva 2006/112]?

1.2

Um Estado-Membro pode também invocar o artigo 299.o [dessa diretiva] para excluir um produtor agrícola do regime comum forfetário?

1.3

O princípio da neutralidade fiscal confere a um Estado-Membro o direito de excluir um produtor agrícola do regime comum forfetário para produtores agrícolas?

1.4

Os Estados-Membros têm o direito de excluir os produtores agrícolas do regime comum forfetário para produtores agrícolas com quaisquer outros fundamentos?

2.

Como deve ser interpretada a expressão “categorias de produtores agrícolas”que figura no artigo 296.o, n.o 2, da [Diretiva 2006/112]? Em especial:

2.1

Deve uma categoria relevante de produtores agrícolas poder ser identificada por referência a características objetivas?

2.2

Pode uma categoria relevante de produtores agrícolas ser identificada por referência a fatores de natureza económica?

2.3

Que nível de precisão é exigido na identificação de uma categoria de produtores agrícolas que um Estado-Membro se propôs excluir?

2.4

A expressão em causa habilita um Estado-Membro a definir como categoria relevante os “produtores agrícolas relativamente aos quais se tenha constatado que recuperam um montante substancialmente mais elevado enquanto participantes no regime forfetário do que se estivessem sujeitos ao IVA”?»

13.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de maio de 2016. Foram apresentadas observações escritas pela Shields & Sons, pelo Governo francês, pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão Europeia. A Shields & Sons, o Governo do Reino Unido e a Comissão estiveram representados na audiência de 15 de março de 2017.

Análise

14.

Ao submeter as questões prejudiciais no presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende essencialmente determinar se (e, em caso afirmativo, com que fundamento) um Estado-Membro pode excluir do regime comum forfetário um produtor agrícola que, enquanto participante nesse regime, recebe a título de compensação forfetária um montante substancialmente mais elevado do que o montante do IVA que poderia recuperar se estivesse sujeito ao regime normal. Iniciarei a minha análise das questões prejudiciais com uma breve síntese das características do regime comum forfetário dos produtores agrícolas.

Regime comum forfetário dos produtores agrícolas

15.

Regra geral, excetuados determinados tipos de atividades que beneficiam de isenção, todas as transações efetuadas pelos contribuintes no âmbito das suas atividades económicas estão sujeitas ao IVA. Porém, a cobrança desse imposto impõe um conjunto de obrigações administrativas aos contribuintes, designadamente, no domínio da contabilidade. Isso é necessário para assegurar o correto funcionamento do sistema do IVA, uma vez que esse imposto assenta em grande medida em registos e controlos de obrigações fiscais que são efetuados pelos próprios contribuintes. Por esse motivo, todavia, certas categorias de operadores económicos, em especial aqueles cuja atividade é de pequena escala, não estão em condições de cumprir todas as obrigações administrativas e/ou consideram que tais obrigações lhes impõem dificuldades consideráveis. Por essa razão, a Diretiva 2006/112 prevê regimes simplificados em sede de IVA.

16.

Os produtores agrícolas encontram-se entre os contribuintes para os quais estão previstos tais regimes simplificados. A Diretiva 2006/112 estabelece, nos seus artigos 295.o a 305.o, um regime comum forfetário dos produtores agrícolas. Resumidamente, ao abrigo desse regime, um produtor agrícola (designado por «agricultor sujeito ao regime forfetário», nos termos do artigo 295.o, n.o 1, ponto 3, da Diretiva 2006/112) não está obrigado a pagar o IVA devido ao orçamento do Estado e não tem o direito de deduzir o imposto cobrado pela aquisição dos bens e serviços necessários à prossecução das suas atividades. No entanto, dependendo da solução adotada em cada Estado-Membro, poderá incluir no preço dos seus próprios fornecimentos de bens e serviços a outros contribuintes uma compensação forfetária cuja percentagem é fixada pelo Estado-Membro em conformidade com o artigo 297.o da Diretiva 2006/112. No Reino Unido, essa percentagem é de 4%. Os adquirentes de tais bens e serviços tratam essa compensação forfetária como IVA a montante e têm o direito de a deduzir ao imposto de que são devedores. A compensação pode também ser paga diretamente pelo orçamento do Estado aos agricultores sujeitos ao regime forfetário.

17.

O regime comum forfetário dos produtores agrícolas serve dois objetivos ( 4 ). Primeiro, destina-se a proporcionar uma simplificação administrativa aos agricultores sujeitos ao regime forfetário. A inexistência de obrigação de pagar o IVA devido ao orçamento do Estado e a simultânea impossibilidade de deduzir o imposto a montante concede aos agricultores sujeitos ao regime forfetário a isenção de um conjunto de obrigações administrativas, tais como o registo dos bens e serviços adquiridos, a organização de contabilidade, a emissão de faturas, etc.

18.

Segundo, esse regime visa possibilitar aos agricultores sujeitos ao regime forfetário a compensação dos custos do IVA cobrado na aquisição de bens ou serviços empregados no exercício das suas atividades. Não fora tal compensação, os produtores agrícolas em causa suportariam o encargo com o imposto, o que seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA para os contribuintes, segundo o qual o encargo relativo a esse imposto deve ser suportado pelos consumidores. No entanto, uma vez que a percentagem da compensação é calculada em termos globais, relativamente a todos os agricultores sujeitos ao regime forfetário, a neutralidade fiscal também só é garantida nos mesmos termos. Isto significa que, no caso de um determinado agricultor sujeito ao regime forfetário, a compensação pode, efetivamente, ser mais ou menos elevada do que o montante do IVA cobrado num determinado exercício fiscal.

19.

O regime comum forfetário dos produtores agrícolas derroga as regras gerais da Diretiva 2006/112 e deve, portanto, ser aplicado apenas na medida do necessário para atingir os seus objetivos ( 5 ). Por conseguinte, em primeiro lugar, não pode ser aplicado aos produtores agrícolas relativamente aos quais a aplicação do regime normal ou, se for o caso, do regime especial das pequenas empresas ( 6 ), não apresente dificuldades de ordem administrativa. Em segundo lugar, a aplicação do regime forfetário não pode implicar, no tocante à totalidade dos agricultores sujeitos ao regime forfetário num determinado Estado-Membro, a recuperação, a título de compensação forfetária, de um montante superior ao montante do IVA que esses agricultores teriam direito a recuperar ao abrigo do regime normal.

20.

É necessário examinar as questões prejudiciais no presente processo à luz das considerações precedentes.

Primeira questão prejudicial

21.

A primeira questão prejudicial diz respeito à possibilidade de excluir um produtor agrícola do regime forfetário. O órgão jurisdicional de reenvio procura determinar se essa exclusão apenas pode ocorrer com base no pressuposto contido no artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112, ou se também pode assentar noutros fundamentos, em especial no artigo 299.o dessa diretiva ou na violação do princípio da neutralidade do IVA.

22.

Importa ter presente que o artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112 prevê dois casos em que um produtor agrícola pode ser excluído do regime forfetário. O primeiro diz respeito à exclusão geral pelo Estado-Membro de determinadas categorias de produtores agrícolas. A forma como cada Estado-Membro pode definir essas categorias constitui o objeto da segunda questão prejudicial no presente processo, pelo que abordarei esse tema mais adiante nas presentes conclusões.

23.

O segundo pressuposto de exclusão diz respeito aos produtores agrícolas relativamente aos quais a aplicação do regime normal ou do regime especial não apresenta dificuldades. Essa exclusão está habitualmente relacionada com a dimensão da exploração agrícola ou com o seu volume de negócios ( 7 ) e baseia-se na presunção de que uma exploração agrícola de determinada dimensão está em condições de gerir as obrigações administrativas que decorrem da sua qualidade de entidade sujeita ao IVA.

24.

Como é evidente, os pressupostos anteriormente referidos prendem-se, por regra, com a exclusão ex ante, no sentido de que os produtores agrícolas pertencentes às categorias excluídas da aplicação do regime forfetário não podem estar abrangidos por tal regime. Os casos de exclusão ex post, ou seja, a exclusão dos produtores agrícolas já abrangidos pelo regime forfetário, podem ocorrer quando um agricultor sujeito ao regime forfetário transita de uma categoria abrangida pelo regime para uma categoria não abrangida por esse regime, por exemplo, em virtude de um acréscimo das suas atividades ou de uma alteração da produção. Nesse caso, o produtor agrícola deixa de satisfazer os critérios de participação no regime forfetário, o que justifica a sua exclusão desse regime.

25.

Não creio, porém, que a exclusão de um agricultor sujeito ao regime forfetário possa ter lugar com base noutros fundamentos, designadamente o fundamento sugerido pelo órgão jurisdicional de reenvio na primeira questão prejudicial. Neste aspeto, concordo com os pontos de vista expressos pela Shields & Sons, pelo Governo francês e pela Comissão nas suas observações no presente processo.

26.

No que respeita ao princípio da neutralidade do IVA, conforme já referi, o legislador da União baseou intencionalmente o regime comum forfetário dos produtores agrícolas numa certa generalização. Para simplificar as obrigações administrativas, o legislador abdicou da ideia da neutralidade fiscal plena de cada agricultor particular sujeito ao regime forfetário, a favor da neutralidade global do regime em relação ao conjunto de todos esses produtores agrícolas. Assim, no âmbito do regime forfetário, os produtores agrícolas individuais podem receber uma compensação que é mais ou menos elevada do que o IVA a montante, o que não contraria o princípio da neutralidade do IVA nem, conforme sustenta a Comissão nas suas observações, constitui uma derrogação legislativa intencional a esse princípio ( 8 ).

27.

No tocante ao artigo 299.o da Diretiva 2006/112, essa disposição fornece orientações aos Estados-Membros para a determinação das percentagens forfetárias de compensação. Esses Estados-Membros devem fixar essa percentagem em moldes tais que a compensação não exceda o montante global da carga fiscal do IVA a montante. A percentagem forfetária de compensação deve ser determinada, segundo o primeiro parágrafo do artigo 298.o dessa diretiva, com base nos dados macroeconómicos relativos a todos os agricultores sujeitos ao regime forfetário. Portanto, o artigo 299.o dessa diretiva não pode constituir uma base para a tomada de decisões individuais relativamente a determinados agricultores sujeitos ao regime forfetário. Isto deve-se ao facto de as regulamentações relativas aos métodos de fixação da percentagem da forfetária de compensação dizerem respeito a todos os agricultores sujeitos ao regime forfetário e não apenas a cada um deles, individualmente. Além disso, conforme a Comissão corretamente observa, o artigo 295.o, n.o 1, ponto 6, dessa diretiva define, para efeitos da aplicação das disposições relativas ao regime comum forfetário dos produtores agrícolas, a carga fiscal do IVA a montante como a carga total do IVA pago na aquisição, por todos os agricultores sujeitos ao regime forfetário, dos bens e serviços utilizados no exercício das suas atividades. Logo, não decorre desse artigo que determinados agricultores sujeitos ao regime forfetário não podem beneficiar de uma compensação que exceda o montante do IVA efetivamente pago por esses agricultores.

28.

Conforme a Shields & Sons acertadamente refere nas suas observações no presente processo, os Estados-Membros dispõem de um conjunto de instrumentos para garantir que um agricultor sujeito ao regime forfetário não obtenha, através da sua participação no regime, uma compensação que exceda o montante do IVA que poderia recuperar ao abrigo do regime normal. Acrescento que, no meu entender, os Estados-Membros não só podem como devem utilizar esses instrumentos, porque a compensação excessiva contraria tanto a natureza do regime forfetário como uma derrogação ao regime normal como a regra clara estabelecida no artigo 299.o da Diretiva 2006/112 e pode, além disso, constituir uma ajuda a (alguns) agricultores sujeitos ao regime forfetário ( 9 ).

29.

Por conseguinte, os Estados-Membros devem, em primeiro lugar, aplicar o regime forfetário apenas aos produtores agrícolas em relação aos quais seja difícil aplicar o regime normal ou o regime simplificado (artigo 296.o, n.o 1, da Diretiva 2006/112). É também possível excluir desse regime os produtores agrícolas relativamente aos quais (por exemplo, devido à dimensão da sua atividade) não existam (ou já não existam) dificuldades de ordem administrativa (artigo 296.o, n.o 2). Em segundo lugar, um Estado-Membro pode excluir antecipadamente do regime categorias específicas de produtores agrícolas (idem). Em terceiro lugar, um Estado-Membro pode fixar percentagens forfetárias de compensação diferenciadas para os diversos subsetores da agricultura (segundo período do primeiro parágrafo do artigo 297.o). Essa diferenciação pode ser especialmente aconselhável se, dadas as disparidades substanciais entre o valor acrescentado da produção agrícola e o valor dos bens e serviços adquiridos para efeitos dessa produção, os montantes da compensação efetivamente recebida pelos agricultores que prosseguem as suas atividades em cada subsetor de produção divergirem substancialmente. Em quarto e último lugar, os Estados-Membros fixam a percentagem forfetária de compensação com base nos dados macroeconómicos relativos aos últimos três anos (primeiro parágrafo do artigo 298.o), o que também significa que essa percentagem pode ser corrigida se os dados macroeconómicos revelarem a existência de uma compensação excessiva.

30.

À luz do exposto, é difícil não pôr em causa a correção da forma como o regime forfetário dos produtores agrícolas é regulado no direito do Reino Unido. Isto porque, conforme resulta dos factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio, em virtude dessa regulamentação, uma exploração agrícola com produção em grande escala ( 10 ) e com uma contabilidade detalhada ( 11 ) recebe, a título de compensação forfetária, um montante mais de três vezes superior ao montante do IVA a montante que poderia recuperar ao abrigo do regime normal. Caso se verificasse uma generalização dessas situações, isso significaria que a forma como o regime forfetário dos produtores agrícolas é regulado no Reino Unido é estruturalmente incompatível com as disposições da Diretiva 2006/112.

31.

Todavia, um Estado-Membro não pode eliminar os efeitos negativos da sua ação (ou da falta dela) ao nível macroeconómico através de medidas dirigidas aos operadores económicos individuais. Esta conclusão tão-pouco é alterada pelo caráter facultativo do regime forfetário dos produtores agrícolas, que abordei nas minhas anteriores conclusões sobre essa matéria ( 12 ).

32.

Isso deve-se ao facto de, quando um Estado-Membro decide aplicar corretamente o regime forfetário dos produtores agrícolas (designadamente quando esse regime se destina exclusivamente a produtores agrícolas relativamente aos quais o regime normal ou o regime simplificado apresentem dificuldades e quando a percentagem forfetária de compensação foi fixada num nível adequado), um produtor agrícola que preenche os critérios de participação no regime poder legitimamente esperar que lhe assista o direito de aderir ao regime e de nele permanecer, independentemente dos efetivos resultados financeiros dessa participação em exercícios fiscais específicos. Caso contrário, o objetivo do regime forfetário, que consiste na simplificação e na redução das obrigações administrativas dos contribuintes em relação aos quais seja difícil aplicar os regimes normais de tributação, não seria alcançado.

33.

Em virtude do exposto, proponho que a resposta à primeira questão prejudicial seja a de que os artigos 295.o a 305.o da Diretiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que os únicos pressupostos admissíveis para excluir um agricultor sujeito ao regime forfetário do regime comum forfetário dos produtores agrícolas regulado por essas disposições são os que se encontram estabelecidos no artigo 296.o, n.o 2, dessa diretiva.

Segunda questão prejudicial

34.

Com a apresentação da segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio procura, essencialmente, saber se um Estado-Membro pode, com base no artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112, excluir do regime forfetário uma categoria de produtores agrícolas definidos como «produtores agrícolas relativamente aos quais se tenha constatado que recuperam um montante substancialmente mais elevado enquanto participantes no regime forfetário do que se estivessem sujeitos ao IVA».

35.

Essa questão surgiu no contexto da posição adotada pelas autoridades tributárias representadas no processo principal e apoiada pelo Governo do Reino Unido nas suas observações no presente processo, segundo a qual o direito do Reino Unido define e exclui essa categoria específica de produtores agrícolas do regime forfetário, em conformidade com o artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112.

36.

Conforme referi supra ( 13 ), o artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112 permite que os Estados-Membros excluam determinadas categorias de produtores agrícolas do regime forfetário. Essa disposição fornece indicações aos Estados-Membros acerca da forma como o regime forfetário deve ser regulado no seu direito interno. A exclusão aqui em causa é, assim, um elemento estrutural ex ante desse regime, no sentido de que as categorias sujeitas a exclusão devem ser definidas previamente e em termos abstratos, de modo que um produtor agrícola que pondere aderir ao regime esteja em condições de avaliar se se enquadra numa categoria sujeita a exclusão e se poderá continuar a inserir-se nessa categoria no futuro. Assim o impõem os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima.

37.

Decorre igualmente da estrutura do artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112, que faz referência ao conceito de «categorias de produtores agrícolas» enquanto, mais adiante, permite a exclusão do regime dos «produtores agrícolas» relativamente aos quais a aplicação do regime normal ou das regras simplificadas não apresente problemas. Por conseguinte, nesse segundo caso é possível proceder a uma análise da situação individual de cada produtor agrícola, ao passo que o primeiro respeita claramente a categorias definidas em abstrato e a priori.

38.

Evidentemente, é possível que um produtor agrícola que inicialmente não pertença a uma categoria sujeita a exclusão possa subsequentemente vir a estar abrangido por essa categoria. Isso pode acontecer, por exemplo, em virtude de um acréscimo da sua atividade ou de uma alteração da natureza dessa atividade. Essas situações dependem das decisões da pessoa em causa, que pode antecipar o impacto que tais decisões terão na sua qualidade de agricultor sujeito ao regime forfetário. Contudo, não se me afigura coerente com a lógica do regime forfetário que a participação nesse regime possa automaticamente dar origem à exclusão do mesmo devido aos resultados financeiros favoráveis de um determinado agricultor em consequência da sua participação no regime.

39.

Além disso, essa exclusão assenta no pressuposto que consiste na comparação acima referida entre o montante obtido a título de compensação forfetária com o montante do IVA que a pessoa em causa poderia, teoricamente, recuperar se exercesse a sua atividade como um contribuinte sujeito ao regime normal. Em primeiro lugar, esse pressuposto é, em grande medida, independente das decisões da pessoa em causa, uma vez que o montante do volume de negócios realizado (do qual depende o montante da compensação, expresso como uma percentagem desse volume de negócios) depende apenas parcialmente do valor dos bens e serviços adquiridos para efeitos da prossecução das suas atividades, tal como o montante do IVA cobrado.

40.

Em segundo lugar, em condições normais, um agricultor sujeito ao regime forfetário nem sequer está em condições de prever ou declarar a existência de tal pressuposto para a exclusão do regime. Importa ter presente que o regime forfetário se destina a produtores agrícolas relativamente aos quais a aplicação do regime normal apresente dificuldades de ordem administrativa. Por essa razão, os agricultores sujeitos ao regime forfetário estão isentos de um conjunto de obrigações, especialmente no domínio da manutenção de registos e da contabilidade. Consequentemente, um agricultor sujeito ao regime forfetário não está em condições de calcular o montante do IVA que poderia ter recuperado ao abrigo do regime normal, porque o funcionamento do regime forfetário determina precisamente que não seja obrigado a proceder a esses cálculos. Se, como acontece no processo principal, um agricultor sujeito ao regime forfetário tem uma contabilidade que permite a recolha desses dados, isso provavelmente significa que o regime forfetário é aplicado de uma forma que excede o necessário para a prossecução dos seus objetivos.

41.

Pelos motivos expostos, considero que, ainda que se aceite que o direito do Reino Unido exclui do regime forfetário uma categoria de produtores agrícolas como os que são definidos na segunda questão prejudicial, essa categoria está estruturada de uma forma que não é compatível com a lógica desse regime e a participação no regime não pode servir de fundamento para a exclusão do mesmo.

42.

Além disso, a Comissão salienta, corretamente, nas suas observações que a forma como a exclusão do regime da categoria de produtores agrícolas acima referida é invocada pelas autoridades tributárias do Reino Unido não preenche os requisitos de clareza e precisão exigidos na transposição das disposições do direito da União para o direito interno.

43.

De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 14 ), o exercício por um Estado-Membro da faculdade prevista nessa diretiva impõe, por motivos de segurança jurídica, a adoção de uma disposição específica e a observância de critérios de especificidade, precisão e clareza, de modo a permitir que seja efetuado um controlo jurisdicional.

44.

Contudo, a identificação de uma categoria de produtores agrícolas sujeita a exclusão do regime forfetário que é invocada pelas autoridades tributárias não decorre das disposições legislativas, uma vez que essas disposições ( 15 ) se limitam a atribuir às autoridades tributárias poderes para excluir agricultores do regime forfetário se considerarem que tal é necessário para efeitos da proteção da receita orçamental. A indicação de que esta exclusão se aplica aos agricultores que recebem, no contexto do regime, uma compensação que excede substancialmente o montante do IVA que poderiam recuperar ao abrigo dos regimes normais consta apenas de uma circular não vinculativa para os contribuintes ( 16 ). Conforme resulta do pedido de decisão prejudicial, essa informação não configura uma disposição legal, mas somente um esclarecimento da prática administrativa das autoridades tributárias.

45.

Por conseguinte, a Shields & Sons tem razão quando afirma nas suas observações no presente processo que a exclusão dos agricultores sujeitos ao regime forfetário que recebem uma compensação que excede substancialmente o montante do IVA que poderiam recuperar ao abrigo do regime normal constitui uma prerrogativa das autoridades tributárias para excluírem determinados agricultores, e não uma exclusão sistemática, definida em abstrato e a priori, de categorias de produtores agrícolas na aceção do artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112.

46.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que a resposta à segunda questão prejudicial seja a de que o artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que a categoria de produtores agrícolas que se constatou recuperarem um montante substancialmente mais elevado enquanto participantes no regime forfetário do que aquele que recuperariam se estivessem sujeitos ao regime do IVA não constitui uma categoria de produtores agrícolas adequadamente estruturada para efeitos da aplicação daquela disposição.

Conclusão

47.

À luz das considerações precedentes, proponho que se responda do seguinte modo às questões prejudiciais apresentadas pelo Upper Tribunal (Tax and Chancery Chamber) [Tribunal Superior, Secção Tributária e da Chancelaria (Reino Unido)]:

1)

Os artigos 295.o a 305.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que os únicos pressupostos admissíveis para excluir um agricultor sujeito ao regime forfetário do regime comum forfetário dos produtores agrícolas regulado por essas disposições são os pressupostos estabelecidos no artigo 296.o, n.o 2, dessa diretiva.

2)

O artigo 296.o, n.o 2, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de não autorizar a exclusão do regime forfetário da categoria de produtores agrícolas definidos como produtores agrícolas relativamente aos quais se tenha constatado que recuperam um montante substancialmente mais elevado enquanto participantes nesse regime do que se estivessem sujeitos ao IVA.


( 1 ) Língua original: polaco.

( 2 ) JO 2006, L 347, p. 1.

( 3 ) Estes dados não são contestados. De acordo com os registos do próprio técnico de contas da Shields & Sons, especialmente no que respeita aos exercícios fiscais de 2008-2009 a 2011-2012, o reembolso a título de compensação foi cerca do triplo do montante do IVA que essa sociedade teria direito a recuperar ao abrigo do regime normal.

( 4 ) V. acórdão de 12 de outubro de 2016, Nigl e o. (C-340/15, EU:C:2016:764, n.o 38 e jurisprudência aí referida).

( 5 ) V. acórdão de 12 de outubro de 2016, Nigl e o. (C-340/15, EU:C:2016:764, n.o 37 e jurisprudência aí referida).

( 6 ) Regulado pelos artigos 281.o a 292.o da Diretiva 2006/112.

( 7 ) É este o caso, por exemplo, do direito francês e, indiretamente (por via de outras obrigações relativas à obrigação de organização de contabilidade), do direito polaco e do direito austríaco.

( 8 ) Essa derrogação é possível — como é evidente —, uma vez que o princípio da neutralidade, ao contrário do princípio da igualdade de tratamento, que está expressamente concretizado no domínio do IVA, não tem natureza constitucional (v. acórdão de 29 de outubro de 2009, NCC Construction Danmark, C-174/08, EU:C:2009:669, n.os 42 e 43).

( 9 ) V. conclusões da advogada-geral J. Kokott no processo Comissão/Portugal (C-524/10, EU:C:2011:613, n.o 36).

( 10 ) Conforme resulta do pedido de decisão prejudicial, a Shields & Sons recebeu no exercício fiscal de 2011-2012 um reembolso a título de compensação forfetária que excedeu 200000 GBP, o que, tendo em conta a percentagem de 4%, revela um volume de negócios que ascende a 5000000 GBP.

( 11 ) Com efeito, as informações supra provêm de dados compilados pelo técnico de contas da Shields & Sons.

( 12 ) V. as minhas conclusões no processo Nigl e o. (C-340/15, EU:C:2016:505, n.o 49).

( 13 ) V. n.o 22 das presentes conclusões.

( 14 ) Acórdão de 4 de junho de 2009, SALIX Grundstücks-Vermietungsgesellschaft (C-102/08, EU:C:2009:345, n.os 51 a 58).

( 15 ) Concretamente, a Regulation 206 das Value Added Tax Regulations 1995 (v. n.o 6 das presentes conclusões).

( 16 ) VAT Notice 700/46, ponto 7.2 (v. n.o 7 das presentes conclusões).