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Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 27 de fevereiro de 2020 (1)

Processo C-331/19

Staatssecretaris van Financiën

contra

X

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial – Impostos – Imposto sobre o valor acrescentado – Diretiva 2006/112/CE – Artigo 98.° – Taxas reduzidas – Anexo III, ponto 1 – Produtos alimentares destinados ao consumo humano e produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares – Produtos para estimular a libido»






 Introdução

1.        O imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») é um imposto indireto, ou seja, o seu ónus económico é inteiramente repercutido nos consumidores de bens e serviços, o que aumenta o seu preço. Para limitar este efeito de aumento dos preços devido ao imposto sobre determinados bens e serviços que são considerados de particular importância social, o legislador previu uma série de isenções de IVA, bem como a possibilidade de aplicar uma taxa reduzida deste imposto. Esta última possibilidade diz respeito, designadamente, aos produtos alimentares, bem como aos bens utilizados para a sua produção, aos seus complementos e aos seus substitutos.

2.        Contudo, afigura-se que a classificação de determinados bens nessas categorias suscita dificuldades, como demonstra a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta problemática (2). No presente processo, o Tribunal terá oportunidade de precisar estes conceitos, o que deverá limitar, de futuro, o número de litígios sobre esta matéria, embora certamente não os evite por completo.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        O artigo 1.°, n.° 1, primeiro período, do Regulamento (CE) n.° 178/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (3) dispõe:

«O presente regulamento prevê os fundamentos para garantir um elevado nível de proteção da saúde humana e dos interesses dos consumidores em relação aos géneros alimentícios, tendo nomeadamente em conta a diversidade da oferta de géneros alimentícios, incluindo produtos tradicionais, e assegurando, ao mesmo tempo, o funcionamento eficaz do mercado interno.»

4.        De acordo com o artigo 2.° desse regulamento:

«Para efeitos do presente regulamento, entende-se por “género alimentício” (ou “alimento para consumo humano”), qualquer substância ou produto, transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser.

Este termo abrange bebidas, pastilhas elásticas e todas as substâncias, incluindo a água, intencionalmente incorporadas nos géneros alimentícios durante o seu fabrico, preparação ou tratamento. […]

O termo não inclui:

a)      alimentos para animais;

b)      animais vivos, a menos que sejam preparados para colocação no mercado para consumo humano;

c)      plantas, antes da colheita;

d)      medicamentos, na aceção das Diretivas 65/65/CEE [...] e 92/73/CEE [...] do Conselho;

e)      produtos cosméticos, na aceção da Diretiva 76/768/CEE do Conselho [...];

f)      tabaco e produtos do tabaco, na aceção da Diretiva 89/622/CEE do Conselho [....];

g)      estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, na aceção da Convenção [Única] das Nações Unidas sobre Estupefacientes, de 1961, e da Convenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971;

h)      resíduos e contaminantes.»

5.        Segundo o artigo 96.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (4), os Estados-Membros aplicam uma taxa normal de IVA fixada por cada Estado-Membro numa percentagem do valor tributável que é idêntica para a entrega de bens e para a prestação de serviços.

6.        O artigo 98.°, n.os 1 e 2, primeiro parágrafo, dessa diretiva dispõe:

«1.      Os Estados-Membros podem aplicar uma ou duas taxas reduzidas.

2.      As taxas reduzidas aplicam-se apenas às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias constantes do Anexo III.

[...]»

7.        O anexo III da Diretiva 2006/112 enuncia no seu ponto 1:

«Produtos alimentares (incluindo bebidas, com exceção das bebidas alcoólicas) destinados ao consumo humano e animal, animais vivos, sementes, plantas e ingredientes normalmente destinados à preparação de alimentos, bem como produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares».

 Direito neerlandês

8.        O direito neerlandês prevê a aplicação de uma taxa reduzida de IVA aos produtos enumerados no anexo III da Diretiva 2006/112 (no ponto 1), por força do artigo 9.°, n.° 2, alínea a), da Wet houdende vervanging van de bestaande omzetbelasting door een omzetbelasting volgens het stelsel van heffing over de toegevoegde waarde (Lei que substitui o imposto existente sobre o volume de negócios por um imposto sobre o volume de negócios segundo o sistema do imposto sobre o valor acrescentado), de 28 de junho de 1968, em conjugação com o ponto 1, alíneas a), b) e c), da tabela a 1 anexada a essa lei.

 Matéria de facto, tramitação do processo e questões prejudiciais

9.        X, um sujeito passivo de IVA, explora uma loja onde vende artigos eróticos (sex shop). Entre os artigos que aí estão à venda encontram-se cápsulas, gotas, pós e sprays para utilização por via oral, que têm por efeito estimular o desejo sexual (afrodisíacos). Os ingredientes presentes nesses produtos são de origem natural.

10.      Entre 2009 e 2013, o sujeito passivo aplicou a esses bens uma taxa de IVA reduzida aplicável a produtos alimentares. Contudo, as autoridades fiscais contestaram a aplicação dessa taxa, considerando que os bens em questão não constituem produtos alimentares na aceção das disposições pertinentes em matéria de IVA e ordenaram que lhes fosse aplicada a taxa normal.

11.      O sujeito passivo recorreu desta decisão no Rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos). Em segunda instância, o Gerechtshof Den Haag (Tribunal de Recurso de Haia, Países Baixos) deu razão ao sujeito passivo, considerando que a função afrodisíaca dos bens em causa não obstava a que fossem tributados à taxa prevista para os produtos alimentares. Esse tribunal teve em consideração que os referidos produtos se destinam à utilização por via oral e são feitos a partir de ingredientes presentes em produtos alimentares. Além disso, o tribunal salientou que a definição de produtos alimentares adotada pelo legislador é tão ampla que inclui produtos que não associamos necessariamente aos alimentos, tais como doces, pastilhas elásticas ou bolos.

12.      O Staatssecretaris van Financiën (autoridade fiscal, Países Baixos) interpôs um recurso de cassação desta decisão no órgão jurisdicional de reenvio.

13.      Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos) decidiu suspender o processo e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

«1)      Deve o conceito de “produtos alimentares destinados ao consumo humano”, utilizado no anexo III, [ponto] 1, da Diretiva [2006/112], ser interpretado no sentido de que se deve entender que nele se enquadra, em consonância com o artigo 2.° do [Regulamento n.° 178/2002], qualquer substância ou produto transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser?

Em caso de resposta negativa a esta questão, como deve ser então interpretado este conceito?

2)      Se não for possível qualificar os produtos comestíveis ou bebíveis de produtos alimentares destinados ao consumo humano, quais são então os critérios para determinar se esses produtos podem ser qualificados de produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares?»

14.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de abril de 2019. O Governo neerlandês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. O Tribunal decidiu apreciar o caso a realização de audiência.

 Análise

15.      O órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos conceitos de «produtos alimentares destinados ao consumo humano» e de «produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares», na aceção do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112. Esta interpretação deverá permitir esclarecer se estes conceitos, ou algum deles, incluem produtos destinados a induzir o desejo sexual (afrodisíacos) de administração por via oral.

 Quanto à primeira questão prejudicial

16.      A primeira questão gira em torno da interpretação do conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano». O órgão jurisdicional de reenvio procura, em particular, determinar se esta interpretação deve ser feita com base na definição do conceito de «alimento para consumo humano», constante do artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002. A resposta a esta questão exige que seja feita uma interpretação literal e teleológica do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o artigo 98.°, n.os 1 e 2, dessa diretiva, bem como do já referido artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002.

 Interpretação literal

17.      Como salientam, com razão, o Governo neerlandês e a Comissão nas suas observações, bem como o próprio órgão jurisdicional de reenvio no seu despacho, a Diretiva 2006/112 não contém uma definição do conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano» e também não remete, a este respeito, para o direito interno dos Estados-Membros. Nesta situação, o conceito deve ser interpretado segundo o seu significado habitual na linguagem corrente, tendo em conta o contexto em que é utilizado e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (5).

18.      Na linguagem corrente, os produtos alimentares destinados ao consumo humano devem ser equiparados ao conceito de «alimentos», isto é, os produtos ingeridos pelas pessoas na sua alimentação. Este processo tem por objetivo fornecer nutrientes ao organismo: reconstituintes, energia e reguladores, bem como água. Estes ingredientes são condição para que o organismo se mantenha vivo, para o seu funcionamento e desenvolvimento.

19.      A definição do conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano» abrange, portanto, todos os produtos, transformados e não transformados, que fornecem ao organismo humano nutrientes e que são consumidos com vista a assegurar o aporte desses nutrientes.

20.      Por conseguinte, não partilho do receio do órgão jurisdicional de reenvio, expresso no despacho de reenvio, de que um elemento teleológico na definição do referido conceito poria em causa a segurança jurídica. Na opinião desse órgão jurisdicional, determinados produtos alimentares são consumidos com outro objetivo que não o de preservar as funções vitais do organismo e, apesar disso, não há dúvidas de que estão incluídos no conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano». O objetivo do seu consumo não pode, portanto, ser determinante para a sua qualificação. A decisão do tribunal de segunda instância no processo principal também se baseou neste argumento.

21.      Na minha opinião, este argumento está assente num mal-entendido.

22.      A satisfação das necessidades básicas das pessoas não tem necessariamente de se limitar à maneira mais simples de alcançar este objetivo. Pelo contrário, a procura da sofisticação e do luxo acompanha as pessoas desde os primórdios dos tempos e se por vezes é limitada, na maior parte das vezes é porque há falta dos recursos materiais necessários à sua realização. Isto é perfeitamente visível no caso da habitação ou do vestuário; além da sua função básica de proteção, têm outras funções, tais como estética ou de prestígio. Apesar disso, mantêm a sua essência: um palácio de estilo rococó é uma casa e um vestido de um grande estilista é uma peça de roupa, da mesma maneira que o são, respetivamente, uma casa de madeira e uma camisa de linho cru.

23.      A situação não é diferente para a alimentação. O facto de alguns pratos serem mais sofisticados e caros do que outros não altera o facto de servirem para responder à mesma necessidade básica que é a de fornecer ao organismo os nutrientes essenciais à vida. Em contrapartida, é uma questão totalmente diferente o facto de, além do seu valor nutricional, terem outras particularidades, como por exemplo o sabor. Esta linha de pensamento está espelhada perfeitamente numa afirmação feita num contexto completamente diferente e atribuída à rainha francesa Maria Antonieta, segundo a qual se o povo não tem pão que coma brioches.

24.      Há que ter em conta que, para além dos nutrientes, os produtos alimentares podem conter uma série de outras substâncias, quer as que estão naturalmente presentes, quer as que são adicionadas para os conservar, melhorar o seu sabor, etc. Obviamente, não há motivo para que estas substâncias ou os produtos que as contenham não sejam abrangidos pelo conceito de produtos alimentares na aceção da referida disposição.

25.      Como o Governo holandês assinala, e bem, nas suas observações, é irrelevante que o ser humano nem sempre se alimente de forma ideal para a sua saúde, consumindo, por exemplo, demasiadas quantidades de gordura ou açúcar. Uma utilização incorreta dos produtos alimentares, do ponto de vista da saúde, não lhes retira as suas características nutritivas essenciais.

26.      De igual modo, são irrelevantes as circunstâncias em que os produtos alimentares são consumidos. A cultura humana criou uma série de costumes e rituais que acompanham ações inerentemente simples, como a alimentação. Mas não há que pôr a carroça à frente dos bois. O papel social ou convivial da alimentação, ainda que muito elaborado, é secundário no que toca à sua função nutricional. Até o banquete mais impressionante serve, sobretudo, para saciar a fome, e só depois outros propósitos (6).

27.      Por estas razões, considero que os produtos alimentares destinados ao consumo humano devem abranger todos os produtos que contêm nutrientes e são consumidos principalmente para fornecer esses nutrientes ao corpo humano, independentemente de esses produtos também poderem ter outras funções, tais como maximizar o prazer resultante das sensações gustativas, e de o seu consumo poder estar relacionado com eventos sociais.

28.      Em contrapartida, produtos como os referidos no pedido de decisão prejudicial, tais como cogumelos alucinógenos ou pastilhas elásticas, quando são consumidos pelas pessoas, não é com vista a fornecer nutrientes ao organismo e não devem ser classificados como produtos alimentares na aceção do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112.

29.      O mesmo se aplica aos afrodisíacos que são objeto do processo principal. Não são consumidos com vista a fornecer nutrientes ao organismo, mas antes para estimular o desejo sexual. Portanto, embora possam surtir algum efeito sobre certas funções do organismo, não se destinam a alimentá-lo.

30.      Isto não é posto em causa pela circunstância evocada no despacho de reenvio de os ingredientes que compõem esses afrodisíacos serem substâncias que também podem estar presentes na composição de produtos alimentares. Se um produto for de natureza composta, a sua classificação como produto alimentar na aceção da legislação em questão deve depender da natureza do produto no seu todo e não dos ingredientes individuais que o compõem. Os ingredientes presentes nos afrodisíacos são selecionados e combinados pelo efeito que têm no desejo sexual, e não pelo seu valor nutricional.

31.      Esta característica distingue esses afrodisíacos dos produtos alimentares, incluindo aqueles a que, além do seu valor nutricional, é também atribuído um efeito afrodisíaco, como por exemplos alguns tipos de marisco.

 Interpretação teleológica

32.      A análise supra é confirmada pela interpretação teleológica das disposições referidas da Diretiva 2006/112.

33.      O Tribunal já teve oportunidade de declarar que a finalidade do artigo 98.° da Diretiva 2006/112 e o seu anexo III consiste em tornar menos onerosos, e portanto mais acessíveis ao consumidor final, que suporta definitivamente o IVA, certos bens que se considera serem especialmente necessários (7). Quanto aos produtos alimentares enumerados no ponto 1 do referido anexo, o Tribunal qualificou-os de bens essenciais (8).

34.      Tal objetivo das disposições em apreço, na minha opinião, milita a favor de uma interpretação que limite a aplicação de uma taxa reduzida de IVA a produtos consumidos para satisfazer uma das necessidades humanas básicas, nomeadamente a da alimentação, entendida como o aporte de nutrientes ao organismo.

35.      No que diz respeito à observação de que nem todos os produtos normalmente classificados como alimentos são nutricionalmente indispensáveis, reitero os argumentos expostos nos n.os 22 a 26 destas conclusões: o facto de certos produtos alimentares terem qualidades adicionais para além das puramente nutritivas, como por exemplo o sabor, e poderem ser consumidos em excesso, não altera o facto de o objetivo principal do seu consumo ser a satisfação das necessidades nutricionais.

36.      Além disso, seria difícil traçar uma divisão objetiva entre os alimentos indispensáveis do ponto de vista nutricional e os que são supérfluos. Afinal, o simples pão com manteiga também pode ser consumido por prazer e não apenas para saciar a fome.

37.      Além disso, importa salientar que a aplicação de uma taxa reduzida de IVA nos termos do artigo 98.° da Diretiva 2006/112 é de caráter excecional e facultativo. Por conseguinte, os Estados-Membros apenas têm a possibilidade de aplicar taxas reduzidas a determinadas categorias de bens e serviços enumerados nos vários pontos do anexo III da Diretiva 2006/112 ou de excluir a sua aplicação a determinadas categorias desses bens e serviços. A única condição neste caso é a determinação precisa dessas categorias de bens e serviços e a observância do princípio da neutralidade fiscal (9).

38.      Por conseguinte, os Estados-Membros têm a possibilidade de excluir a aplicação de uma taxa reduzida de IVA para certas categorias de produtos alimentares, se considerarem que não satisfazem as necessidades que justificam a aplicação dessa taxa.

39.      O próprio legislador da União fez uso desta possibilidade ao excluir as bebidas alcoólicas do âmbito de aplicação do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112. Aparentemente, o legislador considerou que essas bebidas, embora sejam produtos alimentares no sentido corrente, podem igualmente estar na origem de numerosas dependências e patologias, pelo que não há que incentivar o seu consumo reduzindo a taxa de IVA.

40.      A interpretação teleológica do artigo 98.° da Diretiva 2006/112, em conjugação com o ponto 1 do seu anexo III, não permite, portanto, que sejam abrangidos por esta disposição os produtos que servem para satisfazer necessidades diferentes das relacionadas com a alimentação, tais como os afrodisíacos que são objeto do processo principal.

 Princípio da neutralidade fiscal

41.      Por último, importa acrescentar, como o Governo neerlandês refere, com razão, nas suas observações, que uma interpretação segundo a qual os afrodisíacos para administração por via oral, como os que estão em causa no processo principal, devem ser abrangidos pelo âmbito de aplicação material do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 e, por conseguinte, ser tributados à taxa reduzida de IVA, poderia conduzir à violação do princípio da neutralidade fiscal.

42.      Este princípio opõe-se a que bens ou prestações de serviços semelhantes, que estão em concorrência entre si, sejam tratados de maneira diferente do ponto de vista do IVA (10).

43.      Como é sabido, além dos afrodisíacos para administração por via oral, existem também produtos com efeitos semelhantes destinados a serem tomados de outra forma. Esses produtos devem ser considerados concorrentes dos afrodisíacos administrados por via oral, que são objeto do processo principal. Contudo, não podem beneficiar de uma taxa reduzida de IVA, uma vez que não são abrangidos por nenhuma das categorias enumeradas no anexo III da Diretiva 2006/112.

44.      Assim, tratar de forma distinta as diferentes categorias de produtos que servem para estimular o desejo sexual com base na forma como são utilizados seria contrário ao princípio da neutralidade fiscal.

 Incidência do artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002

45.      A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito, em particular, à questão de saber se o conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano», na aceção do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112, deve ser interpretado por referência à definição do conceito de «alimento para consumo humano» constante do artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002.

46.      Na minha opinião, a reposta a esta pergunta deve ser negativa. Como salientam, e bem, o Governo neerlandês e a Comissão nas suas observações, este regulamento serve objetivos completamente distintos dos do artigo 98.° da Diretiva 2006/112 e do seu anexo III.

47.      Segundo o artigo 1.° do regulamento referido, o seu objetivo é garantir um elevado nível de proteção da saúde humana e dos interesses dos consumidores em relação aos géneros alimentícios. A definição do conceito de «alimento para consumo humano» para efeitos do referido regulamento abrange, por conseguinte, qualquer substância ou produto «destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser», uma vez que todos os produtos e substâncias com razoáveis probabilidades de serem ingeridos pelo ser humano são suscetíveis de terem um efeito (também adverso) na saúde humana, qualquer que seja a finalidade para a qual sejam consumidos. Constituem a única exceção os produtos sujeitos a outras regulamentações que salvaguardem a segurança para a saúde humana, tais como os medicamentos. Em contrapartida, a definição do regulamento supramencionado não abrange os produtos que não têm um efeito direto na saúde humana, porque normalmente não são consumidos pelas pessoas, tais como alimentos para animais, animais vivos ou plantas antes da colheita (11).

48.      O âmbito material do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 é, contudo, diferente. Este anexo serve para determinar o âmbito de aplicação da taxa reduzida de IVA, com base no artigo 98.° dessa diretiva. Ora, o objetivo da redução da taxa de IVA é baixar o preço de determinados bens e serviços que, segundo o legislador, permitem satisfazer as necessidades básicas dos consumidores (12). Por conseguinte, o ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 abrange não só os produtos destinados ao consumo humano, mas também os bens destinados à produção desses produtos, tais como rações e animais vivos, sementes, plantas e ingredientes normalmente destinados à produção de produtos alimentares (13). Em contrapartida, o legislador da União excluiu do âmbito dessa disposição as bebidas alcoólicas por não preencherem os critérios teleológicos da redução da taxa do IVA.

49.      O ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 e o artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002 têm, por conseguinte, finalidades diferentes, que correspondem aos seus diferentes âmbitos de aplicação material. Por conseguinte, o artigo 2.° do regulamento acima referido não pode servir de referência para a interpretação do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112.

50.      Tal como a Comissão frisa, com razão, nas suas observações, o Tribunal chegou a conclusões semelhantes ao examinar a relação entre o conceito de «animais vivos normalmente destinados à preparação de alimentos», na aceção do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 e o âmbito de aplicação material do Regulamento (CE) n.° 504/2008 (14) no que respeita aos cavalos (15).

51.      Tendo em conta o acima exposto, a meu ver, o artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002 não afeta a interpretação do conceito de «produtos alimentares destinados ao consumo humano», na aceção do ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112.

52.      Por conseguinte, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que o ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que o conceito aí incluído de «produtos alimentares destinados ao consumo humano» se refere a produtos que contêm nutrientes e são consumidos principalmente com vista a fornecer ao organismo esses nutrientes.

 Quanto à segunda questão prejudicial

53.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio procura determinar como deve ser interpretado o conceito de «produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares.» Esta questão é colocada no caso de a classificação desses produtos eventualmente abranger os afrodisíacos, visados pela primeira questão prejudicial.

54.      Recordo que, segundo a resposta que proponho que seja dada à primeira questão prejudicial, os produtos alimentares, na aceção da disposição em questão, devem incluir os produtos consumidos pelos nutrientes que contêm ou pelo papel que desempenham no processo de alimentação.

55.      Pode ser aplicado um raciocínio semelhante à interpretação do conceito de «produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares». Se os produtos alimentares se caracterizam pelo seu teor em nutrientes e pelo facto de serem consumidos para fornecer ao organismo esses nutrientes, então os complementos ou os substitutos dos produtos alimentares devem ter as mesmas características.

56.      Na minha opinião, especialmente os substitutos de produtos alimentares devem ser entendidos como produtos que não são produtos alimentares mas que contêm nutrientes e são consumidos em vez dos produtos alimentares a fim de fornecer ao organismo esses nutrientes em situações de escassez na dieta normal.

57.      Além disso, os complementos alimentares podem incluir produtos consumidos para reforçar as funções nutricionais dos produtos alimentares, por exemplo, melhorando a absorção de nutrientes. Trata-se, evidentemente, de produtos diferentes dos produtos farmacêuticos que, por sua vez, são objeto de regulamentação distinta no ponto 3 do anexo III da Diretiva 2006/112.

58.      Esta conclusão está também em conformidade com os objetivos do artigo 98.° da Diretiva 2006/112, referidos no n.° 33 das presentes conclusões.

59.      Isso significa que estão excluídos do âmbito material do conceito de «produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares» aqueles produtos que, embora possam ser consumidos pelo ser humano, não têm qualquer ligação com o consumo de produtos alimentares na aceção acima referida e são consumidos com uma finalidade distinta da de fornecer nutrientes ao organismo. É o caso, nomeadamente, dos afrodisíacos que são objeto do processo principal.

 Conclusões

60.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos):

O ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretado no sentido de que o conceito aí incluído de «produtos alimentares destinados ao consumo humano» se refere a produtos que contêm nutrientes e são consumidos principalmente com vista a fornecer ao organismo esses nutrientes, ao passo que o conceito de «produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares» se refere a produtos que não são produtos alimentares, mas contêm nutrientes e são consumidos em vez dos produtos alimentares com vista a fornecer ao organismo esses nutrientes, bem como os produtos consumidos com vista a reforçar as funções nutricionais de produtos alimentares ou seus substitutos.


1      Língua original: polaco.


2      V., em especial, Acórdãos de 3 de março de 2011, Comissão/Países Baixos (C-41/09, EU:C:2011:108); de 10 de março de 2011, Bog e o. (C-497/09, C-499/09, C-501/09 e C-502/09, EU:C:2011:135); e de 9 de novembro de 2017, AZ (C-499/16, EU:C:2017:846).


3      JO 2002, L 31, p. 1.


4      JO 2006, L 347, p. 1.


5      V., por último, Acórdão de 29 de julho de 2019, Spiegel Online (C-516/17, EU:C:2019:625, n.° 65).


6      Segundo um conhecido aforismo, o Criador, ao obrigar o homem a comer para viver, convida-o com o apetite, e recompensa-o com o prazer. («Le Créateur, en obligeant l’homme à manger pour vivre, l’y invite par appétit et l’en récompense par le plaisir»; J.A. Brillat-Savarin, Physiologie du goût, Paris 1825).


7      V., por último, Acórdão de 9 de março de 2017, Oxycure Belgium (C-573/15, EU:C:2017:189, n.° 22), bem como, quanto aos produtos alimentares, o Acórdão de 3 de março de 2011, Comissão/Países Baixos (C-41/09, EU:C:2011:108, n.° 53).


8      Acórdão de 3 de março de 2011, Comissão/Países Baixos (C-41/09, EU:C:2011:108, n.° 53).


9      V., quanto a uma categoria particular de produtos alimentares, Acórdão de 9 de novembro de 2017, AZ (C-499/16, EU:C:2017:846, n.os 23 e 24).


10      V., em especial, Acórdão de 9 de novembro de 2017, AZ (C-499/16, EU:C:2017:846, n.° 30).


11      V. a exclusão prevista no artigo 2.°, terceiro parágrafo, alíneas a), b) e c), do Regulamento n.° 178/2002.


12      V. n.° 33 destas conclusões.


13      Tal objetivo de englobar animais vivos no ponto 1 do anexo III da Diretiva 2006/112 foi confirmado pelo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 3 de março de 2011, Comissão/Países Baixos (C-41/09, EU:C:2011:108, n.os 54 a 57).


14      Regulamento da Comissão, de 6 de junho de 2008, que aplica as Diretivas 90/426/CEE e 90/427/CEE do Conselho no que respeita a métodos para identificação de equídeos (JO 2008, L 149, p. 3).


15      Acórdão de 3 de março de 2011, Comissão/Países Baixos (C-41/09, EU:C:2011:108, n.os 61 a 64).