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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

5 de julho de 2012 (*)

«Livre prestação de serviços — Legislação fiscal — Dedução como despesas profissionais das despesas suportadas para a remuneração de prestações de serviços — Despesas suportadas relativamente a um prestador de serviços estabelecido noutro Estado-Membro em que não está sujeito ao imposto sobre os rendimentos ou está sujeito a um regime de tributação claramente mais vantajoso — Dedutibilidade sujeita à obrigação de fazer prova do caráter real e genuíno da prestação e da normalidade da remuneração correspondente — Obstáculo — Justificação — Luta contra a fraude e evasão fiscais — Eficácia dos controlos fiscais — Repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros — Proporcionalidade»

No processo C-318/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pela Cour de cassation (Bélgica), por decisão de 18 de junho de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de julho de 2010, no processo

Société d’investissement pour l’agriculture tropicale SA (SIAT)

contra

État belge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet, E. Levits (relator), J.-J. Kasel e M. Berger, juízes,

advogado-geral: P. Cruz Villalón,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de junho de 2011,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da société d’investissement pour l’agriculture tropicale SA (SIAT), por D. Garabedian e E. Traversa, avocats,

¾        em representação do Governo belga, por J.-C. Halleux e M. Jacobs, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e N. Rouam, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, J. Menezes Leitão e S. Jaulino, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por H. Walker, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por R. Lyal e J.-P. Keppenne, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 29 de setembro de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a société d’investissement pour l’agriculture tropicale SA (a seguir «SIAT») ao Estado belga, representado pelo Ministro das Finanças, a propósito da recusa deste último de deduzir como despesas profissionais o montante de 28 402 251 BEF que essa sociedade tinha contabilizado como despesa nas suas contas publicadas em 31 de dezembro de 1997.

 Quadro jurídico belga

3        O artigo 26.° do Código dos impostos sobre os rendimentos de 1992 (a seguir «CIR 1992») prevê:

«Sem prejuízo do disposto no artigo 49.° e sob reserva do disposto no artigo 54.°, quando uma empresa com sede na Bélgica concede suprimentos a título excecional ou gratuito, estes devem ser imputados aos seus lucros próprios, salvo se esses suprimentos forem considerados na determinação dos rendimentos tributáveis dos beneficiários.

Não obstante a restrição prevista no primeiro parágrafo, aos lucros próprios devem ser imputados os suprimentos a título excecional ou gratuito que a empresa concede:

[…]

2.°       a contribuintes referidos no artigo 227.° ou a estabelecimentos estrangeiros que, por força das disposições legislativas do país em que estão estabelecidos, aí não estejam sujeitos a imposto sobre os rendimentos ou aí estejam sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável do que aquele a que se encontra sujeita a empresa estabelecida na Bélgica;

[…]»

4        O artigo 49.° do CIR 1992 dispõe:

«São dedutíveis como despesas profissionais as despesas que o sujeito passivo efetuou ou suportou durante o período de tributação para adquirir ou manter rendimentos tributáveis, cuja exatidão e montante demonstre através de documentos justificativos ou, se tal não for possível, através de quaisquer outros meios de prova admitidos pelo direito comum, com exceção da confissão.

Considera-se que foram feitas ou suportadas durante o período de tributação as despesas que, durante este período, tiverem sido efetivamente pagas ou suportadas ou que tenham adquirido o caráter de dívidas ou perdas certas e líquidas e tenham sido contabilizadas como tal.»

5        Nos termos do artigo 53.° do CIR 1992:

«Não constituem despesas profissionais:

[...]

10.°      todas as despesas que ultrapassem de forma não razoável as necessidades profissionais;

[...]»

6        O artigo 54.° do CIR 1992 tem a seguinte redação:

«Os juros, taxas para a concessão do uso de patentes, processos de fabrico e outros direitos análogos ou as remunerações pelas prestações ou serviços fornecidos não são considerados despesas profissionais quando sejam pagos ou atribuídos, direta ou indiretamente, a um contribuinte referido no artigo 227.° ou a um estabelecimento estrangeiro que, por força das disposições da legislação do país onde se encontram estabelecidos, não estão sujeitos a imposto sobre os rendimentos ou aí estão sujeitos, relativamente aos rendimentos em questão, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que aquele a que esses rendimentos estariam sujeitos na Bélgica, exceto se o contribuinte legitimamente demonstrar que correspondem a operações reais e genuínas e que não excedem os limites normais.»

7        Por força do artigo 227.°, 2.°, do CIR 1992, estão sujeitas ao imposto dos não residentes, entre outros, as sociedades estrangeiras que não tenham na Bélgica a sua sede social, o seu principal estabelecimento ou a sede da sua direção ou administração.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

8        A SIAT, uma sociedade de direito belga, constituiu em 1991 uma filial comum com um grupo nigeriano, para a exploração de palmeiras para a produção de óleo de palma.

9        Os acordos celebrados entre as partes previam que a SIAT devia, por um lado, prestar serviços remunerados e vender equipamentos à filial comum e, por outro, devolver uma parte dos lucros que daí retirasse à sociedade principal do grupo nigeriano, a saber, a sociedade luxemburguesa Megatrade International SA (a seguir «MISA»), a título de comissão pela angariação de negócios.

10      Em 1997, tiveram lugar discussões entre as partes quanto ao montante exato das comissões devidas pela SIAT. Essas discussões conduziram ao fim da parceria e ao compromisso assumido pela SIAT de pagar à MISA 2 000 000 USD para saldar as contas.

11      Consequentemente, a SIAT inscreveu como despesa, nas suas contas fechadas em 31 de dezembro de 1997, um montante de 28 402 251 BEF para o pagamento das comissões devidas à MISA.

12      Tendo verificado que a MISA possuía o estatuto de sociedade holding, regida pela Lei luxemburguesa de 31 de julho de 1929 relativa ao regime fiscal das sociedades de participações financeiras, e que, portanto, não estava sujeita a um imposto análogo ao imposto ao qual as sociedades belgas estão sujeitas, a Administração Fiscal belga (a seguir «Administração Fiscal») aplicou o artigo 54.° do CIR 1992 e não aceitou a dedução do montante de 28 402 251 BEF como despesas profissionais.

13      Na sequência de um recurso interposto pela SIAT da decisão da Administração Fiscal, o tribunal de première instance de Bruxelles, por sentença de 21 de fevereiro de 2003, e a cour d’appel de Bruxelles, por acórdão de 12 de março de 2008, confirmaram a posição da Administração Fiscal.

14      A SIAT recorreu para a Cour de cassation, que, tendo dúvidas quanto à interpretação do artigo 49.° CE, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 49.° […] CE, na versão aplicável ao presente caso, dado que os factos em apreço ocorreram antes da entrada em vigor, em 1 de dezembro de 2009, do Tratado de Lisboa, ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional de um Estado-Membro segundo a qual as contrapartidas por prestações ou serviços fornecidos não são consideradas [despesas] profissionais dedutíveis quando sejam pagas ou atribuídas, direta ou indiretamente, a um contribuinte residente noutro Estado-Membro ou a um estabelecimento estrangeiro que, por força da legislação do país em que estão estabelecidos, não estão sujeitos nesse país a imposto sobre os rendimentos ou estão sujeitos, relativamente aos rendimentos em questão, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que o regime a que esses rendimentos estão sujeitos no Estado-Membro cuja legislação está em causa, exceto se o contribuinte demonstrar por todos os meios legalmente admissíveis que essas contrapartidas correspondem a operações reais e [genuínas] e que não excedem os limites normais, quando essa prova não é necessária para se poderem deduzir as contrapartidas por prestações ou serviços fornecidos a contribuintes residentes nesse Estado-Membro, mesmo que esses contribuintes não estejam sujeitos a imposto sobre os rendimentos ou estejam sujeitos, relativamente aos rendimentos em questão, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que o de direito comum desse Estado?»

 Quanto ao pedido de decisão prejudicial

 Observações preliminares

15      Como resulta do pedido de decisão prejudicial e das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, a regra geral relativa à dedução das despesas profissionais está contida no artigo 49.° do CIR 1992, segundo o qual as despesas são dedutíveis a título de despesas profissionais se forem necessárias para adquirir ou conservar os rendimentos tributáveis e se o contribuinte demonstrar a sua existência e montante (a seguir «regra geral»).

16      Ora, no processo principal, a SIAT põe em causa a compatibilidade com o direito da União da regra especial instituída pelo artigo 54.° do CIR 1992, na qual a Administração Fiscal se baseou para indeferir o pedido de dedução das despesas profissionais apresentado por esta sociedade. Em conformidade com esse artigo 54.°, as remunerações de prestações ou de serviços que são efetuadas por contribuintes estabelecidos noutro Estado-Membro, no qual estes últimos não estão sujeitos a imposto sobre os rendimentos ou estão sujeitos, para os rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso que aquele a que esses rendimentos estão sujeitos na Bélgica, não são consideradas despesas dedutíveis, a menos que o contribuinte belga faça prova de que essas remunerações correspondem a uma operação real e genuína e que não excedem os limites normais (a seguir «regra especial»).

17      Assim, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, por força da qual as remunerações de prestações ou de serviços pagas por um contribuinte residente a uma sociedade não residente não são consideradas despesas profissionais dedutíveis quando esta última não está sujeita, no Estado-Membro em que tem a respetiva sede, a um imposto sobre os rendimentos ou está sujeita, para os rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que aquele a que esses rendimentos estão sujeitos no primeiro Estado-Membro, a menos que o contribuinte faça prova de que essas remunerações correspondem a operações reais e genuínas e que não excedem os limites normais, ao passo que, segundo a regra geral, essas remunerações são dedutíveis como despesas profissionais desde que sejam necessárias para adquirir ou conservar os rendimentos tributáveis cuja existência e montante o contribuinte justifique.

 Quanto à existência de uma restrição à livre prestação de serviços

18      O Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado que o artigo 49.° CE se opõe à aplicação de qualquer legislação nacional que tenha por efeito tornar a prestação de serviços entre Estados-Membros mais difícil do que a prestação de serviços puramente interna a um Estado-Membro (v., designadamente, acórdão de 11 de junho de 2009, X e Passenheim-van Schoot, C-155/08 e C-157/08, Colet., p. I-5093, n.° 32 e jurisprudência referida). Constituem restrições à livre prestação de serviços as medidas nacionais que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício dessa liberdade (v., designadamente, acórdãos de 4 de dezembro de 2008, Jobra, C-330/07, Colet., p. I-9099, n.° 19, e de 22 de dezembro de 2010, Tankreederei I, C-287/10, Colet., p. I-14233, n.° 15).

19      Além disso, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, o artigo 49.° CE confere direitos não só ao próprio prestador de serviços mas também ao destinatário desses serviços (v. acórdãos de 26 de outubro de 1999, Eurowings Luftverkehr, C-294/97, Colet., p. I-7447, n.° 34; de 3 de outubro de 2006, FKP Scorpio Konzertproduktionen, C-290/04, Colet., p. I-9461, n.° 32; e de 1 de julho de 2010, Dijkman e Dijkman-Lavaleije, C-233/09, Colet., p. I-6645, n.° 24).

20      Precisado este ponto, não se pode considerar, contrariamente ao que afirma o Governo francês nas suas observações escritas, que se aplicam as mesmas condições materiais no âmbito da regra geral e no da regra especial no que diz respeito à dedução das despesas profissionais.

21      Assim, no âmbito da regra geral, o contribuinte deve fazer prova da existência e do montante das despesas efetuadas, presumindo a Administração Fiscal, segundo o Governo belga, a necessidade dessas despesas para adquirir ou conservar os rendimentos tributáveis. Além disso, em conformidade com o artigo 53.°, 10.°, do CIR 1992, o montante das despesas não deve ultrapassar de forma desrazoável as necessidades profissionais.

22      Em contrapartida, nos termos da regra especial, para ilidir a presunção de não dedutibilidade das despesas, o contribuinte deve provar, por um lado, que estas correspondem a operações reais e genuínas, o que, em conformidade com o comentário administrativo do CIR 1992, a que tanto a SIAT como a Comissão se referiram no Tribunal de Justiça, implica provar que as despesas se inserem no quadro habitual das operações profissionais, que correspondem a uma necessidade industrial, comercial ou financeira e que têm ou devem normalmente ter uma compensação em todas as atividades da empresa. Resulta do mesmo comentário que não basta, a este respeito, apresentar os atos e os documentos de forma juridicamente válida, mas que é preciso antes de tudo criar no funcionário da Administração Fiscal a convicção de que as operações em causa são reais e genuínas. Como o Governo belga observa nas suas observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça, a fim de obter a dedução, o contribuinte residente deve provar a inexistência de simulação das operações profissionais.

23      Por outro lado, o contribuinte deve provar que as despesas profissionais em causa não excedem os limites normais, o que implica, segundo as explicações fornecidas pelo Governo belga na audiência no Tribunal de Justiça, que se proceda a uma comparação da operação em causa com a prática normal dos operadores no mercado, ao passo que, como foi recordado no n.° 21 do presente acórdão, o artigo 53.°, 10.°, do CIR 1992 apenas exclui da dedução, tratando-se de despesas profissionais efetuadas em benefício de contribuintes residentes na Bélgica, as despesas que se revelem como «não razoáveis».

24      Por conseguinte, há que concluir que a presunção da não dedutibilidade das despesas profissionais e as condições materiais a que está sujeita a sua eventual dedução, como previstas no artigo 54.° do CIR 1992, tornam a obtenção desta com base neste artigo mais difícil do que quando a dedução é atribuída em conformidade com a regra geral prevista no artigo 49.° do mesmo código.

25      Além disso, importa sublinhar que a regra especial pode ser aplicada quando as remunerações são pagas a prestadores que, em virtude das disposições da legislação do Estado-Membro em que têm sede, não estão aí sujeitos a um imposto sobre os rendimentos ou, relativamente aos rendimentos em causa, estão sujeitos a um «regime de tributação claramente mais vantajoso que aquele a que esses rendimentos estão sujeitos na Bélgica».

26      Como o Governo belga admite, na falta de precisões normativas ou de instruções administrativas quanto ao que se deve entender por «um regime de tributação claramente mais vantajoso que aquele a que esses rendimentos estão sujeitos na Bélgica», a apreciação que tem por objeto a aplicabilidade da regra especial é efetuada caso a caso pela Administração Fiscal sob fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais.

27      Nestas condições, o âmbito de aplicação da referida regra especial não está previamente determinado com precisão suficiente e, numa situação em que o prestador de serviços está estabelecido num Estado-Membro que não seja o Reino da Bélgica e aí está sujeito a um regime de tributação mais vantajoso do que aquele em que os rendimentos estão sujeitos na Bélgica, existem incertezas quanto à questão de saber se o referido regime será considerado um «regime claramente mais vantajoso» e se, como tal, a regra especial é aplicável.

28      Assim, tal regra especial, que prevê condições mais estritas para obter a dedução das despesas profissionais que as previstas pela regra geral e cujo âmbito de aplicação não está previamente determinado com precisão, é suscetível de dissuadir, por um lado, os contribuintes belgas de exercer o seu direito à livre prestação de serviços e de recorrer aos serviços de prestadores estabelecidos noutro Estado-Membro e, por outro, estes últimos de oferecer os seus serviços a destinatários com sede na Bélgica (v., neste sentido, acórdão de 26 de junho de 2003, Skandia e Ramstedt, C-422/01, Colet., p. I-6817, n.° 28 e jurisprudência referida).

29      Daqui decorre que o artigo 54.° do CIR 1992 constitui uma restrição à livre prestação de serviços na aceção do artigo 49.° CE.

30      Esta conclusão não é infirmada pelos argumentos dos Governos belga, francês e português segundo os quais, à luz das exigências em matéria de ónus da prova, um contribuinte residente que efetue um pagamento a outro residente se encontra numa situação objetivamente diferente daquela de um contribuinte residente que efetue um pagamento a um não residente que beneficia de um regime fiscal claramente mais vantajoso que o regime belga. Esses governos alegam, em substância, que o risco de que a operação tenha por finalidade essencial contornar o imposto normalmente devido só existe nesta última situação e que o contribuinte residente destinatário de serviços está em melhor posição para fornecer os elementos de prova relativos ao caráter real e genuíno da operação, não estando os prestadores de serviços estabelecidos num Estado-Membro que não seja o Reino da Bélgica diretamente sujeitos à fiscalização da Administração Fiscal belga.

31      Importa notar que, relativamente a uma vantagem fiscal, a saber, a possibilidade de deduzir como despesas profissionais remunerações pagas a um prestador de serviços, residindo o respetivo destinatário na Bélgica, não se encontra numa situação diferente consoante esse prestador esteja ou não estabelecido no mesmo Estado-Membro ou consoante esse prestador esteja sujeito, noutro Estado-Membro, a um tratamento fiscal mais ou menos vantajoso. Em todos esses casos, os destinatários dos serviços podem ter efetuado despesas reais, que justifiquem a sua dedução como despesas profissionais quando estejam preenchidas as condições necessárias para poderem beneficiar da referida vantagem fiscal.

32      Na verdade, os prestadores de serviços não residentes não estão diretamente sujeitos à fiscalização da Administração Fiscal belga. Todavia, a diferença de tratamento em causa no processo principal diz respeito não aos prestadores de serviços, consoante estejam ou não estabelecidos na Bélgica, mas aos destinatários de serviços residentes que estejam diretamente sujeitos à fiscalização dessa Administração. Ora, relativamente a esses destinatários, esta última pode não apenas impor condições a preencher para beneficiar da referida vantagem fiscal, que visam assegurar que esta não é concedida nos casos em que a operação tem por finalidade essencial contornar o imposto normalmente devido, mas também proceder às fiscalizações e verificações necessárias para esse efeito.

33      Nestas condições, a circunstância de, do ponto de vista da Administração Fiscal, o risco de fraude ser mais elevado em certas situações do que noutras não tem incidência na similitude da situação dos destinatários de serviços.

 Quanto à justificação da restrição à livre prestação de serviços

34      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma restrição à livre prestação de serviços só pode ser admitida se prosseguir um objetivo legítimo compatível com o Tratado CE e se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, na medida em que, nesse caso, seja adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapasse o que é necessário para o alcançar (v., designadamente, acórdãos de 5 de junho de 1997, SETTG, C-398/95, Colet., p. I-3091, n.° 21; de 18 de dezembro de 2007, Laval un Partneri, C-341/05, Colet., p. I-11767, n.° 101; e Jobra, já referido, n.° 27).

35      Segundo os Governos belga, francês, português e do Reino Unido e segundo a Comissão, a legislação em causa no processo principal pode ser justificada pela luta contra a evasão e a fraude fiscais, pela necessidade de preservar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, bem como, segundo os Governos francês e português, pela necessidade de preservar a eficácia dos controlos fiscais.

36      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que constituem razões imperiosas de interesse geral que podem justificar uma restrição ao exercício das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado tanto a luta contra a fraude fiscal (v., designadamente, acórdão de 11 de outubro de 2007, ELISA, C-451/05, Colet., p. I-8251, n.° 81) como a necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais (v., designadamente, acórdão de 18 de dezembro de 2007, A, C-101/05, Colet., p. I-11531, n.° 55).

37      Do mesmo modo, já foi reconhecido que uma restrição ao exercício de uma liberdade de circulação no seio da União Europeia pode ser justificada para preservar a repartição do poder de tributação entre os Estados-Membros (v. acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C-436/08 e C-437/08, Colet., p. I-305, n.° 121 e jurisprudência referida).

38      No que respeita, em primeiro lugar, à luta contra a fraude fiscal, importa referir que a mera circunstância de um contribuinte residente recorrer aos serviços de um prestador de serviços não residente não pode servir de base a uma presunção geral da existência de práticas abusivas e justificar uma medida que prejudica o exercício de uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado (v., por analogia, acórdãos de 21 de novembro de 2002, X e Y, C-436/00, Colet., p. I-10829, n.° 62; de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, C-196/04, Colet., p. I-7995, n.° 50; de 13 de março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, C-524/04, Colet., p. I-2107, n.° 73; de 17 de janeiro de 2008, Lammers & Van Cleef, C-105/07, Colet., p. I-173, n.° 27; e Jobra, já referido, n.° 37).

39      Além disso, o Tribunal de Justiça entendeu que uma eventual vantagem fiscal resultante, para os prestadores de serviços, da fiscalidade pouco elevada a que estão sujeitos no Estado-Membro em que estão estabelecidos não pode servir, por si só, a outro Estado-Membro para justificar um tratamento fiscal menos favorável dos destinatários dos serviços estabelecidos neste último Estado (v. acórdãos, já referidos, Eurowings Luftverkehrs, n.° 44, e Skandia e Ramstedt, n.° 52).

40      Para que uma restrição à livre prestação de serviços possa ser justificada por motivos de luta contra a fraude e a evasão fiscais, o objetivo específico de tal restrição deve ser o de impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, com o objetivo de eludir o imposto normalmente devido pelos lucros gerados por atividades realizadas no território nacional (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, n.° 55, e Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, já referido, n.° 74).

41      No caso em apreço, o artigo 54.° do CIR 1992 visa obstar aos comportamentos que consistem em diminuir a base tributável dos contribuintes residentes remunerando prestações de serviços inexistentes com o único objetivo de eludir o imposto normalmente devido sobre os benefícios gerados por atividades realizadas em território nacional.

42      Ao prever que as remunerações pagas a prestadores não residentes não são consideradas despesas profissionais a menos que o contribuinte justifique que correspondem a operações reais e genuínas e que não ultrapassam os limites normais, a legislação em causa no processo principal permite alcançar o objetivo de prevenção da fraude e da evasão fiscais à luz do qual foi adotada.

43      Em segundo lugar, há que concluir que a legislação em causa no processo principal é suscetível de ser justificada pela necessidade de assegurar a eficácia dos controlos fiscais. Com efeito, essa legislação não exclui de maneira absoluta a dedução como despesas profissionais das remunerações pagas aos prestadores que, por força das disposições da legislação do Estado-Membro em que estão estabelecidos, não estão aí sujeitos, relativamente aos rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que aquele a que estão sujeitos na Bélgica, mas permite aos contribuintes residentes fazer prova da realidade e da genuinidade das operações efetuadas, bem como do caráter normal das despesas efetuadas.

44      Ora, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, com a finalidade de assegurar a eficácia dos controlos fiscais, que visam lutar contra a fraude fiscal, um Estado-Membro está autorizado a aplicar medidas que permitam a verificação, de forma clara e precisa, do montante das despesas dedutíveis nesse Estado como despesas profissionais (v., neste sentido, acórdãos de 8 de julho de 1999, Baxter e o., C-254/97, Colet., p. I-4809, n.° 18; de 10 de março de 2005, Laboratoires Fournier, C-39/04, Colet., p. I-2057, n.° 24; e de 13 de março de 2008, Comissão/Espanha, C-248/06, n.° 34).

45      Em terceiro lugar, quanto à repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, há que recordar que tal justificação pode ser aceite, uma vez que o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado-Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v. acórdão de 21 de janeiro de 2010, SGI, C-311/08, Colet., p. I-487, n.° 60 e jurisprudência referida).

46      Ora, comportamentos como os descritos no n.° 41 do presente acórdão são suscetíveis de comprometer o direito dos Estados-Membros de exercerem a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território, prejudicando assim a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros (v. acórdão Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, já referido, n.° 56).

47      Por conseguinte, na medida em que a legislação em causa no processo principal obsta a comportamentos fraudulentos como os descritos no n.° 41 do presente acórdão e permite assim ao Estado belga exercer a sua competência fiscal relativamente às atividades realizadas no seu território, essa legislação é suscetível de permitir a salvaguarda da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros.

48      Importa, assim, concluir que uma legislação como a que está em causa no processo principal é adequada para alcançar os objetivos da prevenção da fraude e evasão fiscais, da salvaguarda da eficácia dos controlos fiscais e da repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados-Membros, os quais, como decorre do exposto, estão estreitamente ligados no processo principal.

49      No entanto, cumpre verificar se a legislação não vai além do necessário para alcançar esses objetivos.

50      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que se pode considerar como não indo além do necessário para prevenir práticas abusivas uma legislação que se baseie numa análise de elementos objetivos e verificáveis para determinar se uma transação apresenta o caráter de uma montagem puramente artificial unicamente para fins fiscais e que, em cada caso em que a existência dessa montagem não pode ser excluída, coloca o contribuinte em condições, sem o submeter a constrangimentos administrativos excessivos, de produzir elementos relativos a eventuais razões comerciais para as quais esta transação foi concluída (v., neste sentido, acórdão Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, já referido, n.° 82).

51      Além disso, nem os motivos fiscais nem a circunstância de as mesmas operações terem podido ser efetuadas por prestadores estabelecidos no território do Estado-Membro onde está estabelecido o contribuinte podem, por si só, permitir concluir pela falta de realidade e de genuinidade das operações em causa (v., neste sentido, acórdão Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, já referido, n.° 69).

52      Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando a transação em causa ultrapasse o que as sociedades tinham acordado em circunstâncias de plena concorrência, a fim de não ser considerada desproporcionada, a medida fiscal corretora deve limitar-se à fração que ultrapasse o que tinha sido acordado nessas circunstâncias (v., neste sentido, acórdão SGI, já referido, n.° 72).

53      Assim, se as condições enunciadas nos n.os 50 a 52 do presente acórdão forem respeitadas, a necessidade de fornecer a prova da realidade e da genuinidade das operações, bem como do caráter normal das despesas efetuadas, não parece, em si mesma, ir além do necessário para alcançar os objetivos visados.

54      Todavia, como foi indicado no n.° 25 do presente acórdão, a regra especial pode ser aplicada quando as remunerações são pagas a prestadores que, por força das disposições da legislação do Estado-Membro em que estão estabelecidos, não estão aí sujeitos a imposto sobre os rendimentos ou estão sujeitos, relativamente aos rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso do que aquele a que esses rendimentos estão sujeitos na Bélgica.

55      Nessas circunstâncias, como observou o advogado-geral no n.° 71 das suas conclusões, a regra especial impõe ao contribuinte belga que justifique sistematicamente a realidade e a genuinidade de todas as prestações, bem como a prova da normalidade das remunerações correspondentes, não estando a Administração obrigada a fornecer nem sequer indícios de prova de fraude ou evasão fiscais.

56      Com efeito, a referida regra especial pode ser aplicada na falta de critério objetivo e verificável por terceiros e que possa servir de indício da existência de uma montagem puramente artificial, desprovida de realidade económica, com o objetivo de eludir o imposto normalmente devido sobre os benefícios gerados por atividades realizadas em território nacional, sendo apenas tido em conta o nível de tributação do prestador de serviços no Estado-Membro em que está estabelecido.

57      Ora, impõe-se concluir que, como se referiu no n.° 27 do presente acórdão, essa regra não permite determinar previamente e com precisão suficiente o âmbito de aplicação desta e deixa subsistir incertezas quanto à sua aplicabilidade.

58      Tal regra não satisfaz, por conseguinte, as exigências da segurança jurídica que exige que as regras de direito sejam claras, precisas e previsíveis nos seus efeitos, em especial quando podem ter sobre os indivíduos e as empresas consequências desfavoráveis (v., neste sentido, acórdãos de 7 de junho de 2005, VEMW e o., C-17/03, Colet., p. I-4983, n.° 80, e de 16 de fevereiro de 2012, Costa e Cifone, C-72/10 e C-77/10, n.° 74).

59      Ora, uma regra que não satisfaça as exigências do princípio da segurança jurídica não pode ser considerada proporcional aos objetivos prosseguidos.

60      Tendo em conta o exposto, há que responder à questão submetida que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, por força da qual as remunerações de prestações ou de serviços pagas por um contribuinte residente a uma sociedade não residente não são consideradas despesas profissionais dedutíveis quando esta última não está sujeita, no Estado-Membro em que está estabelecida, a um imposto sobre os rendimentos ou está sujeita, em relação aos rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso que aquele a que estão sujeitos estes rendimentos no primeiro Estado-Membro, a menos que o contribuinte prove que essas remunerações correspondem a operações reais e genuínas e não ultrapassam os limites normais, enquanto, segundo a regra geral, tais remunerações são dedutíveis como despesas profissionais desde que sejam necessárias para adquirir ou manter os rendimentos tributáveis cuja realidade e montante o contribuinte justifique.

 Quanto às despesas

61      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, por força da qual as remunerações de prestações ou de serviços pagas por um contribuinte residente a uma sociedade não residente não são consideradas despesas profissionais dedutíveis quando esta última não está sujeita, no Estado-Membro em que está estabelecida, a um imposto sobre os rendimentos ou está sujeita, em relação aos rendimentos em causa, a um regime de tributação claramente mais vantajoso que aquele a que estão sujeitos estes rendimentos no primeiro Estado-Membro, a menos que o contribuinte prove que essas remunerações correspondem a operações reais e genuínas e não ultrapassam os limites normais, enquanto, segundo a regra geral, tais remunerações são dedutíveis como despesas profissionais desde que sejam necessárias para adquirir ou manter os rendimentos tributáveis cuja realidade e montante o contribuinte justifique.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.