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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 15 de setembro de 2011 ( 1 )

Processo C-280/10

Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, spółka jawna

contra

Dyrektor Izby Skarbowej w Poznaniu

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Naczelny Sąd Administracyjny (República da Polónia)]

«Fiscalidade — Imposto sobre o valor acrescentado — Recuperação do imposto devido sobre operações realizadas com vista a uma atividade económica futura — Operação tributada antes da constituição de uma sociedade em nome coletivo que exerce a atividade económica — Emissão de faturas em nome da futura sociedade em nome coletivo e dos ‘futuros sócios’ — Compra de terrenos a cargo dos ‘futuros sócios’, transferidos a título de entradas em espécie para a sociedade em nome coletivo no momento de sua constituição»

I – Introdução

1.

O Naczelny Sąd Administracyjny (supremo tribunal administrativo) submete duas questões prejudiciais sobre o alcance do direito de recuperar o imposto sobre o valor acrescentado suportado, num contexto em que se produz uma alteração formal dos sujeitos passivos. Mais concretamente, pergunta se a Diretiva 2006/112/CE, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») ( 2 ), permite que uma sociedade de pessoas exerça o direito à dedução do IVA suportado sobre a compra de um imóvel, quando a aquisição não tenha sido feita por aquela sociedade mas pelas pessoas que posteriormente a constituíram, na qualidade de sócios.

2.

Embora o Tribunal de Justiça já tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre os problemas de interpretação que coloca a recuperação do IVA suportado no contexto do início e preparação de atividades económicas, neste processo confrontamo-nos com a problemática particular suscitada por duas pessoas singulares, a que a seguir me referirei como os «futuros sócios». Essas pessoas estão na origem e fizeram o investimento necessário para dar início a um processo de produção que não será posto em prática por elas, mas por uma sociedade de pessoas que será composta unicamente por essas pessoas. Esta particularidade, isto é, o facto de se tratar de «futuros sócios» que atuam como tal e antes do início da atividade económica, dificulta, por um lado, o reconhecimento à sociedade do direito à dedução, uma vez que não foi ela quem suportou o IVA. Por outro lado, também não se pode atribuir incondicionalmente aos «futuros sócios» o direito ao reembolso do IVA suportado pois não são eles que levarão a cabo a atividade económica efetiva e, portanto, também não poderão repercutir o imposto sobre o elo seguinte da cadeia de produção.

3.

Estes dois obstáculos obrigam-nos a analisar com certa cautela a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a matéria, mas também a evitar uma interpretação da Diretiva 2006/112 que, em a pretexto de certo formalismo, acabe por chocar com os princípios que a inspiram.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

4.

O artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2006/112 define o conceito de sujeito passivo para efeitos do IVA nos termos seguintes:

«Entende-se por ‘sujeito passivo’ qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade.

Entende-se por ‘atividade económica’ qualquer atividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada atividade económica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com caráter de permanência.»

5.

O direito à dedução do IVA suportado está contemplado nos artigos 167.° e seguintes da referida Diretiva, de que se destaca, para efeitos do presente processo, o artigo 168.o, segundo o qual:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)

O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

b)

O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.o e o artigo 27.o;

c)

O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), subalínea i);

d)

O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.° e 22.°;

e)

O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado-Membro.»

6.

O artigo 178.o da Diretiva 2006/112 define os requisitos formais para a realização da dedução, de que se destaca a prevista na alínea a):

«Relativamente à dedução referida na alínea a) do artigo 168.o, no que respeita às entregas de bens e às prestações de serviços, possuir uma fatura emitida em conformidade com os artigos 220.° a 236.°, 238.°, 239.° e 240.°»

B – Direito nacional

7.

O artigo 15.o, n.o 1, da Lei do imposto sobre o volume de negócios de 11 de março de 2004 (Dz. U. n.o 54, posição 535, conforme posteriormente alterado, a seguir «LIVN») estabelece:

«São considerados sujeitos passivos as pessoas coletivas, os estabelecimentos sem personalidade jurídica e as pessoas singulares que exerçam, de forma independente uma das atividades económicas referidas no n.o 2, sejam quais forem os fins e os resultados dessa atividade.»

8.

O artigo 15.o, n.o 2, da LIVN define o conceito de atividade económica para efeitos do IVA nos seguintes termos:

«É considerada ‘atividade económica’ qualquer atividade de produtor, de comerciante ou de prestador de serviços, incluindo a atividade das pessoas que explorem recursos naturais e dos agricultores e dos profissionais liberais, mesmo quando a atividade tenha sido exercida uma única vez, em circunstâncias que indiquem a intenção de a realizar repetidamente. É igualmente considerada atividade económica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o intuito de obtenção de lucro.»

9.

O artigo 86.o, n.o 1, da LIVN, relativo ao direito à dedução, tem o seguinte teor:

«Na medida em que sejam utilizados bens e serviços para a prática de operações sujeitas a tributação, o sujeito passivo referido no artigo 15.o tem o direito de deduzir do valor do imposto devido o valor do imposto pago a montante, sob reserva do disposto nos artigos 114.°, 119.°, n.o 4, 120.°, n.os 17 e 19, e 124.°».

10.

O artigo 86.o, n.o 10, ponto 1, da LIVN regula o nascimento do direito a dedução:

«O direito à dedução do montante do imposto devido nasce:

1.   com a declaração tributária relativa ao período em que o sujeito passivo recebeu a fatura ou o documento aduaneiro, sem prejuízo dos pontos 2 a 4 e dos n.os 11, 12, 16 e 18».

11.

O artigo 106.o, n.o 1, da LIVN tem o seguinte teor:

«Os sujeitos passivos referidos no artigo 15.o são obrigados a emitir faturas que indiquem, nomeadamente, a venda, a data de venda, o preço unitário sem IVA, a base tributável, a taxa e o montante do imposto, o preço a pagar e os dados relativos ao sujeito passivo e ao adquirente sem prejuízo dos n.os 2, 4 e 5, do artigo 119.o, n.o 10, e do artigo 120.o, n.o 16.»

12.

O artigo 8.o, n.o 1, ponto 6, do Regulamento do Ministro das Finanças polaco, de 27 de abril de 2004, que aplica certas disposições da Lei do imposto sobre o volume de negócios (Dz. U. n.o 97, pos. 970, conforme posteriormente alterado, a seguir «Regulamento de execução»), estabelece:

«Estão isentos de imposto:

6.   as entradas em espécie nas sociedades civis e comerciais.»

III – Factos e processo principal

13.

Em 22 de dezembro, P. Granatowicz e M. Wasiewicz adquiriram em compropriedade uma pedreira de pedra natural a céu aberto, operação sujeita a IVA pela qual foi emitida fatura com a mesma data em nome de ambos.

14.

Em 26 de abril de 2007, foi formalizada no notário a assinatura do contrato de sociedade mediante o qual é criada a sociedade em nome coletivo Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wasiewicz, spólka jawna (a seguir «sociedade»), para a qual os seus sócios, os referidos Granatowicz e Wasiewicz, transferem, no mesmo ato, a pedreira como bem em espécie. O notário emitiu, pela outorga da escritura pública notarial em original e seis cópias, uma fatura em nome da sociedade.

15.

Em 5 de junho de 2007, a sociedade foi inscrita no registo, ficando constituída, para efeitos do IVA, com data de 14 de junho do mesmo ano.

16.

Na liquidação correspondente ao mês de junho de 2007, a sociedade deduziu o IVA suportado com a compra da pedreira e a prestação dos serviços notariais, no montante de 289718 PLN.

17.

Após uma inspeção, as autoridades fiscais polacas constataram duas irregularidades na liquidação apresentada pela sociedade. Em primeiro lugar, a fatura apresentada pela compra do imóvel foi emitida em nome dos «futuros sócios» e não da sociedade. Em segundo lugar, a fatura pela outorga da escritura pública notarial e respetivas seis cópias foi emitida em nome da sociedade, quando esta ainda não estava legalmente constituída.

18.

O Director Izby Skarbowej, conheceu do recurso administrativo interposto pela sociedade da decisão das autoridades fiscais polacas, confirmando o ato impugnado com os mesmos argumentos.

19.

Seguidamente, a sociedade interpôs recurso contencioso no Wojewódzki Sąd Administracyjny w Poznaniu, tribunal que acolheu igualmente o raciocínio das autoridades, tanto a respeito da fatura da compra e venda do imóvel como da fatura pela outorga das escrituras notariais.

20.

A sociedade interpôs recurso da decisão da primeira instância para o Naczelny Sąd Administracyjny, órgão jurisdicional que submete as questões prejudiciais objeto do presente processo.

IV – Questões prejudiciais e tramitação no Tribunal de Justiça

21.

Em 4 de junho de 2010 deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça a decisão de reenvio do Naczelny Sąd Administracyjny, mediante a qual submete as duas questões prejudiciais seguintes:

«1)

O sujeito passivo, na pessoa dos futuros sócios, que efetua despesas de investimento antes do registo formal da sociedade como sujeito de direito comercial e do registo para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, tem direito, após o registo da sociedade como sujeito de direito comercial e o registo para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, à dedução, nos termos do artigo 9.o e dos artigos 168.° e 169.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006 L 347, p. 1, conforme alterada), do imposto suportado, relativo a despesas de investimento, em atividades tributadas realizadas no quadro da sociedade?

2)

A fatura que comprova as despesas de investimento realizadas, emitida em nome dos sócios e não da sociedade, impede o exercício do direito à dedução do imposto suportado, relativo às despesas de investimento, a que se refere a primeira questão?»

22.

Apresentaram observações, além da recorrente no processo principal, os Governos da República da Polónia, da República Federal da Alemanha e da República Helénica, bem como a Comissão.

23.

Na audiência, realizada em 22 de junho de 2011, intervieram o representante da recorrente, bem como os agentes dos Governos da República da Polónia, da República Francesa, da República Helénica e da Comissão.

V – Apreciação

A – Observação preliminar

24.

Na origem do presente processo está uma dificuldade sobre a que o Tribunal de Justiça já se pronunciou: quando um sujeito realiza atos preparatórios com vista a exercer uma atividade económica, pode produzir-se um desfasamento temporal: por um lado, os atos preparatórios são adotados com o objetivo de ser exercida uma atividade sujeita a IVA, mas, por outro lado, ainda não existe uma liquidação do imposto que permita ao sujeito deduzir o IVA suportado. A fim de resolver esta situação, o Tribunal de Justiça reconheceu aos referidos sujeitos o direito de recuperar o IVA suportado, mesmo que a atividade económica propriamente dita ainda não tenha tido início. Em conclusão, a jurisprudência assegura ao sujeito passivo um direito ao reembolso do IVA suportado durante a fase preparatória de uma atividade económica. Uma vez recuperado o montante, é evidente que o sujeito passivo não poderá proceder a nenhuma dedução quando se produza a repercussão do imposto, mas pelo menos garante-se que nas fases iniciais haverá uma forma de recuperar, num prazo razoável, o IVA suportado.

25.

Importa destacar essa particularidade desde o início destas conclusões, uma vez que o Tribunal de Justiça, ainda que tenha em conta duas situações diferentes, uma de reembolso e outra de dedução, não o explicitou de modo específico. A jurisprudência refere-se a ambas as formas de recuperação utilizando o termo «dedução», termo que torna imprecisas as diferenças entre um caso e outro e que pode acabar por levar a confundi-los.

26.

Com esta distinção em perspetiva, que é fundamental não abandonar para dar uma resposta útil, cabe analisar a seguir as duas questões prejudiciais submetidas pelo Naczelny Sąd Administracyjny.

B – Primeira questão prejudicial

27.

O Naczelny Sąd Administracyjny interroga-nos em primeiro lugar sobre a titularidade do direito à dedução na hipótese de uma sociedade pretender exercer o referido direito a respeito de bens e de serviços de investimento cujo IVA foi suportado pelos «futuros sócios» antes da constituição da sociedade.

28.

P. Granatowicz e M. Wasiewicz não eram sócios no momento da aquisição do imóvel, nem consta dos autos que agiram nessa qualidade. No entanto, parece difícil negar que ambos realizaram a operação como «futuros sócios», ou seja, com intenção de, pouco tempo depois, constituir uma sociedade de pessoas através da qual seria canalizada a atividade empresarial de exploração do referido imóvel. Além do mais, a particularidade a que acabamos de nos referir nada tem de extraordinário, antes refletindo uma prática habitual e generalizada nos usos do comércio: um ou vários sujeitos decidem constituir uma empresa, procuram e obtêm financiamento, adquirem bens e serviços e, uma vez reunidos as componentes essenciais para começar as atividades, dão início aos trâmites para a constituição da sociedade que personificará e à qual se imputarão as relações jurídicas ligadas à atividade da empresa ( 3 ). O tempo transcorrido entre a compra do imóvel e a constituição da sociedade Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wasiewicz, spólka jawna é um fenómeno corrente na prática, o qual aumenta o interesse da decisão que finalmente adote o Tribunal de Justiça no presente processo.

29.

Em conclusão, o reenvio do Naczelny Sąd Administracyjny dá-nos a oportunidade de qualificar com maior precisão o estatuto dos «futuros sócios» e das sociedades para efeitos de recuperação do IVA suportado, mas também de delimitar a margem de que dispõem os Estados-Membros ao articular as relações que surgem entre ambos os sujeitos. Para dar uma resposta a esta interrogação cabe, a título de introdução, abordar brevemente a jurisprudência do Tribunal de Justiça, começando, em especial, com a relativa à definição de sujeito passivo na aceção do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2006/112.

1. Jurisprudência do Tribunal de Justiça aplicável no presente processo

30.

Para responder às questões prejudiciais suscitadas neste processo, importa analisar dois problemas diferentes que o Tribunal de Justiça teve oportunidade de abordar. O primeiro diz respeito ao direito ao reembolso do IVA suportado, faculdade que se concede a qualquer sujeito que realize despesas de investimento a título de atos preparatórios de uma atividade económica que posteriormente exercerá ele próprio. O segundo reside centra-se neste mesmo direito, mas nos casos em que a atividade económica continua, ou se inicia formalmente, através de outro sujeito. Como veremos a seguir, nenhum dos dois problemas se aplica exatamente ao caso dos autos, embora a doutrina de que delas se desprende tenha interesse para dar uma resposta útil.

31.

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a titularidade do direito ao reembolso das despesas de investimento quando esse direito é exercido numa fase ainda preparatória da atividade económica. No acórdão Rompelman ( 4 ) o Tribunal de Justiça aplicou a este problema uma abordagem antiformalista e considerou que um sujeito que ainda não iniciou uma atividade económica, na medida em que realiza despesas de investimento, tem direito a reclamar o reembolso do IVA suportado durante esta fase preparatória ( 5 ). Trata-se, portanto, de um caso em que não há mudança de sujeito, uma vez que D. e E. Rompelman tinham realizado despesas de investimento com vista a explorar eles próprios, num momento posterior, um bem imóvel.

32.

Deste modo, e ainda que o acórdão Rompelman empregue reiteradamente o termo «dedução», encontramo-nos antes perante um direito ao reembolso do IVA suportado, pois não se trata da aplicação de uma dedução sobre o IVA devido resultante de uma transação na cadeia de produção. Pelo contrário, e conforme já se referiu nos n.os 24 e 25 destas conclusões, o Tribunal de Justiça reconhece a D. e E. Rompelman um direito ao reembolso do IVA suportado, na condição, claro está, de que posteriormente, quando se inicie a atividade económica não se efetue nenhuma dedução com base neste imposto. Esta solução é coerente com o espírito da Diretiva 2006/112, pois permite ao sujeito passivo recuperar «imediatamente» o IVA suportado, ao mesmo tempo que não penaliza o facto de os atos preparatórios de uma atividade económica se dilatarem no tempo.

33.

O risco de a atividade económica não chegar a realizar-se não constitui obstáculo a esta solução, como reconheceu o Tribunal de Justiça no processo INZO ( 6 ). No acórdão proferido no referido caso confirmou-se a existência do direito ao reembolso «mesmo que, posteriormente, seja decidido […] não passar à fase operacional e colocar a sociedade em liquidação, de modo que a atividade económica projetada não dê origem a operações tributáveis» ( 7 ). Desde que o agente não atue como consumidor final, se a atividade económica não chegar a termo por razões que lhe são alheias, continuará a existir um direito a recuperar o IVA suportado.

34.

O Tribunal de Justiça considerou que, em caso de fraude as autoridades fiscais têm recursos e meios para detetar se uma atividade tinha por finalidade o início, real ou fictício, de uma atividade económica. Nestes casos, a jurisprudência considera, além disso, que a Diretiva 2006/112 habilita os Estados-Membros a «pedir, com efeitos retroativos, a restituição das quantias deduzidas, uma vez que essas deduções foram concedidas com base em falsas declarações» ( 8 ).

35.

Chegou-se a este mesmo resultado em acórdãos posteriores, que confirmaram que os atos preparatórios realizados por um sujeito permitem-lhe, quanto às despesas de investimento com a futura atividade económica, recuperar o IVA suportado. Isto é categoricamente confirmado pelos acórdãos proferidos nos processos Gabalfrisa ( 9 ), Ghent Coal ( 10 ), Breitsohl ( 11 ) e Fini H ( 12 ).

36.

A segunda questão abordada pela jurisprudência refere-se aos casos de cessão universal de bens na aceção do artigo 19.o da Diretiva 2006/112, nos quais há sub-rogação do cedente a favor do cessionário. Neste contexto, o Tribunal de Justiça aplica novamente uma abordagem antiformalista e casuística, que o levou a admitir que uma entidade com personalidade jurídica, criada especificamente para realizar os atos preparatórios de uma sociedade de capital, tem direito a recuperar o IVA suportado com as despesas realizadas. Esta é a solução a que chegou o Tribunal de Justiça no processo Faxworld ( 13 ), resultado que permitia à entidade que realiza os atos preparatórios (Vorgründungsgesellschaft) reclamar o reembolso do imposto suportado apesar de os bens e serviços adquiridos serem integralmente explorados pela sociedade de capital a que eram destinados.

37.

Os acórdãos proferidos nos processos Rompelman, INZO e nos restantes referiam-se a sujeitos caracterizados pelo facto de que realizariam eles próprios as atividades económicas, o que não sucede no caso dos autos, uma vez que no presente processo produziu-se, tal como expõe o órgão jurisdicional de reenvio, uma mudança de sujeito passivo. Do mesmo modo, a tese do acórdão Faxworld não é necessariamente aplicável ao caso que nos cabe agora apreciar, pois enquanto no referido processo havia transmissão universal de bens, os «futuros sócios» do presente caso realizaram uma operação isolada que afeta um só bem. Portanto, e tal como destacou o Governo da República Francesa, o presente processo está fora do âmbito de aplicação do artigo 19.o da Diretiva 2006/112.

38.

Não obstante, os acórdãos referidos refletem um telos (meta) na jurisprudência do Tribunal de Justiça que é extensível a um processo como o presente. A principal finalidade subjacente é unicamente garantir o principio da neutralidade fiscal, objetivo igualmente presente na Diretiva 2006/112 e cujo sentido é apenas o de assegurar a natureza do IVA, um imposto indireto que onera única e exclusivamente o consumo e não a realização de atividades económicas ( 14 ). Deste modo, tanto a Diretiva como a jurisprudência do Tribunal de Justiça asseguram que o sujeito que suporta o IVA ao longo do processo de produção possa recuperar o imposto, o que sucederá uma vez repercutido o mesmo na etapa seguinte da cadeia de produção ( 15 ). A prioridade que adquire o princípio da neutralidade fiscal no âmbito do IVA requer em certas situações que se supere o formalismo, o que uma leitura detalhada da Diretiva 2006/112 demonstra, na qual o legislador da União, na ponderação entre ambos os princípios, também se inclina para o primeiro.

2. Os «futuros sócios» como sujeitos passivos na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2006/112

39.

Como ponto de partida, devemos começar por destacar que os «futuros sócios» e a sociedade constituem um sujeito passivo na aceção do artigo 9.o da Diretiva. No caso da sociedade não há dúvida disso, uma vez que através da mesma se realiza a exploração da pedreira e, portanto, a atividade económica que justifica a aplicação do imposto. Mais problemática pode apresentar-se a qualificação dos «futuros sócios» como sujeitos passivos, mas que, como a seguir se vai expor, também eles preenchem a mesma condição.

40.

Com efeito, aqueles que adquirem bens e recebem serviços com o fim de os transferi no momento da constituição de uma sociedade de pessoas, não fazem parte da cadeia de produção em sentido estrito, pois não são eles quem explora os bens adquiridos, nem obtêm um benefício ao longo da transação. A função do «futuro sócio» é simplesmente a de um transmitente, um sujeito «acidental» por assim dizer, que se torna ator económico pelo simples facto de que existe um lapso temporal no qual apenas ele pode representar a futura empresa. Visto nestes termos, a jurisprudência Rompelman não se aplicaria ao caso em apreço, pois a questão suscitada no referido processo versava sobre a qualificação de um sujeito que ainda não iniciou uma atividade económica mas que em breve irá iniciar e pela sua própria pessoa ( 16 ). Não havia mudança de sujeito nem no acórdão Rompelman nem na jurisprudência posterior, pelo modo que, claramente, a qualificação de sujeito no nosso processo não é a mesma.

41.

Todavia, é claro que há que atender igualmente à finalidade da jurisprudência referida quando uma atividade económica já existe ou está a ser iniciada, ou, caso contrário, corre-se o risco de aplicar o imposto a situações dificilmente compatíveis com o princípio da neutralidade fiscal. Se o «futuro sócio» suporta o IVA em razão de uma entrega de bens e serviços cujo destinatário real e efetivo é a sociedade que explorará os referidos bens, é necessário que esse destinatário ou então a sociedade possam deduzir imediatamente o imposto suportado quando se produz a repercussão. É importante que o «futuro sócio» ou a sociedade disponham dessa faculdade, sobretudo quando decorre um lapso tempo limitado entre o momento da transferência e o da constituição da sociedade.

42.

Esta solução é igualmente aplicável aos casos em que eventualmente a sociedade não se constitui ou não conclui a realização da atividade, tal como sucedia na jurisprudência Rompelman. Entendo que o mesmo raciocínio da referida doutrina é extensível a um caso em que um «futuro sócio» adquire um bem ou um serviço e posteriormente não constitui a sociedade por motivos justificáveis. Nesse caso, a jurisprudência Rompelman exige que os Estados-Membros prevejam uma via de recurso para ser exercido o direito à recuperação do IVA suportado, cuja titularidade recairá obviamente no «futuro sócio» ( 17 ).

43.

Assim, considero que o artigo 9.o da Diretiva 2006/112 deve, à luz da jurisprudência referida, ser interpretado no sentido de que um «futuro sócio», adquirente de bens e serviços pelos quais suporta o pagamento do IVA, é um sujeito passivo mesmo se a aquisição é efetuada meramente com vista a transferir posteriormente os bens para uma sociedade no momento da sua constituição e a fim de realizar a atividade económica que justificou a aquisição.

3. Titularidade do direito à dedução e condições para o seu exercício

44.

Posto isto, a questão submetida pelo Naczelny Sąd Administracyjny ficaria sem resposta se nos limitássemos apenas a confirmar a qualidade de sujeito passivo dos «futuros sócios». Essa qualidade é apenas a premissa a partir da qual poderemos oferecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que continuamos sem determinar exatamente quem é o titular real do direito de recuperar o IVA suportado: os «futuros sócios», a sociedade ou, de modo alternativo, qualquer dos dois.

45.

Com exceção da República Francesa, os Estados-Membros que apresentaram observações consideram que o direito de recuperar o IVA suportado pertence exclusivamente aos «futuros sócios» enquanto adquirentes dos bens e serviços pelos quais o imposto foi suportado. Pelo contrário, o Governo da República Francesa defende a tese da possibilidade alternativa, segundo a qual cabe ao «futuro sócio» ou à sociedade exercer o direito, e neste segundo caso será assim se o «futuro sócio» não o puder fazer com base no direito nacional. A recorrente no processo principal sustenta que, de qualquer modo, deve ser a sociedade que deve exercer o direito de dedução.

46.

A jurisprudência até agora proferida não é muito esclarecedora a este respeito. A situação mais próxima da apresentada nos autos surge no processo Faxworld, já referido, no qual o Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao reembolso a uma sociedade prevista no direito alemão (Vorgründungsgesellschaft), cuja única finalidade era a preparação dos atos necessários para constituir imediatamente depois uma sociedade de capitais ( 18 ). A resposta do Tribunal de Justiça cingia-se escrupulosamente às particularidades do caso, e com objetivo de o subsumir ao artigo 19.o da Diretiva 2006/112, segundo o qual os Estados-Membros têm a faculdade de considerar que «a transmissão, a título oneroso ou gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade, de uma universalidade de bens ou de parte dela não implica uma entrega de bens e que o beneficiário sucede ao transmitente». No processo Faxworld, a República Federal da Alemanha socorreu-se da referida disposição e, por conseguinte, exigia que a sociedade constituída fosse o sujeito passivo incumbido de exercer o direito de dedução do IVA suportado pela «Vorgründungsgesellschaft» ( 19 ). O Tribunal de Justiça não entendeu assim e reconheceu à referida entidade, enquanto cedente de uma universalidade de bens total ou parcial, o direito de reclamar o reembolso ( 20 ).

47.

Ora, o acórdão Faxworld responde a particularidades distintas das que aqui se trata. Em primeiro lugar, no processo Faxworld as dúvidas de interpretação diziam respeito a uma operação de cessão sujeita ao artigo 19.o da Diretiva 2006/112, enquanto no presente processo não estamos perante uma transmissão de «uma universalidade de bens ou de parte dela». Esta diferença é confirmada pelo acórdão Zita Modes ( 21 ), no qual o Tribunal de Justiça declarou que a transferência de um único bem, como é o caso dos autos a entrada de um bem imóvel, não entra no âmbito de aplicação do referido artigo 19.o ( 22 ). A esta conclusão chega acertadamente a República Francesa, como teve oportunidade de expor na audiência.

48.

Assim, importa realçar outra diferença em relação ao acórdão Faxworld: o facto de o ordenamento alemão ter previsto um sujeito específico a fim de facilitar o processo de constituição de uma sociedade é um aspeto que condiciona igualmente a referida solução. O risco de fraude num sistema em que existe uma sucessão, por assim dizer, perfeita entre um sujeito e o seguinte, facilita a atribuição ao primeiro sujeito do direito de recuperar o IVA suportado, ainda que não seja esse o sujeito chamado a explorar a atividade ( 23 ).

49.

No caso que nos ocupa, as circunstâncias variam significativamente do processo Faxworld. Como já se salientou no n.o 47 destas conclusões, não estamos perante uma transmissão universal na aceção do artigo 19.o da Diretiva, uma vez que os «futuros sócios» não realizam a cessão de um negócio, mas apenas uma mera entrada de um bem. Além disso, o contexto habitual em que se aplica o referido artigo desenvolve-se com dois sujeitos diferenciados, geralmente duas realidades económicas distintas, enquanto no caso vertente existe uma clara continuidade na atividade e inclusive nos sujeitos passivos.

50.

Portanto, ainda que seja importante ter em conta o acórdão Faxworld, é importa igualmente destacar as diferenças de fundo entre um caso e outro, pelo menos no momento de tornar a solução do referido processo extensiva ao presente caso.

51.

Atento o exposto, é manifesto que um caso como o dos autos, na medida em que é alheio ao artigo 19.o da Diretiva, mas no qual se produz uma entrada de bens dos «futuros sócios» numa sociedade, através de uma identidade de facto entre ambos sujeitos e existindo continuidade da atividade económica, apresenta particularidades suficientes para que o legislador da União lhe conceda um tratamento específico. Todavia, já observámos que assim não é, e que uma resposta categórica ao problema suscitado não resulta nem se infere da letra da Diretiva 2006/112. Este silêncio leva-me a concluir que a Diretiva 2006/112 atribui uma margem ampla de discricionariedade aos Estados-Membros com o propósito de que estes adotem as medidas que considerem mais adequadas e mais coerentes com os objetivos desta regulamentação. Em consequência, a verdadeira questão deste processo reside não tanto na determinação de quem exerce o direito de recuperar o IVA suportado, mas antes em que condições a ordem jurídica nacional garante o exercício do referido direito.

52.

Compreende-se, com esta abordagem, por que razão os Estados-Membros que apresentaram observações no presente processo defenderam teses que se contrapõem que, além do mais, refletem a prática dos seus ordenamentos respetivos. Não é surpreendente que a República Francesa defenda uma tese que coincide com a da sociedade recorrente, uma vez que o ordenamento francês contempla uma solução idêntica, como sublinhou o agente do referido Estado-Membro na audiência ( 24 ). Do mesmo modo, as reservas da República Federal da Alemanha ao destacar a necessidade de apreciar se a sociedade exercia algum tipo de atividade antes da sua constituição, são próprias de um Estado que prevê uma figura particular, como se pôde apreciar no processo Faxworld, cujo regime específico condiciona o tratamento fiscal de um caso como o dos autos ( 25 ).

53.

Assim, considero que o artigo 168.o da Diretiva 2006/112, conjugado com o artigo 9.o do mesmo texto, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado-Membro, num caso como o dos autos, em que há identidade de facto entre os sujeitos e a atividade, atribua à sociedade o direito à dedução.

54.

Ora, no caso de o ordenamento interno excluir esta possibilidade, deve garantir-se que os «futuros sócios» tenham direito de exigir imediatamente o reembolso do IVA suportado, em termos idênticos ao que o Tribunal de Justiça já previu para casos como os suscitados designadamente nos referidos processos Rompelman, INZO ou Ghent Coal. Caso contrário, estar-se-ia a introduzir uma discriminação injustificada pelo simples facto de a pessoa que inicia a atividade se propor formalizá-la pouco tempo depois através da personificação de uma sociedade.

55.

No caso de os Estados-Membros optarem por atribuir à sociedade o direito à dedução, esta possibilidade deve estar obviamente condicionada pelo facto de os «futuros sócios» terem repercutido o IVA suportado na sociedade no momento de efetuar a entrada em espécie e assim se reflita no plano contabilístico. Com esta ressalva destinada a evitar casos de fraude, quando haja identidade praticamente total entre os «futuros sócios» e a sociedade, identidade que se reflete igualmente no regime da responsabilidade pessoal que caracteriza uma sociedade como a dos autos, e perante uma clara continuidade da atividade económica, nada impede os Estados-Membros reconhecer à sociedade o direito à dedução.

56.

Situação diferente é a de os Estados-Membros optarem, como parece ser o caso da República da Polónia, por negar à sociedade o direito à dedução previsto no artigo 168.o da Diretiva 2006/112 ( 26 ). Neste caso, e como se adiantou no n.o 53 destas conclusões, os «futuros sócios» devem ter garantido o direito de recuperar o IVA suportado, através quer da dedução quer do reembolso, consoante estejamos perante um dos dois casos seguintes.

57.

Em primeiro lugar, pode suceder que os «futuros sócios» exerçam, antes da constituição da sociedade e de forma efetiva, a atividade económica sujeita ao imposto. Neste caso, o IVA é repercutido naturalmente no seguinte elo da cadeia de produção, o que sucederá desde o próprio momento da compra do imóvel ou pouco tempo depois, na medida em que já existe uma exploração económica dos recursos. Os «futuros sócios» atuam neste caso como genuínos sujeitos económicos e disporão naturalmente de um direito à dedução, que será exercido através das liquidações periódicas correspondentes, enquanto decorre o processo de constituição da sociedade.

58.

Em segundo lugar, e este parece ser o caso dos autos, os «futuros sócios» poderiam estar à espera de consolidar a constituição da sociedade para dar início de forma efetiva à atividade económica. Neste caso não temos em conta receitas nem a repercussão do IVA, mas sim atos preparatórios destinados à criação de uma atividade produtiva, equivalentes, segundo o Tribunal de Justiça, a uma atividade económica na aceção na Diretiva 2006/112 ( 27 ). Esta situação reflete-se com nitidez no acórdão INZO, que afirma que quando uma sociedade declarou a sua intenção de iniciar uma atividade económica que dá lugar a operações sujeitas a IVA, a realização de um ato preparatório, como era o caso de um estudo de rentabilidade para a atividade projetada, «pode, assim, ser considerada uma atividade económica na aceção [da] Diretiva, mesmo que esse estudo tenha por objetivo analisar em que medida a atividade projetada é rentável» ( 28 ). Segundo o Tribunal de Justiça, o IVA pago por um estudo de rentabilidade deve ser recuperado pelo sujeito passivo, «mesmo que, posteriormente, seja decidido, perante os resultados desse estudo, não passar à fase operacional e colocar a sociedade em liquidação, de modo que a atividade económica projetada não dê origem a operações tributáveis» ( 29 ).

59.

Depreende-se do que foi dito que existe, ainda que excecionalmente, um direito ao reembolso nos casos em que não houve atividade produtiva e nos quais, portanto, também não há repercussão do IVA suportado. Tecnicamente, e como já assinalei no n.o 32 destas conclusões, tratar-se-ia de um direito ao reembolso e não à dedução, no entanto a interpretação realizada pelo Tribunal de Justiça dos artigos 9.° e 168.° da Diretiva 2006/112 emprega a técnica da dedução na falta de outra previsão expressa no texto e a fim de assegurar o princípio da neutralidade fiscal.

60.

Em última instância o que justifica esta solução é um argumento de razoabilidade, exposto uma vez mais no referido acórdão INZO. O Tribunal de Justiça sublinhou nesse processo que ao abordar de modo diferenciado o tratamento fiscal de atividades de investimento iguais, distinguindo entre empresas que já realizam operações sujeitas a IVA e outras que pretendem, através de investimentos, iniciar atividades que darão lugar no futuro a operações tributáveis, «seriam estabelecidas diferenças arbitrárias entre essas últimas empresas, na medida em que a aceitação definitiva das deduções dependesse da questão de saber se esses investimentos conduzem ou não a operações tributáveis» ( 30 ).

61.

Dito isto, é imprescindível que quem inicie atividades preparatórias e de investimento, como é o caso dos «futuros sócios» no presente processo, disponha de uma via substantiva e processual adequada que garanta o seu direito ao reembolso do IVA suportado.

62.

Na audiência, tanto o Governo da Polónia como a sociedade admitiram que os «futuros sócios» não dispunham, com base no direito polaco, de um direito ao reembolso, na medida em que a entrada do imóvel na sociedade constituía uma operação isenta. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio averiguar se, nestas circunstâncias, o caráter isento da operação colocaria tanto os «futuros sócios» como a sociedade numa situação que dificulta ou impossibilita o reembolso do IVA suportado.

63.

Como reconheceram alguns Estados no presente processo, é certo que a atribuição aos «futuros sócios» de um direito de recuperar o IVA suportado num caso como o agora exposto propicia um risco de fraude, ao flexibilizar excessivamente as condições para o exercício do reembolso. Todavia, referimo-nos a um caso muito específico, no qual dois «futuros sócios» transferem, como entrada em espécie, um imóvel para uma sociedade de pessoas ( 31 ), composta exclusivamente pelos referidos sócios, através da qual é exercida a atividade económica para a qual se adquiriram os bens pelos quais se suportou o IVA. A situação é tão circunstancial e verificável da perspetiva da luta contra a fraude, que dificilmente um Estado-Membro não se aperceberia de uma conduta abusiva da parte dos «futuros sócios» ou da sociedade. Do mesmo modo que nos casos suscitados nos acórdãos Rompelman, INZO e noutras decisões já referidas, o Tribunal de Justiça considera que nestes casos, uma vez preenchidos os requisitos formais em que se constata o início de uma atividade económica, não deve caber ao sujeito passivo a obrigação de demonstrar que a sua conduta é legítima, mas que, pelo contrário, são as autoridades nacionais fiscais que dispõem de meios para detetar em circunstâncias como as dos autos a existência de fraude ( 32 ).

64.

Tendo em conta o que precede, considero que os artigos 9.° e 168.° da Diretiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado-Membro, em circunstâncias específicas como as do caso em apreço, no qual duas pessoas singulares, na qualidade de «futuros sócios», adquirem um bem imóvel que é transferido como entrada em espécie para uma sociedade de pessoas constituída depois da aquisição e composta pelos referidos sócios, atribua à sociedade o direito à dedução do IVA suportado.

65.

Ora, no caso de o Estado-Membro excluir essa possibilidade, a Diretiva 2006/112 opõe-se a que os «futuros sócios» não possam reclamar o reembolso do IVA suportado. Nestas circunstâncias, as autoridades nacionais devem assegurar aos «futuros sócios» as condições necessárias para que o direito ao reembolso seja exercido em condições substantivas e processuais que não o dificultem excessivamente, e com base no princípio da neutralidade fiscal.

C – Segunda questão prejudicial

66.

Uma vez esclarecida a titularidade do direito à recuperação do IVA suportado, devemos abordar a segunda questão apresentada pelo Naczelny Sąd Administracyjny, cujo objeto são as faturas emitidas pelos bens e serviços objeto do litígio. Tal como consta dos autos, a fatura pela aquisição do imóvel foi emitida em nome dos «futuros sócios», enquanto a fatura pelos serviços notariais foi emitida em nome da sociedade mas com data anterior à sua constituição.

67.

Como é sabido, o exercício do direito à dedução contemplado no artigo 168.o da Diretiva 2006/112 depende do facto de o sujeito passivo possuir uma fatura. Assim o exige o artigo 178.o, alínea a), da referida Diretiva, e o especifica o artigo 220.o, ponto 1, do mesmo texto, ao exigir a emissão de uma fatura para toda a entrega de bens ou prestação de serviços efetuada por um sujeito passivo para outro sujeito passivo. Entre outros elementos que devem obrigatoriamente constar da fatura figura, e como impõe o artigo 226.o, ponto 5, da Diretiva 2006/112, «o nome e o endereço completo do sujeito passivo e do adquirente ou destinatário».

68.

Como sublinharam as partes no processo principal, assim como vários Estados no processo no Tribunal de Justiça, a jurisprudência deste órgão jurisdicional interpretou as disposições acima referidas da Diretiva 2006/112 com alguma flexibilidade. Ora, o objetivo desta abordagem é o de garantir o direito à dedução a qualquer sujeito passivo que tenha suportado o pagamento do imposto. Ao acrescentar dificuldades excessivas no momento da emissão e apresentação de uma fatura, um Estado-Membro corre o risco de obstruir, ou inclusive de impossibilitar, o exercício da dedução, consequência que se opõe frontalmente aos objetivos perseguidos pela Diretiva 2006/112. Assim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça desenvolveu uma variante do princípio da proporcionalidade para este género de casos, e afirmou reiteradamente que «as formalidades assim estabelecidas pelo Estado-Membro em causa e que devem ser respeitadas pelo sujeito passivo para poder exercer o direito a dedução do IVA não podem ultrapassar o estritamente necessário para controlar a aplicação correta do procedimento de autoliquidação» ( 33 ).

69.

Foi este o raciocínio que guiou o Tribunal de Justiça para limitar a margem de discricionariedade dos Estados-Membros e ao restringir a possibilidade de exigir que as faturas contenham indicações adicionais às previstas na Diretiva ( 34 ). Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça considerou que os erros ou deficiências das faturas suscetíveis de ser sanados devem permitir ao sujeito passivo proceder à sua retificação em vez de lhe negar o exercício do direito a dedução ( 35 ). Em conclusão, os Estados-Membros não se podem refugiar nas formalidades inerentes ao processo de faturação para dificultar o exercício do direito a dedução e, em conclusão, pôr em questão o princípio da neutralidade fiscal através da tributação de uma atividade económica e não o consumo final.

70.

Com este pano de fundo legislativo e jurisprudencial, podemos abordar a resolução da segunda questão submetida pelo Naczelny Sąd Administracyjny, cuja resposta deve seguir o esquema já exposto para a primeira questão prejudicial. Assim, é necessário raciocinar distinguindo entre duas situações diferentes: a situação em que o Estado-Membro opte por reconhecer à sociedade o direito a dedução, ou a que consiste em admitir que os futuros sócios reclamem o reembolso do IVA suportado.

71.

Em primeiro lugar, se um ordenamento nacional admite a atribuição do direito a dedução à sociedade, é evidente que se optou por facilitar a realização de uma operação e não a sobrecarregar com custos, ao mesmo tempo que o Estado considera que, do ponto de vista da luta contra a fraude, qualquer conduta irregular seria detetável através de meios normais, inspeção e vigilância fiscal. A sub-rogação opera automaticamente sobre todas as relações jurídicas e atos ligados ao objeto da modificação subjetiva, incluídas, logicamente, as faturas.

72.

Num contexto de sub-rogação, exigir do sujeito passivo sub-rogado a apresentação de uma fatura em seu nome, o que é o mesmo que recusar uma fatura pelo facto de ter sido emitida em nome do sujeito passivo cedente, equivale a introduzir um requisito de difícil, para não dizer de impossível, cumprimento. Tal resultado seria incompatível com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que reiteradamente declarou que «uma vez que a administração fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito do referido sujeito passivo à dedução do IVA, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício desse direito» ( 36 ). Este seria precisamente o caso dos autos, uma vez que uma sub-rogação a favor da sociedade que não fosse extensível à fatura emitida pela compra do imóvel em nome dos «futuros sócios» implicaria indiretamente uma negação do direito à dedução.

73.

A fortiori, é evidente que uma fatura emitida em nome da sociedade mas numa data anterior à sua constituição deve poder ser retificada de modo a que a mesma figure em nome dos sócios, sem que possa ser invocada esta circunstância para recusar à sociedade o direito à dedução.

74.

Em segundo lugar, se o direito do Estado-Membro não atribui à sociedade o direito de exercer a dedução, mas que garante um direito ao reembolso a favor dos «futuros sócios», a primeira fatura, relativa à compra da pedreira, não suscitaria nenhum problema na aceção da Diretiva 2006/112, uma vez que se trata de uma fatura emitida em nome dos mesmos. No que respeita à fatura emitida pela constituição da sociedade, a resposta, na senda do argumento da Comissão, exige, no seguimento do exposto no número anterior destas conclusões, a retificação do documento, uma vez que é manifesto que a emissão em nome da sociedade antes da constituição é uma circunstância que justifica a correção e, por conseguinte, o exercício do direito à recuperação do IVA suportado.

75.

Por conseguinte, se o ordenamento nacional exige, em circunstâncias específicas como as dos autos, a dedução por parte da sociedade ou o reembolso a cargo dos «futuros sócios», o Estado-Membro não pode impor custos que tornem impossível a recuperação do IVA suportado, incluídos os que se referem à emissão e apresentação de faturas. As autoridades nacionais podem aplicar medidas proporcionadas e necessárias para a prossecução dos objetivos da Diretiva 2006/112, entre as quais se inclui, como reconheceu recentemente o Tribunal de Justiça, a retificação da fatura ( 37 ).

76.

Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial no sentido de que o artigo 178.o, alínea a), conjugado com o artigo 168.o, da Diretiva 2006/112, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou prática nacional que, em circunstâncias específicas como as do presente processo, impede a recuperação do IVA suportado,

a)

em caso de dedução a cargo da sociedade, tenha sido emitida uma fatura quer em nome dos «futuros sócios» quer em nome da sociedade ainda que em data anterior à sua constituição,

b)

em caso de reembolso a favor dos futuros sócios, tenha sido emitida uma fatura em nome da sociedade em data anterior à sua constituição.

VI – Conclusão

77.

Tendo em conta as considerações acima expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda ao Naczelny Sąd Administracyjny nos seguintes termos:

«1)

Os artigos 9.° e 168.° da Diretiva 2006/112 do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado-Membro, em circunstâncias específicas como as dos autos, nas quais duas pessoas singulares, na qualidade de ‘futuros sócios’, adquirem um bem imóvel que é transferido como entrada em espécie para uma sociedade de pessoas constituída depois da aquisição e composta pelos referidos sócios, atribua à sociedade o direito à dedução do IVA suportado.

No caso de o Estado-Membro não prever esta possibilidade, a Diretiva 2006/112 opõe-se a que os ‘futuros sócios’ não possam reclamar o reembolso do IVA suportado. Nestas circunstâncias, as autoridades nacionais devem assegurar aos ‘futuros sócios’ as condições necessárias para que o direito ao reembolso seja exercido em condições substantivas e processuais que não o dificultem excessivamente, e com base no princípio da neutralidade fiscal.

2)

O artigo 178.o, alínea a), conjugado com o artigo 168.o, da Diretiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação ou prática nacional que, em circunstâncias específicas como as do presente processo, impede a recuperação do IVA suportado,

a)

em caso de dedução a cargo da sociedade, tenha sido emitida uma fatura quer em nome dos ‘futuros sócios’ quer em nome da sociedade ainda que em data anterior à sua constituição,

b)

em caso de reembolso a favor dos futuros sócios, tenha sido emitida uma fatura em nome da sociedade em data anterior à sua constituição.»


( 1 )   Língua original: espanhol.

( 2 )   Diretiva de 28 de novembro de 2006 (JO L 347, p. 1).

( 3 )   Ver Abella Poblet, E., Manual del IVA, 3a ed., La Ley, 2006, pp. 150 e segs.

( 4 )   Acórdão de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman (268/83, Recueil, p. 655).

( 5 )   Ibid, n.os 23 e 24.

( 6 )   Acórdão de 29 de fevereiro de 1996, INZO (C-110/94, Colet., p. I-857).

( 7 )   Ibid., n.o 22.

( 8 )   Ibid., n.o 24.

( 9 )   Acórdão de 21 de março de 2000, Gabalfrisa e o. (C-110/98C-147/98, Colet., p. I-1577).

( 10 )   Acórdão de 15 de janeiro de 1998, Ghent Coal Terminal (C-37/95, Colet., p. I-1).

( 11 )   Acórdão de 8 de junho de 2000, Breitsohl (C-400/98, Colet., p. I-4321).

( 12 )   Acórdão de 3 de março de 2005, Fini H (C-32/03, Colet., p. I-1599).

( 13 )   Acórdão de 29 de abril de 2004, Faxworld (C-137/02, Colet., p. I-5547).

( 14 )   Ver considerandos 5, 7, 13 e 30 da Diretiva 2006/12.

( 15 )   O Tribunal de Justiça expressa esta ideia a través de uma fórmula bem enraizada na jurisprudência, segundo a qual a neutralidade do IVA se reflete no «regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado garante, por conseguinte, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, elas próprias, sujeitas ao IVA». V., entre outros, acórdãos Rompelman, já referido, n.o 19; Ghent Coal Terminal, já referido, n.o 15; Gabalfrisa e o., já referido, n.o 44; de 8 de junho de 2000, Midland Bank, (C-98/98, Colet., p. I-4177), n.o 19, e I/S Fini H, já referido, n.o 25.

( 16 )   Acórdão Rompelman, já referido, n.os 23 e 24.

( 17 )   Nas suas conclusões apresentadas no processo Breitsohl, já referido, o advogado-geral D. Ruiz-Jarabo Colomer declarava que «pode considerar-se, a fortiori, que este mesmo princípio proíbe que estas últimas empresas sejam discriminadas em função do momento em que tenham solicitado a dedução do imposto – antes ou depois de haver conhecimento de que a atividade económica projetada não se concretizará – ou do facto de que, ao fazê-lo, a administração fiscal lhes tenha reconhecido ou não a condição de sujeitos passivos do imposto» (n.o 47).

( 18 )   V., a este respeito, Klenk, F., en Sölch, O. y Ringleb, K., Umsatzsteuergesetz, Kommentar, Beck, 2003, n.os 482 e seguintes.

( 19 )   Acórdão Faxworld, já referido, n.o 35.

( 20 )   Ibid., n.os 41 e 42.

( 21 )   Acórdão de 27 de novembro de 2003, Zita Modes (C-497/01, Colet., p. I-14393).

( 22 )   Ibid., n.o 40.

( 23 )   Note-se que a solução a que chegou o Tribunal de Justiça não coincide à primeira vista com a resposta dada no acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Abbey National (C-408/98, Colet., p. I-1361), ainda que ambos os processos versem sobre o artigo 19.o da Diretiva. Tal como sublinhou o advogado-geral F. G. Jacobs nas suas conclusões apresentadas em 23 de outubro de 2003 no processo Faxworld (acórdão já referido), a diferença entre ambos os casos reside no quadro jurídico nacional de cada processo e na natureza das operações realizadas respetivamente. Assim o entendeu igualmente o Tribunal de Justiça ao referir-se, com especial ênfase, às «circunstâncias precisas» que rodeavam o processo Faxworld (v. n.o 42 do acórdão Faxworld, já referido).

( 24 )   V., a este respeito, acórdão do Conseil d’État de 30 de abril de 1980, n.o 15506.

( 25 )   V., a este respeito, conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs, já referidas, n.os 19 a 24.

( 26 )   O Governo polaco e o representante da sociedade, bem como o órgão jurisdicional de reenvio, notaram que esta é a solução prevista no ordenamento jurídico polaco.

( 27 )   V. acórdão Rompelman, já referido.

( 28 )   Acórdão INZO, já referido, n.o 18.

( 29 )   Acórdão INZO, já referido, n.o 20 (itálico acrescentado).

( 30 )   Acórdão INZO, já referido, n.o 22.

( 31 )   De acordo com a informação adiantada pelo Governo polaco e pelo representante da sociedade, a sociedade em nome coletivo prevista no ordenamento polaco é uma sociedade de pessoas cuja responsabilidade é repartida pelo património da sociedade e o dos sócios, ainda que o destes o seja a título subsidiário.

( 32 )   «Se viesse a constatar que o direito à dedução havia sido exercido de forma fraudulenta ou abusiva, a Administração Fiscal poderia reclamar, com efeitos retroativos, a restituição das quantias deduzidas» (acórdão I/S Fini H, já referido, n.o 33, que se refere, por sua vez, aos acórdãos Rompelman, já referido, n.o 24; INZO, já referido, n.o 24, e Gabalfrisa e o., já referido, n.o 46).

( 33 )   Acórdãos de 1 de abril de 2004, Bockemühl (C-90/02, Colet., p. I-3303), n.o 50; de 30 de setembro de 2010, Uszodaépítő (C-392/09, Colet., p. I-8791), n.o 38; de 8 de maio de 2008, Ecotrade (C-95/07C-96/07, Colet., p. I-3457), n.o 50, e de 28 de julho de 2011, Comissão/Hungria (C-274/10, Colet., p. I-7289), n.o 43.

( 34 )   Acórdãos Bockemühl, já referido, n.o 51; de 21 de abril de 2005, HE (C-25/03, Colet., p. I-3123), n.os 78 a 82, e Ecotrade, já referido, n.o 64.

( 35 )   Acórdão de 15 de julho de 2010, Pannon Gép Centrum (C-368/09, Colet., p. I-7467), n.os 43 e 44.

( 36 )   Acórdão Bockemühl, já referido, n.o 51.

( 37 )   Acórdão Pannon, já referido, n.o 44.