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CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

VERICA TRSTENJAK

apresentadas em 20 de março de 2012 (1)

Processo C-31/11

Marianne Scheunemann

contra

Finanzamt Bremerhaven

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof (Alemanha)]

«Liberdades fundamentais — Delimitação — Liberdade de estabelecimento — Artigo 49.° TFUE — Livre circulação de capitais — Artigo 63.° TFUE — Imposto sucessório — Aquisição mortis causa de uma participação, incluída no património privado do de cujus, como sócio único de uma sociedade de capitais com sede num Estado terceiro — Legislação nacional que prevê benefícios fiscais para sociedades com sede ou direção no território nacional»





I —    Introdução

1.        O presente processo tem origem num pedido de decisão prejudicial do Bundesfinanzhof, nos termos do artigo 267.° TFUE, através do qual este submeteu ao Tribunal de Justiça uma questão sobre a interpretação das normas de direito primário relativas à livre circulação de capitais.

2.        O pedido de decisão prejudicial resulta de um litígio entre M. Scheunemann (a seguir «recorrente no processo principal») e o Finanzamt Bremerhaven (a seguir «recorrido no processo principal) sobre a legalidade de um aviso de liquidação do imposto sucessório por ela devido. A recorrente no processo principal que herdou, designadamente, uma participação, como sócia única, numa sociedade de capitais com sede no Canadá, critica a negação de uma série de benefícios fiscais que, nos termos do direito nacional, se aplicam a participações em sociedades de capitais com sede na Alemanha e noutros Estados do Espaço Económico Europeu (a seguir «EEE»). Invoca uma violação das normas relativas à livre circulação de capitais. Entende que estas disposições exigem a concessão dos benefícios fiscais controvertidos também para participações em sociedades de capitais com sede num país terceiro. Em primeira instância, foi negado provimento ao seu recurso, que visava a correspondente modificação da sua dívida fiscal, com a fundamentação de que os benefícios fiscais controvertidos devem ser analisados não à luz da livre circulação de capitais, mas sim e apenas à luz da liberdade de estabelecimento. Contudo, esta não é aplicável ao estabelecimento em países terceiros.

3.        O presente processo levanta, a par da questão da compatibilidade desta diferenciação fiscal com o direito da União, também a questão da delimitação entre a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento; ambas as questões devem ser esclarecidas à luz da jurisprudência atual do Tribunal de Justiça. A este respeito, é necessário, em primeira linha, desenvolver critérios claros de delimitação. É importante determinar a relação entre as diferentes liberdades fundamentais no contexto específico do processo principal também porque a recorrente, no caso de a liberdade de estabelecimento dever prevalecer sobre a livre circulação de capitais, não poderia invocar a proteção do direito da União para desfrutar dos benefícios fiscais previstos no direito nacional.

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

4.        O artigo 43.° CE (atual artigo 49.° TFUE) dispõe o seguinte:

«No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às atividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 48.°, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.»

5.        Nos termos do artigo 56.°, n.° 1, CE (atual artigo 63.°, n.° 1, TFUE):

«No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.»

6.        O anexo I da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.°-G do Tratado (2) menciona na rubrica XI («Movimentos de capitais de caráter pessoal») designadamente, «Sucessões e legados» (ponto D).

7.        O artigo 58.° CE (atual artigo 65.° TFUE) prevê o seguinte:

«1.      O disposto no artigo 56.° não prejudica o direito de os Estados-Membros:

a)      Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

b)      Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

2.      O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com o presente Tratado

3.     As medidas e procedimentos a que se referem os n.os 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 56.°»

B —    Direito nacional

8.        As disposições pertinentes resultam da Lei do Imposto sobre as Sucessões e Doações (Erbschaft- und Schenkungsteuergesetz na versão aplicável em 2007 (3), ano a que se refere o litígio, a seguir «ErbStG»).

9.        Por força do § 1, n.° 1, ponto 1, da ErbStG, estão sujeitas a imposto sucessório as aquisições mortis causa.

10.      Nos termos do § 2, n.° 1, da ErbStG, a obrigação fiscal surge relativamente a todos os bens de um residente objeto de transmissão à data em que o imposto se torna devido. Isto inclui também o património situado no estrangeiro isto é, inclui igualmente participações numa sociedade de capitais que não tem a sua sede na Alemanha.

11.      No § 13a, n.os 1 e 2, da ErbStG, na versão pertinente no período em causa, estão previstos benefícios para patrimónios de exploração, patrimónios agrícolas e florestais e para participações em sociedades de capitais. Essa norma é do seguinte teor:

«(1)  Os patrimónios de exploração, os patrimónios agrícolas e florestais, bem como as participações em sociedades de capitais na aceção do n.° 4, sem prejuízo do disposto no segundo período, são isentos até ao valor total de 225 000 euros.

1.       em caso de aquisição mortis causa;

[…]

(2)      O valor residual do património no sentido do n.° 4, após aplicação do n.° 1, será avaliado a 65%.»

12.      Nos termos do § 13a, n.° 4, ponto 3, da ErbStG, a «isenção e a avaliação a um valor reduzido são aplicáveis a [[…]] participações numa sociedade de capitais se à data na qual o imposto se tornou exigível esta tem a sua sede ou a sua direção comercial no território nacional e o de cujus ou o doador detinha uma participação direta superior a um quarto do capital nominal dessa sociedade».

13.      Por força do § 13a, n.° 5, ponto 4, da ErbStG, a isenção e a avaliação a um valor reduzido são suprimidas, com efeito retroativo, se o adquirente ceder total ou parcialmente as participações na sociedade de capitais num prazo de cinco anos a contar da sua aquisição.

14.      Resulta dos autos que a Administração Fiscal, na sequência do acórdão Jäger (4), decidiu aplicar os benefícios previstos no § 13a, n.os 1 e 2, da ErbStG também a participações em sociedades de capitais não cotadas na Bolsa com sede noutro Estado-Membro. Além disso, após o período controvertido, o próprio § 13a da ErbStG foi modificado no sentido de conferir os referidos benefícios a participações, integradas num património privado, superiores a 25% numa sociedade de capitais com sede num Estado-Membro da União ou num Estado do EEE. As participações em sociedades em Estados que não pertencem à União nem ao EEE continuavam excluídas.

III — Factos, processo principal e questões prejudiciais

15.      A recorrente, que reside na Alemanha, é a única herdeira do seu pai falecido em fevereiro de 2007, e que residia igualmente na Alemanha. A herança incluía, designadamente, uma participação do pai como sócio único de uma sociedade com sede no Canadá. A herança da filha foi integralmente sujeita ao imposto sucessório alemão.

16.      Por aviso de liquidação de 24 de novembro de 2008, foi fixado o imposto sucessório devido por esta aquisição. Dado que a sociedade de capitais não tinha nem sede nem direção no território nacional ou num Estado-Membro da União Europeia, não foram concedidos os benefícios fiscais previstos no § 13a, n.os 1 e 2, em conjugação com o n.° 4 da ErbStG, na sua versão em vigor na data pertinente (isto é, uma isenção no montante de 225 000 euros e uma redução de valor de 35%).

17.      Após ter reclamado, sem êxito, dessa decisão, a recorrente recorreu para o Finanzgericht e invocou, em especial, uma violação do artigo 56.° CE. Sustenta que os factos devem ser examinados à luz da livre circulação de capitais. Esta última exige que os benefícios fiscais em causa sejam concedidos também para participações em sociedade de capitais com sede num Estado terceiro.

18.      O Finanzgericht negou provimento ao recurso, com a fundamentação de que os benefícios fiscais controvertidos devem ser apreciados à luz não da livre circulação de capitais, mas apenas da liberdade de estabelecimento, com a consequência de que não pode ser concedido um benefício fiscal para um estabelecimento num país terceiro. A recorrente interpôs recurso de «Revision» para o Bundesfinanzhof.

19.      O Bundesfinanzhof tem dúvidas quanto à fundamentação utilizada pelo Finanzgericht, indicando que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o tratamento fiscal das sucessões, independentemente do seu tipo, está abrangido pelas disposições do Tratado relativas aos movimentos de capitais. Entende que carece de esclarecimento por parte do Tribunal de Justiça a questão de saber se é compatível com o direito da União que os benefícios fiscais nacionais não sejam aplicáveis à aquisição de participações em sociedades de capitais com sede e direção num país terceiro. Por esta razão, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 56.°, n.° 1, do Tratado que institui a Comunidade Europeia, em conjugação com o artigo 58.° do mesmo Tratado, ser interpretado no sentido de que se opõe [ao regime] de um Estado-Membro que, relativamente ao cálculo do imposto sucessório sobre uma herança, prevê que uma participação, incluída no património privado, como sócio único de uma sociedade de capitais com sede e direção no Canadá seja tomada em consideração pelo seu valor integral, ao passo que a aquisição de uma participação deste tipo numa sociedade de capitais com sede ou direção no território nacional beneficia de uma isenção em função dos bens e o valor residual é considerado em apenas 65% do seu montante?»

IV — Tramitação processual no Tribunal de Justiça

20.      O pedido de decisão prejudicial foi recebido na Secretaria do Tribunal de Justiça em 20 de janeiro de 2011.

21.      O Governo alemão e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas dentro do prazo previsto no artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça.

22.      Como nenhuma das partes requereu a abertura da fase oral do processo, foi possível preparar as conclusões deste processo após a reunião geral do Tribunal de Justiça de 7 de fevereiro de 2012.

V —    Principais argumentos das partes

A —    Quanto à liberdade fundamental aplicável

23.      Quer o Governo alemão quer a Comissão indicam que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as aquisições mortis causa constituem uma forma de movimentos de capitais que, salvo em casos estritamente nacionais, está abrangida pelo artigo 63.° TFUE. Resulta da referida jurisprudência que um regime do imposto sucessório que implica uma redução do valor da sucessão constitui uma restrição à livre circulação de capitais.

24.      Por último, sustentam que, para apurar se um determinado regime nacional é abrangido pela livre circulação de capitais ou pela liberdade de estabelecimento, é preciso examinar qual a norma do direito da União que é em primeira linha afetada. Neste contexto, é necessária uma apreciação global, que inclua o objeto normativo da norma nacional controvertida, o seu objetivo mais amplo e as relações de participação efetivas no processo principal. Neste último, são afetadas sobretudo as disposições relativas à liberdade de estabelecimento. O Governo alemão e a Comissão estão de acordo em que a recorrente não pode invocar estas liberdades fundamentais, dado que as disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento não contêm regras que estendam o seu âmbito de aplicação a situações em que o elemento transfronteiriço se refira a um Estado terceiro.

B —    Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

25.      Quer o Governo alemão quer a Comissão formulam, a título subsidiário, observações sobre a questão de saber se existe, no processo principal, uma restrição à livre circulação de capitais.

26.      Ao passo que o Governo alemão se limita a afirmar que é afetado o âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, a Comissão reconhece expressamente uma restrição a esta liberdade fundamental. O regime nacional controvertido exclui, no caso de participações sociais, a isenção e a avaliação a um valor reduzido quando a sede e a direção da sociedade em causa se encontram no estrangeiro. Isto implica uma diminuição do valor da herança, na medida em que inclui participações nessas sociedades, em comparação com uma herança que compreende participações em sociedades com sede ou direção no território nacional. Assim, verifica-se uma restrição à livre circulação de capitais.

C —    Quanto à justificação de uma restrição à livre circulação de capitais

27.      O Governo alemão considera que a restrição à livre circulação de capitais no processo principal está justificada. Em seu entender, existem sobretudo considerações importantes relativas à política de emprego que justificam a presente restrição dos benefícios fiscais. A sucessão em empresas em países terceiros não é objetivamente comparável com a sucessão em empresas com sede na União Europeia ou no EEE. Dado que os benefícios fiscais estão sujeitos a condições, isto torna ainda necessário um controlo fiscal substancial, que não é garantido da mesma maneira no caso de uma sociedade de capitais com sede no Canadá.

28.      Ao invés, a Comissão considera que a restrição à livre circulação de capitais não está justificada. Quanto ao objetivo do legislador nacional, de não tributar excessivamente os herdeiros de patrimónios vinculados a empresas e de evitar que a empresa seja vendida ou onerada para pagar o imposto sucessório, a Comissão afirma que não existem indícios de que os efeitos desejados só possam ser atingidos quando o benefício é limitado às participações em sociedades nacionais. No que diz respeito ao caráter não comparável, a Comissão sustenta que nada parece indicar que situações, nas quais a sociedade tem a sua sede ou direção no território nacional, se distinguem daquelas em que os elementos de conexão se encontram no estrangeiro, quer noutro Estado-Membro quer num Estado terceiro. Por último, nota que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados-Membros não podem invocar argumentos baseados na eventual falta de reciprocidade para restringir a livre circulação de capitais em casos em conexão com Estados terceiros.

VI — Apreciação jurídica

A —    Observações preliminares

29.      Face à complexidade do regime controvertido, bem como às alterações legislativas de que foi objeto ao longo do tempo, parece ser aconselhável resumir brevemente os seus elementos essenciais. Como se infere da decisão de reenvio, o presente processo diz respeito a um regime nacional relativo ao cálculo do imposto sucessório num caso em que uma herança incluía uma participação, integrada no património privado, no capital de uma sociedade, devendo esta participação representar pelo menos 25% do referido capital. Nos termos desse regime, é concedida a essa participação uma isenção e o valor residual é considerado em apenas 65%. Inicialmente, estes benefícios aplicavam-se apenas a sociedades com sede ou direção no território nacional, mas não a sociedades com sede e direção no estrangeiro. Na sequência do acórdão Jäger, no qual o Tribunal de Justiça considerou este regime incompatível com a livre circulação de capitais (5), o legislador nacional eliminou parcialmente a referida diferenciação, estendendo os benefícios fiscais mencionados a sociedades com sede e direção no EEE. A particularidade do presente caso consiste em que, no processo principal, ambos os elementos de conexão se encontram num Estado terceiro, situado fora da Europa. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, nessas circunstâncias, o regime controvertido é compatível com a livre circulação de capitais.

30.      Por exigências de clareza, importa definir previamente os diferentes elementos a analisar, partindo de certas considerações. A resposta à questão prejudicial exige, em primeiro lugar, que se determine se as disposições relativas à livre circulação de capitais são realmente aplicáveis. Por sua vez, isto depende da relação entre esta liberdade fundamental e as disposições relativas à liberdade de estabelecimento, que pode ser igualmente pertinente. Este parece ser um aspeto fundamental da análise, que é decisivo para a etapa posterior. Só depois é possível determinar os critérios jurídicos aplicáveis para apreciar a compatibilidade do regime controvertido com o direito da União. Atendendo a que a livre circulação de capitais é a única entre as liberdades fundamentais que abrange situações que apresentam elementos de conexão com países terceiros, a questão da justificação de uma eventual restrição só se coloca se esta liberdade fundamental não for excluída por outra.

B —    Liberdade fundamental aplicável

1.      Critérios de delimitação

31.      Para responder à questão de saber que liberdade fundamental constitui o critério pertinente de apreciação, há que examinar quais as disposições do direito da União que são principalmente afetadas (6). Neste contexto, importa proceder a uma apreciação de conjunto, incluindo o objeto do regime nacional controvertido (7), o seu objetivo mais amplo e também os vínculos de participação efetivos no processo principal.

32.      Em princípio, um regime nacional deve ser examinado à luz de uma única das duas liberdades fundamentais, quando a outra está totalmente subordinada à primeira e pode ser considerada juntamente com ela (8). Isto verifica-se quando os efeitos do regime nacional sobre o exercício de uma liberdade fundamental representam apenas a consequência inevitável da restrição de outra liberdade fundamental, afetada em primeira linha pelo referido regime (9). Pelo contrário, se não for possível distinguir claramente qual é a liberdade fundamental principalmente afetada, porque o regime afeta diretamente as duas liberdades fundamentais em questão, ambas as liberdades são pertinentes do mesmo modo (10).

33.      O regime nacional controvertido tem por objeto as consequências fiscais de uma aquisição mortis causa. Os impostos diretos — entre os quais se conta o imposto sucessório, aqui em causa — são, em princípio, da competência dos Estados-Membros. Contudo, o Tribunal de Justiça esclareceu que os Estados-Membros só podem exercer as suas competências neste domínio respeitando o direito da União, em especial as liberdades fundamentais (11). Deste modo, não está excluída a análise, pelo Tribunal de Justiça, da compatibilidade do regime controvertido com o direito da União. Coloca-se, assim, apenas a questão de saber quais as repercussões que pode ter sobre a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento.

2.      Efeitos do regime nacional sobre as liberdades fundamentais

a)      Livre circulação de capitais

i)      Aplicabilidade material

34.      Relativamente à livre circulação de capitais importa, em todo o caso, constatar que o âmbito de aplicação desta liberdade fundamental é afetado, uma vez que no processo principal se verifica uma aquisição mortis causa. Essa situação está abrangida pela livre circulação de capitais, como a seguir explicarei em detalhe.

35.      O Tratado não contém nenhuma definição do conceito de «movimentos de capitais». Contudo, dado que o artigo 63.° TFUE reproduz, no essencial, o conteúdo do artigo 1.° da Diretiva 88/361 e embora esta diretiva se baseie nos artigos 69.° e 70.°, n.° 1, do Tratado CEE (os artigos 67.° a 73.° do Tratado CEE foram substituídos pelos artigos 73.°-B a 73.°-G do Tratado CE, posteriormente pelos artigos 56.°CE a 60.° CE, atualmente artigos 63.° TFUE a 66.° TFUE), segundo jurisprudência assente, a nomenclatura dos movimentos de capitais no anexo a esta diretiva mantém o seu valor indicativo para a definição do conceito de «movimentos de capitais» (12).

36.      A este respeito, o Tribunal de Justiça afirmou, designadamente, que as sucessões, através das quais é transmitido para uma ou várias pessoas o património deixado por uma pessoa falecida, são abrangidas pela rubrica XI do anexo I da Diretiva 88/361, com a epígrafe «Movimentos de capitais de caráter pessoal», e declarou que as aquisições mortis causa constituem movimentos de capitais; excetuam-se os casos em que os seus elementos constitutivos se circunscrevem ao interior de um único Estado-Membro (13).

37.      A livre circulação de capitais é afetada por regimes nacionais em matéria de imposto sucessório, porque é adquirido um património situado noutro Estado. O Tribunal de Justiça vê nas aquisições mortis causa a transação transfronteiriça que é condição para a aplicabilidade da livre circulação de capitais (14). Com efeito, a sucessão mortis causa consiste na transmissão, para uma ou mais pessoas, do património deixado por uma pessoa falecida ou, por outras palavras, na transmissão, para os herdeiros, dos direitos e deveres que integram esse património.

38.      Uma situação na qual uma pessoa que, à data da sua morte, reside num Estado-Membro, deixa em herança a outra pessoa, residente no mesmo Estado-Membro, imóveis situados noutro Estado-Membro, não constitui de modo algum, no entender do Tribunal de Justiça, uma situação puramente interna (15). O mesmo sucede em casos como o presente, em que o de cujus deixou à sua única herdeira 100% das participações numa sociedade de capitais com sede num Estado terceiro. Acresce que os herdeiros de participações numa sociedade estabelecida num Estado terceiro são abrangidos, em princípio, pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, dado que esta última também é garantida face a países terceiros, nos termos do artigo 63.°, n.° 1, TFUE. Logo, a sucessão em causa no processo principal é uma transação transfronteiriça, que corresponde à definição acima referida de «movimentos de capitais».

39.      Nestas condições, deve considerar-se que um regime como o que está em causa no processo principal pode, em princípio, estar abrangido pelas disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais.

ii)    Restrição

40.      O artigo 63.°, n.° 1, TFUE proíbe, em termos gerais, as restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros. Resulta de jurisprudência constante que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que têm como efeito diminuir o valor da sucessão de um residente num Estado que não seja o Estado-Membro em que se encontram os bens em causa e que tributa a sucessão dos mesmos (16).

41.      No caso em apreço, o regime controvertido exclui as participações sociais da isenção prevista no § 13a, n.° 1, ponto 1, da ErbStG e da avaliação a um valor reduzido nos termos do § 13a, n.° 2, da ErbStG, quando a sede e a direção da sociedade em causa se encontram no estrangeiro. Deste modo, a herança que inclui participações nessas sociedades recebe um tratamento menos favorável, do ponto de vista do sujeito passivo, em comparação com uma herança que inclui participações em sociedades com sede ou direção no território nacional. Do ponto de vista dos herdeiros, isto constitui, em última análise, uma diminuição do valor da herança e, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais.

b)      Liberdade de estabelecimento

42.      Atendendo ao seu objetivo específico e ao seu objeto, é possível, contudo, que o regime nacional controvertido esteja também abrangido pelo âmbito de aplicação da liberdade de estabelecimento.

i)      O critério da influência efetiva sobre a sociedade

43.      A favor desta tese, pode militar que este regime não se aplica em geral a cada situação em que as participações sociais são adquiridas mortis causa, mas apenas a situações bem definidas. Nos termos do § 13a, n.os 1 e 2, em conjugação com o n.° 4, ponto 3, da ErbStG, os benefícios fiscais sob a forma da isenção e da avaliação a um valor reduzido só são aplicáveis «se o de cujus detinha uma participação direta superior a um quarto do capital nominal de uma sociedade». A restrição da sua aplicabilidade a participações sociais a partir de determinada percentagem pode ter, como examinarei a seguir, consequências para a delimitação entre a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento.

44.      A liberdade de estabelecimento nos termos dos artigos 49.° e segs. TFUE refere-se ao estabelecimento de pessoas singulares ou coletivas noutro Estado-Membro para exercer uma atividade não assalariada. Isto deve ser entendido como o exercício efetivo de uma atividade económica através de uma instalação permanente noutro Estado-Membro, por um período indeterminado (17). O conceito de estabelecimento é muito amplo; ele implica a possibilidade de um nacional da União participar, de modo estável e contínuo, na vida económica de um Estado-Membro diferente do seu Estado de origem (18).

45.      O acórdão Baars (19) é o mais apropriado para compreender a natureza da liberdade de estabelecimento, e isto no caso específico, aqui em apreço, da participação de um acionista numa sociedade de capitais. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou aplicáveis as disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento num caso em que o cidadão de um Estado-Membro, no qual também residia, detinha 100% das participações no capital de uma sociedade com sede noutro Estado-Membro. O Tribunal de Justiça fundamentou a sua decisão indicando que essa participação confere ao seu titular uma tal influência efetiva sobre as decisões da sociedade, que lhe permite determinar as respetivas atividades. Tendo em conta que a liberdade de estabelecimento abrange, designadamente, a constituição e a gestão de empresas, em especial de sociedades, num Estado-Membro pelo nacional de outro Estado-Membro, a aplicação das normas de direito primário relativas a esta liberdade fundamental numa situação como a descrita, na qual o acionista tem uma função importante dentro da sociedade, deve igualmente ser considerada correta.

46.      Desde o acórdão Baars, já referido, a jurisprudência reconhece que as normas nacionais sobre a detenção de participações, que permitem exercer uma influência efetiva sobre as decisões da sociedade em causa e determinar as suas atividades, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação material das disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento (20). Esta jurisprudência deve entretanto ser considerada assente. Por esta razão, é igualmente lógico que o regime nacional em causa seja examinado para determinar se é também abrangido pelas normas relativas à liberdade de estabelecimento. Nesse caso, tendo em conta o objetivo do legislador, deveria visar participações que permitem ao acionista exercer uma influência efetiva sobre a sociedade, na aceção da jurisprudência. A este respeito, coloca-se a questão de saber se o limiar fixado pelo legislador nacional, de mais de 25% do capital nominal de uma sociedade, pode ser considerado suficientemente elevado para satisfazer as exigências da jurisprudência.

47.      Está fora de dúvida que as referidas normas nacionais apenas fixam uma participação mínima, a partir da qual os benefícios fiscais devem ser concedidos. Logo, é evidente que o regime nacional pode abranger também uma situação na qual o acionista, como no caso em apreço, detém uma participação muito superior no capital da sociedade. Precisamente num caso como o do processo principal, no qual a recorrente afetada detém uma participação a 100% no capital da sociedade, não devem restar dúvidas de que a sua influência sobre as decisões da sociedade é, segundo os critérios fixados pelo direito alemão das sociedades e pelos estatutos, considerável se não total. Considero que são aplicáveis ao presente processo as conclusões do Tribunal de Justiça no acórdão Baars, tendo em conta os paralelos existentes entre as situações de facto nos dois processos. Como o Tribunal de Justiça acertadamente declarou no acórdão Baars, quem detém tal influência sobre uma sociedade exerce o seu direito de estabelecimento (21). Pelo contrário, não é possível aplicar as disposições relativas à livre circulação de capitais. Logo, sobre esta última deve prevalecer a liberdade de estabelecimento.

48.      No entanto, por uma questão de exaustividade, e indo para além das circunstâncias fácticas do processo principal, isto não impede de tecer algumas considerações fundamentais sobre o nível desse limiar. É certo que uma participação de mais de 25% do capital nominal não garante necessariamente a possibilidade de determinar as atividades da sociedade. É mais importante saber como estão repartidas as participações na sociedade (22). Contudo, como o Governo alemão argumentou, de maneira convincente, remetendo para as normas pertinentes do direito nacional das sociedades, mesmo uma participação relativamente modesta de pelo menos 25% permite ao seu titular influir no destino da sociedade de capitais. Com efeito, tal participação confere ao seu titular uma minoria de bloqueio em caso de decisões importantes que determinem o curso a seguir pela empresa. Por exemplo, qualquer modificação dos estatutos de uma sociedade anónima nos termos do § 179, n.° 2, primeiro período, da Aktiengesetz (Lei sobre as sociedades anónimas, a seguir «AktG») (23) deve ser adotada mediante decisão da assembleia geral de acionistas, com uma maioria de pelo menos três quartos do capital social representado na votação. Assim, uma modificação dos estatutos pode ser impedida pela recusa de uma minoria de pelo menos 25% do capital social representado. De modo semelhante, no caso de uma sociedade de responsabilidade limitada, para a qual qualquer modificação dos estatutos requer, por força do § 53, n.° 2, da Gesetz betreffend die Gesellschaften mit beschränkter Haftung, a seguir «GmbHG») (24) uma decisão dos sócios que reúna uma maioria de três quartos dos votos emitidos. Se esta maioria não for alcançada, não é tomada qualquer decisão no sentido de alterar os estatutos.

49.      É possível que o legislador alemão tenha atendido a estas considerações ao fixar de maneira vinculativa o limiar a partir do qual os benefícios fiscais devem ser concedidos. Como resulta das alegações do Governo alemão (25) e da Comissão (26), esses benefícios fiscais aplicavam-se precisamente aos herdeiros de participações sociais substanciais. Esse regime tinha por objetivo reduzir a sua carga fiscal e encorajá-los a exercer uma atividade empresarial. Isto permitiria, em última análise, garantir a sobrevivência da empresa e a manutenção dos postos de trabalho durante a fase, considerada crítica, da transmissão da empresa no quadro de uma sucessão. Contudo, isto pressupõe uma influência efetiva sobre a empresa, de modo que os destinatários dos benefícios só deviam ser os herdeiros dessas participações, que conferem poder decisório aos seus titulares. As conclusões a tirar de um exame das disposições do direito das sociedades e do direito fiscal alemão confirmam, deste modo, o entendimento de que este regime visa precisamente as participações que conferem uma influência efetiva sobre uma sociedade, na aceção da jurisprudência.

50.      Uma apreciação à luz da jurisprudência atual conduz ao mesmo resultado. Remeto para o processo Lasertec (27), no qual a medida nacional controvertida se aplicava a situações em que uma sociedade estrangeira participava em mais de 25% na sociedade estabelecida no território nacional. A interessada detinha, além disso, dois terços do capital social, de modo que era aplicável a liberdade de estabelecimento. No processo Truck Center (28), a medida nacional controvertida limitava-se a participações de pelo menos 25%. A interessada detinha 48% do capital, o que, no entender do Tribunal de Justiça, lhe garantia uma influência efetiva. Esta jurisprudência aponta para que logo a exigência mínima legal de mais de 25% do capital nominal de uma sociedade basta para que seja aplicável a liberdade de estabelecimento. Por maioria de razão, isto é válido quando o acionista, como no caso vertente, detém mesmo uma participação de 100% no capital da sociedade.

51.      Dado que no processo principal se deve partir do princípio de que existe uma influência efetiva sobre a sociedade, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça são aplicáveis, em princípio, as disposições relativas à liberdade de estabelecimento.

ii)    Quanto às objeções à aplicabilidade dessa jurisprudência ao caso vertente

52.      Na sua decisão de reenvio (29), o órgão jurisdicional de reenvio expressa contudo dúvidas quanto à aplicabilidade dessa jurisprudência ao presente caso. Sublinha que as decisões que moldaram essa jurisprudência se referiam não à tributação de heranças, mas a outras situações. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio parece dar preferência a uma aplicação das disposições relativas à livre circulação de capitais. Entende que a liberdade de estabelecimento é, quando muito, afetada de maneira indireta e, por isso, não pode excluir a aplicação da livre circulação de capitais. O órgão jurisdicional de reenvio reconhece, porém, que compete ao Tribunal de Justiça esclarecer definitivamente essa questão.

53.      Quanto às dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio, importa recordar que o Tribunal de Justiça já aplicou esta jurisprudência, no acórdão Geurts e Vogten (30), a um regime nacional em matéria de imposto sucessório. Esse regime dizia respeito a sociedades familiares, nas quais o de cujus — eventualmente em conjunto com familiares próximos — detinha pelo menos 50% do capital social, o que lhe conferia uma influência efetiva sobre as decisões da sociedade em causa e lhe permitia determinar as suas atividades. O de cujus detinha conjuntamente com a sua mulher, em parte indiretamente, em parte diretamente, 100% do capital de uma sociedade com sede noutro Estado-Membro. Por conseguinte, eram aplicáveis as disposições relativas à liberdade de estabelecimento.

54.      Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o regime controvertido afetava principalmente a liberdade de estabelecimento e estava abrangido apenas pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas a esta liberdade. O Tribunal de Justiça entendeu que, supondo que tal medida tenha efeitos restritivos sobre a livre circulação de capitais, esses efeitos seriam a consequência inevitável de um eventual entrave à liberdade de estabelecimento e não justificam um exame da referida medida à luz das disposições relativas à livre circulação de capitais (31). Logo, o acórdão Geurts e Vogten, já referido, mostra claramente que, quando é principalmente afetada a liberdade de estabelecimento, esta deve prevalecer sobre a livre circulação de capitais.

55.      Este acórdão mostra ainda que não se descortina qualquer motivo para não aplicar a referida jurisprudência a situações em que está em causa o imposto sucessório. Isto não é contrariado pelo facto de as aquisições mortis causa constituírem uma forma especial de movimentos de capitais. Por um lado, nas aquisições mortis causa verifica-se uma transmissão de participações, como qualquer outra, e uma participação numa empresa está sempre relacionada com uma transferência de capital. Por outro lado, há que ter em conta que, como a Comissão acertadamente assinala, o regime em matéria de imposto sucessório afeta diretamente os interesses dos herdeiros, pelo que é necessário igualmente ter em conta o ponto de vista destes últimos (32). Neste contexto, importa sublinhar que o herdeiro, na sequência da transmissão dos direitos, se encontra na mesma situação que qualquer outro acionista de uma sociedade. Com efeito, o herdeiro substitui o de cujus no que toca ao objeto da sucessão. Logo, dispõe das mesmas liberdades fundamentais, decorrentes do direito da União, que o de cujus quando era, ele próprio, acionista da sociedade. Neste sentido, mantém toda a sua relevância a distinção, efetuada pelo Tribunal de Justiça, entre as chamadas participações de carteira e as participações que permitem ao seu titular determinar as atividades da sociedade em causa. Esta última situação é equiparável, para todos os efeitos, a um estabelecimento do herdeiro noutro Estado.

56.      Cabe ainda referir que o acórdão Busley e Cibrian Fernandez (33), contrariamente ao entendimento do órgão jurisdicional de reenvio, não contém indicações úteis para apreciar a relação entre ambas as liberdades fundamentais, tanto mais que as afirmações do Tribunal de Justiça se referiam exclusivamente às circunstâncias do caso concreto. Nesse processo, o Tribunal de Justiça não tinha qualquer motivo para examinar a questão da aplicabilidade da liberdade de estabelecimento, dado que os factos subjacentes se referiam a um elemento diferente da herança — a saber, um imóvel e não, como no caso em apreço, a uma participação social. O mesmo é válido para os outros acórdãos referidos na decisão de reenvio: Eckelkamp (34), Arens-Sikken (35) e Mattner (36). Deste modo, o Tribunal de Justiça decidiu também nestes processos que as aquisições mortis causa de imóveis estão, em princípio, abrangidas pelas disposições relativas à livre circulação de capitais. Em si mesma, esta jurisprudência não é contestável. Contudo, é pouco útil para apreciar a situação no processo principal.

57.      Uma análise mais detalhada revela, portanto, que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio são infundadas. Assim, não descortino argumentos convincentes contra a transposição dos princípios da jurisprudência Baars para o processo principal. Daqui resulta que um regime nacional como o que está em causa no processo principal também é abrangido, em princípio, pelo âmbito material de aplicação da liberdade de estabelecimento.

3.      Conclusão provisória

58.      Atendendo às considerações precedentes, há que constatar que o regime nacional controvertido afeta, em princípio, quer a livre circulação de capitais quer a liberdade de estabelecimento.

C —    Delimitação entre as liberdades fundamentais

59.      Após ter examinado de maneira detalhada os efeitos do regime controvertido sobre a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento, coloca-se a questão de saber se uma das duas liberdades fundamentais foi principalmente afetada. Para este fim, há que apreciar o regime nacional no seu conjunto, e do ponto de vista da relação entre as diferentes disposições.

60.      Em primeiro lugar, é relevante o facto de que estes regimes visam exclusivamente participações sociais que conferem ao titular influência efetiva sobre a sociedade. Isto leva a pensar que é diretamente afetada a liberdade de estabelecimento e não a livre circulação de capitais. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, já examinada, sobre a delimitação entre as duas liberdades fundamentais, numa situação deste tipo, a liberdade de estabelecimento deve prevalecer sobre a livre circulação de capitais.

61.      Ao examinar esta questão é necessário atender também ao regime constante do § 13, n.° 5, da ErbStG, que impõe ao herdeiro como requisito da concessão dos benefícios fiscais — na medida em que a sociedade tenha sede ou direção num Estado do EEE — a obrigação de manter a empresa efetivamente pelo menos durante cinco anos e de não vender as suas participações. Este regime prevê ainda a supressão retroativa dos benefícios para a hipótese de o herdeiro não respeitar essas condições. Ele visa manifestamente situações nas quais o herdeiro, no exercício da sua liberdade de estabelecimento, participa de modo contínuo na vida económica de outro Estado. Em particular, estabelece que o herdeiro tem de continuar a dirigir a empresa, e isto por um período de tempo considerável. A perspetiva da supressão retroativa dos benefícios destina-se a garantir que o herdeiro, na sua nova qualidade de empresário, atue a longo prazo em conformidade com as exigências do legislador nacional. Ao oferecer ao herdeiro estímulos económicos para manter a empresa, a lei incita-o a aceitar o papel de empresário. Se ele não quiser perder os benefícios fiscais, a sua margem de manobra é consideravelmente limitada, sobretudo quanto à possibilidade de vender participações sociais ou também de decidir uma transferência da sede da sociedade para fora do EEE. Atendendo precisamente às consequências pretendidas para o herdeiro, que adquiriu uma posição tão importante na empresa do de cujus que lhe permite dirigir a atividade comercial desta, uma restrição à livre circulação de capitais parece constituir apenas uma consequência inevitável de um entrave à liberdade de estabelecimento.

62.      Resulta das considerações precedentes que o regime nacional controvertido afeta sobretudo a liberdade de estabelecimento e está abrangido apenas pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado que se referem a esta liberdade fundamental. Como o Tribunal de Justiça decidiu no acórdão Geurts e Vogten numa situação semelhante (37) já não é preciso examinar se eventuais restrições à livre circulação de capitais são compatíveis com os artigos 63.° TFUE a 65.° TFUE.

63.      Isto é válido também quando, como no processo principal, o estabelecimento em causa se encontra num Estado terceiro e as disposições relativas à liberdade de estabelecimento não são por isso aplicáveis (38).

64.      Atendendo ao que precede, concluo que a recorrente no processo principal não pode invocar a livre circulação de capitais para desfrutar dos benefícios fiscais previstos no direito nacional. Com efeito, apenas as normas de direito primário relativas à liberdade de estabelecimento constituem o critério jurídico à luz do qual deve ser apreciada a compatibilidade do regime nacional controvertido com o direito da União. Contudo, a recorrente no processo principal não pode invocar estas normas, porque a conexão transfronteiriça no caso vertente se estabelece exclusivamente com o Canadá como Estado terceiro.

65.      Por conseguinte, em relação ao objeto da questão prejudicial importa também constatar que as normas de direito primário relativas à livre circulação de capitais não se opõem a um regime nacional como o que está aqui em causa que, relativamente ao cálculo do imposto sucessório sobre uma herança, prevê que uma participação, incluída no património privado, como sócio único, de uma sociedade de capitais com sede e direção no Canadá, seja tomada em consideração pelo seu valor integral, ao passo que a aquisição de uma participação deste tipo numa sociedade de capitais com sede ou direção no território nacional beneficia de uma isenção em função dos bens e o valor residual é considerado em apenas 65% do seu montante.

VII — Conclusão

66.      Com base nas considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo ao pedido prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof:

«O artigo 63.°, n.° 1, TFUE (ex-artigo 56.°, n.° 1, CE), em conjugação com o artigo 65.° TFUE (ex-artigo 58.° CE), deve ser interpretado no sentido de que não se opõe ao regime de um Estado-Membro que, relativamente ao cálculo do imposto sucessório sobre uma herança, prevê que uma participação, incluída no património privado, como sócio único, de uma sociedade de capitais com sede e direção no Canadá, seja tomada em consideração pelo seu valor integral, ao passo que a aquisição de uma participação deste tipo numa sociedade de capitais com sede ou direção no território nacional beneficia de uma isenção em função dos bens e o valor residual é considerado em apenas 65% do seu montante.»


1 – Língua original das conclusões: alemão


      Língua do processo: alemão


2 –      JO L 178, p. 5.


3 – Versão publicada em 27 de fevereiro de 1997 (BGBl. 1997 I, p. 378), com alterações posteriores.


4 –      Acórdão de 17 de janeiro de 2008 (C-256/06, Colet., p. I-123).


5 –      Acórdão já referido na nota 4 (n.° 56).


6 –      V. conclusões do advogado-geral S. Alber de 14 de outubro de 1999 no processo Baars (C-251/98, acórdão de 13 de abril de 2000, Colet., p. I-2787, n.os 28 a 30).


7 –      V. acórdãos de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas (C-196/04, Colet., p. I-7995, n.os 31 a 33); de 3 de outubro de 2006, Fidium Finanz (C-452/04, Colet., p. I-9521, n.os 34 e 44 a 49); de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation (C-374/04, Colet., p. I-11673, n.os 37 e segs.); e Test Claimants in the FII Group Litigation (C-446/04, Colet., p. I-11753, n.° 36); de 13 de março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation (C-524/04, Colet., p. I-2107, n.os 26 a 34); e de 10 de fevereiro de 2011, Haribo e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08, Colet., p. I-305, n.° 34).


8 –      V. acórdãos de 24 de março de 1994, Schindler (C-275/92, Colet., p. I-1039, n.° 22); de 22 de janeiro de 2002, Canal Satélite Digital (C-390/99, Colet., p. I-607, n.° 31); de 25 de março de 2004, Karner (C-71/02, Colet., p. I-3025, n.° 46); de 14 de outubro de 2004, Omega (C-36/02, Colet., p. I-9609, n.° 26); de 26 de maio de 2005, Burmanjer e o. (C-20/03, Colet., p. I-4133, n.° 35); e Fidium Finanz, já referido na nota 7 (n.° 34).


9 –      V. acórdãos Omega, já referido na nota 8 (n.° 27); Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, já referido na nota 7 (n.° 33); Fidium Finanz, já referido na nota 7 (n.° 48); despachos de 10 de maio de 2007, Lasertec (C-492/04, Colet., p. I-3775, n.° 25); de 10 de maio de 2007, A e B (C-102/05, Colet., p. 1-3871, n.° 27); acórdãos de 18 de julho de 2007, Oy AA (C-231/05, Colet., p. 1-6373, n.° 24); de 25 de outubro de 2007, Geurts e Vogten (C-464/05, Colet., p. I-9325, n.° 16); de 15 de maio de 2008, Lidl Belgium (C- 414/06, Colet., p. I-3601, n.° 16); de 26 de junho de 2008, Burda (C-284/06, Colet., p. I-4571, n.° 74); de 26 de março de 2009, Comissão/Itália (C-326/07, Colet., p. I-2291, n.° 39); de 18 de junho de 2009, Aberdeen Property Fininvest Alpha (C-303/07, Colet., p. I-5145, n.° 35); e de 11 de março de 2010, Attanasio Group (C-384/08, Colet., p. I-2055, n.° 40).


10 –      V. acórdãos de 24 de maio de 2007, Holböck (C-157/05, Colet., p. I-4051, n.° 24); Comissão/Itália, já referido na nota 9 (n.° 36); e de 11 de novembro de 2010, Comissão/Portugal (C-543/08, Colet., p. I-11241, n.° 43).


11 –      V. acórdãos de 7 de setembro de 2004, Manninen (C-319/02, Colet., p. I-7477, n.° 19); de 14 de setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer (C-386/04, Colet., p. I-8203, n.° 15); de 29 de março de 2007, Rewe Zentralfinanz (C-347/04, Colet., p. I-2647, n.° 21); e Jäger, já referido na nota 4 (n.° 23).


12 –      V. acórdãos de 16 de março de 1999, Trummer e Mayer (C-222/97, Colet., p. I-1661, n.° 21); de 5 de março de 2002, Reisch e o. (C-519/99 a C-524/99 e C-526/99 a C-540/99, Colet., p. I-2157, n.° 30); de 23 de fevereiro de 2006, Van Hilten-van der Heijden (C-513/03, Colet., p. I-1957, n.° 39); Fidium Finanz, já referido na nota 7 (n.° 41); e de 10 de fevereiro de 2011, Missionswerk Werner Heukelbach (C-25/10, Colet., p. I-497, n.° 15). A interpretação do conceito de «movimentos de capitais» na acepção do artigo 63.° TFUE constitui um exemplo de interpretação sistemática de atos jurídicos de graus diferentes dentro da hierarquia das normas do direito da União. Neste contexto, o Tribunal de Justiça procede à interpretação do direito primário recorrendo ao direito derivado adotado para esse efeito (v., a este respeito, Grundmann, S., «Inter-Instrumental-Interpretation, Systembildung durch Auslegung im Europäischen Unionsrecht», Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, vol. 75, 2011, p. 898).


13 –      V. acórdão Jäger, já referido na nota 4 (n.° 25).


14 –      V. acórdão de 11 de dezembro de 2003, Barbier (C-364/01, Colet., p. I-15013, n.° 58), e acórdão Hilten-van der Heijden, já referido na nota 12 (n.os 41 e 42).


15 –      V. acórdão Jäger, já referido na nota 4 (n.° 26).


16 –      V. acórdãos Van Hilten-van der Heijden, já referido na nota 12 (n.° 44); Jäger, já referido na nota 4 (n.° 32); e Missionswerk Werner Heukelbach, já referido na nota 12 (n.° 22).


17 –      V. acórdãos de 25 de julho de 1991, Factortame II e o. (C-221/89, Colet., p. I-3905, n.° 20), e de 30 de novembro de 1995, Gebhard (C-55/94, Colet., p. I-4165, n.° 25).


18 –      V. acórdãos Gebhard, já referido na nota 17 (n.° 25), e de 7 de setembro de 2006, N (C-470/04, Colet., p. I-7409, n.° 26).


19 –      Acórdão Baars, já referido na nota 6.


20 –      V. acórdãos de 23 de outubro de 2007, Comissão/Alemanha (C-112/05, Colet., p. I-8995, n.° 13); Comissão/Itália, já referido na nota 9 (n.° 34); de 21 de outubro de 2010, Idryma Typou (C-81/09, Colet., p. I-10161, n.° 47); Comissão/Portugal, já referido na nota 10 (n.° 41); e de 10 de novembro de 2011, Comissão/Portugal (C-212/09, Colet., p. I-10889, n.° 43).


21 –      V. acórdão Baars, já referido na nota 6 (n.° 22).


22 –      V. acórdão Comissão/Itália, já referido na nota 9 (n.° 38).


23 – Aktiengesetz, de 6 de setembro de 1965 (BGBl. 1965 I, p. 1089), modificada mais recentemente pelo artigo 2.°, n.° 49, da Lei de 22 de dezembro de 2011 (BGBl. 2011 I, p. 3044).


24 – Gesetz betreffend die Gesellschaften mit beschränkter Haftung, tal como publicada na sua versão corrigida no Bundesgesetzblatt, parte III, n.° 4123-1, modificada mais recentemente pelo artigo 2.°, n.° 51, da Lei de 22 de dezembro de 2011 (BGBl. 2011 I, p. 3044).


25 –      V. n.° 60 das observações escritas do Governo alemão.


26 –      V. n.° 50 das observações escritas da Comissão.


27 – Despacho Lasertec, já referido na nota 9.


28 –      Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C-282/07, Colet., p. I-10767).


29 – V. p. 8 da decisão de reenvio.


30 – Acórdão Geurts e Vogten, já referido na nota 9.


31 –      Acórdão Geurts e Vogten, já referido na nota 9 (n.° 16).


32 –      V. nota 48 das observações escritas da Comissão.


33 –      Acórdão de 15 de outubro de 2009, Busley e Cibrian Fernandez (C-35/08, Colet., p. I-9807).


34 –      Acórdão de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp (C-11/07, Colet., p. I-6845).


35 –      Acórdão de 11 de setembro de 2008, Arens-Sikken (C-43/07, Colet., p. I-6887).


36 –      Acórdão de 22 de abril de 2010, Mattner (C-510/08, Colet., p. I-3553).


37 –      V. n.° 54 das presentes conclusões.


38 –      V. despachos Lasertec, já referido na nota 9 (n.° 27); de 6 de novembro de 2007, Stahlwerk Ergste Westig (C-415/06, n.° 13); e acórdão Holböck, já referido na nota 10 (n.° 28). V., mutatis mutandis, quanto às relações entre a livre prestação de serviços e a livre circulação de capitais, acórdão Fidium Finanz, já referido na nota 7 (n.° 50).