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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 7 de setembro de 2017 ( 1 )

Processo C-251/16

Edward Cussens

John Jennings

Vincent Kingston

contra

T. G. Brosnan

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court (Irlanda)]

«IVA — Evasão fiscal — Aplicabilidade direta do princípio da proibição do abuso de direito reconhecido no acórdão Halifax e o. (C-255/02

I. Introdução

1.

As autoridades fiscais não se enamoram facilmente. Existe (ou, pelo menos, é possível defender que existe) uma importante exceção a esta regra: o acórdão de 2006 proferido no processo Halifax ( 2 ), em que o Tribunal de Justiça confirmou a existência do princípio da proibição de práticas abusivas no domínio da legislação em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA). Esse acórdão parece ter sido acolhido apaixonadamente pelas autoridades fiscais dos Estados-Membros.

2.

Porém, como acontece frequentemente, é provável que a verdadeira natureza do objeto de uma ligação emocional súbita permaneça algo indistinta e desconhecida durante algum tempo ( 3 ). O mesmo se aplica à proibição de práticas abusivas, também designada por proibição do abuso de direito, em matéria de IVA. Não obstante ter sido confirmado expressamente há mais de uma década e, desde então, ter sido objeto de amplo debate e análise académica, pode dizer-se que a aplicação específica desse princípio, nomeadamente o critério preciso a utilizar para determinar a existência de abuso, é ainda algo incipiente.

3.

O presente processo convida o Tribunal de Justiça a debruçar-se sobre as condições de aplicação e os efeitos práticos desse princípio no contexto de um pedido de decisão prejudicial da Supreme Court (Irlanda).

4.

Edward Cussens, John Jennings e Vincent Kingston (a seguir «recorrentes») construíram 15 casas de férias numa zona de Cork, na Irlanda e deram em locação os imóveis em causa a uma sociedade sua associada, pelo prazo de vinte anos e um mês. De acordo com o direito irlandês, o arrendamento por vinte anos foi tratada como primeira cessão de um bem imóvel. Foi cobrado IVA sobre o valor capitalizado do arrendamento. Esse contrato foi rescindido passado um mês e os imóveis foram vendidos pelos recorrentes a terceiros. Em conformidade com o direito irlandês, essas vendas não estavam sujeitas a IVA, que só era devido sobre a primeira cessão, ou seja, o arrendamento de longa duração. Posteriormente, a autoridade fiscal irlandesa concluiu que a primeira cessão (o arrendamento de longa duração) era uma construção artificial e constituía abuso de direito. Por conseguinte, esse arrendamento devia ser ignorado para efeitos de IVA e este imposto devia ser cobrado sobre a venda subsequente a terceiros, como se tivesse sido a primeira cessão. Daí resultaria o pagamento pelos recorrentes de um montante de IVA significativamente mais elevado.

5.

A decisão da autoridade fiscal foi objeto de recurso e o processo chegou à Supreme Court da Irlanda. A Supreme Court coloca oito questões ao Tribunal de Justiça. Com as questões 1 e 2, pergunta se o princípio de direito da União da proibição do abuso de direito tem efeito direto e prevalece sobre os princípios da segurança jurídica e das expectativas legítimas. Caso o princípio da proibição do abuso de direito tenha efeito direto, com as questões 4 e 7 pede esclarecimentos sobre as suas condições de aplicação. Se tais condições estiverem satisfeitas no caso presente, com a questão 3 interroga-se sobre como podem as operações ser reinterpretadas e reavaliadas para efeitos de IVA. Com as questões 5, 6 e 8, interroga-se sobre as consequências da incompatibilidade de uma disposição específica de direito interno com a Sexta Diretiva IVA 77/388/CEE ( 4 ).

II. Quadro jurídico

A. Direito da União

1.  Diretiva 77/388 («Sexta Diretiva IVA»)

6.

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Sexta Diretiva IVA ( 5 ), «[a]s entregas de bens e as prestações de serviços, efetuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade» estão sujeitas ao IVA.

7.

O artigo 4.o, n.o 3, estabelece que:

«Os Estados-Membros podem também considerar sujeito passivo qualquer pessoa que realize, a título ocasional, uma operação relacionada com as atividades referidas no n.o 2 e, designadamente, uma das seguintes operações:

a)

A entrega de um edifício ou de parte de um edifício e do terreno da sua implantação, efetuada anteriormente à primeira ocupação; os Estados-Membros podem definir as modalidades de aplicação deste critério às transformações de imóveis e, bem assim, a noção de terreno da sua implantação.

Os Estados-Membros podem aplicar critérios diferentes do da primeira ocupação, tais como o do prazo decorrido entre a data de conclusão do imóvel e a da primeira entrega, ou o do prazo decorrido entre a data da primeira ocupação e a da entrega posterior, desde que tais prazos não ultrapassem, respetivamente, cinco e dois anos.

Por edifício entende-se qualquer construção incorporada no terreno;

b)

A entrega de um terreno para construção.

Por terrenos para construção entendem-se os terrenos, urbanizados ou não, tal como são definidos pelos Estados-Membros.»

8.

O artigo 5.o, com a epígrafe «Entregas de bens», estipula que:

«1.   Por “entrega de um bem” entende-se a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário.

[…]

3.   Os Estados-Membros podem considerar bens corpóreos:

a)

Determinados direitos sobre bens imóveis;

b)

Os direitos reais que conferem ao respetivo titular um poder de utilização sobre bens imóveis;

c)

As participações e ações cuja posse confira, de direito ou de facto, a propriedade ou o gozo de um bem imóvel ou de uma fração de um bem imóvel.»

9.

O artigo 13.o da Sexta Diretiva IVA, sob a epígrafe «Isenções no território do país», dispõe o seguinte:

«[…]

B) Outras isenções

Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas com o fim de assegurar a aplicação correta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso:

[…]

g)

As entregas de edifícios ou de partes de edifícios e do terreno da sua implantação, com exceção dos indicados no n.o 3, alínea a), do artigo 4.o»

B. Direito irlandês

10.

Nos termos da section 4 da Lei do IVA de 1972 (Value Added Tax Act 1972), na versão em vigor à data dos factos:

«(1)

(a)

A presente section aplica-se aos bens imóveis —

(i)

que tenham sido objeto de transformação pela pessoa que efetua a entrega ou por sua conta; […]

(b)

Na presente section, entende-se por “direito”, em relação aos bens imóveis, a propriedade ou um direito de propriedade que foi constituído por um prazo não inferior a dez anos […]; a referência à cessão de um direito compreende a referência à constituição de um direito […].

(2)

[…] para efeitos da presente lei considerar-se-á que foi efetuada uma entrega de bens imóveis se, e apenas se, uma pessoa que seja titular de um direito sobre os bens imóveis aos quais se aplica a presente section dispuser (nomeadamente através de restituição ou cessão), relativamente à totalidade ou a qualquer parte desses bens, de tal direito ou de um direito dele decorrente.

[…]

(4)

Quando uma pessoa que é titular de um direito sobre os bens imóveis aos quais se aplica a presente section dispuser, relativamente à totalidade ou a qualquer parte desses bens, de um direito decorrente daquele direito em condições tais que retenha o direito de reversão sobre o direito alienado, considerar-se-á, no que respeita ao direito de reversão retido, para efeitos da section 3(1)(f), que essa pessoa afetou os bens ou parte deles, conforme o caso, a um fim alheio ao da sua atividade.

[…]

(6)

Não obstante o disposto na presente section ou na section 2, não será cobrado imposto sobre a entrega de bens imóveis —

(a)

relativamente aos quais não existia, nem teria existido, não fora a section 3(5)(b)(iii), a favor da pessoa que efetua a entrega, um direito à dedução ao abrigo da section 12, em relação a qualquer imposto suportado ou pago pela entrega ou pela transformação dos bens; ou

(b)

cuja ocupação seja anterior à data indicada e não tenham sido objeto de transformação entre essa data e a data da entrega, salvo no caso da entrega dos bens imóveis a que se aplicam as disposições da subsection (5).

[…]

(9)

Quando a cessão de direitos sobre bens imóveis seja tributável e os mesmos bens não tenham sido objeto de transformação desde a data da cessão dos referidos direitos (adiante designados na presente subsection por “direitos sujeitos a tributação”), qualquer cessão de direitos sobre os bens em causa posterior à referida data por parte de outra pessoa que não o adquirente dos direitos sujeitos a tributação é considerada, para os efeitos da presente lei, uma entrega de bens imóveis a que se aplica a subsection (6).»

11.

De acordo com a section 10(9) da Lei do IVA (na versão aplicável em 2002):

«(a)

No caso das entregas de bens imóveis e da prestação de serviços que consistam na transformação de bens imóveis, o valor de qualquer direito sobre os bens alienados no âmbito da entrega é incluído no preço.

(b)

O valor de qualquer direito sobre bens imóveis é o preço normal de mercado do mesmo direito. Desde que a restituição ou a cessão de um direito sobre bens imóveis constitua uma entrega de bens imóveis sujeita a imposto, o preço normal de mercado desse direito será determinado como se a pessoa que procedeu à restituição ou cedeu esse direito tivesse disposto de um direito sobre tais bens que tivesse sido constituído para o período compreendido entre a data da restituição ou da cessão e a data em que o direito objeto da restituição ou da cessão teria caducado, não fora a sua restituição ou cessão.»

12.

A regulation 19 das Value Added Tax Regulations 1979 (S.I. n.o 63 de 1979) (Regulamento relativo ao imposto sobre o valor acrescentado de 1979), conforme alteradas, continha regras adicionais sobre a avaliação para efeitos de IVA das operações relativas a bens imóveis e dispunha o seguinte:

«(2)

Quando uma pessoa que é titular de um direito sobre bens imóveis (no presente n.o designada por “alienante”) dispuser, relativamente à totalidade ou a qualquer parte desses bens, de um direito decorrente daquele direito em condições tais que retenha o direito de reversão sobre o direito alienado (no presente n.o designado por “direito de reversão”), aplicar-se-ão as seguintes disposições:

(a)

o valor do direito de reversão será determinado deduzindo o valor do direito alienado ao valor do direito total do alienante sobre os bens ou a parte dos bens alienados, à data da alienação; e

(b)

se, nos termos do contrato de alienação, o direito for alienado (ou considerado alienado) por um prazo igual ou superior a vinte anos, o valor do direito de reversão não será tomado em consideração.»

III. Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

13.

Os recorrentes são coproprietários de um terreno em Cork, onde construíram 15 casas de férias (a seguir «imóveis»). Conforme referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, para reduzir o montante do IVA a pagar pela venda dos imóveis, efetuaram certas operações prévias com uma sociedade sua associada, a Shamrock Estates Limited («SEL») (a seguir «operações prévias à alienação dos imóveis»).

14.

Em 8 de março de 2002, os recorrentes celebraram com a SEL um contrato de arrendamento dos imóveis pelo prazo de vinte anos e um mês (a seguir «arrendamento de longa duração»). Os imóveis foram subarrendados aos recorrentes pelo prazo de dois anos (a seguir «arrendamento de curta duração»).

15.

Em 3 de abril de 2002, ambos os contratos de arrendamento foram rescindidos pelas partes e os recorrentes recuperaram a propriedade plena dos imóveis. Em maio de 2002, os recorrentes venderam os imóveis a terceiros.

16.

De acordo com a regra geral, as primeiras entregas de bens imóveis na Irlanda estão sujeitas a IVA. As entregas subsequentes estão isentas. No caso de entregas sob a forma de alienações da propriedade plena, é cobrado IVA sobre o preço de venda. Na Irlanda, as locações de duração superior a vinte anos são tratadas como entregas de bens imóveis ( 6 ). Nesses casos, o IVA é cobrado sobre o seu valor capitalizado.

17.

Caso os imóveis tivessem sido vendidos diretamente pelos recorrentes (ou seja, sem as operações prévias à alienação dos imóveis), teria havido lugar ao pagamento de IVA no montante de 125746,00 euros sobre essa venda. Porém, os recorrentes declararam IVA no montante de 40000,00 euros sobre a arrendamento de longa duração, que constituiu a primeira entrega dos imóveis, e tanto a arrendamento de curta duração como a reversão posterior à rescisão dos contratos de arrendamento e a subsequente venda dos imóveis em maio de 2002 estiveram isentas de IVA.

18.

A autoridade fiscal irlandesa considerou que as operações prévias à alienação dos imóveis eram uma construção artificial e deviam ser ignoradas para efeitos da liquidação do IVA. Por conseguinte, o montante de IVA devido pela venda dos imóveis era de 125746,00 euros (menos os 40000,00 euros já pagos).

19.

Os recorrentes impugnaram a liquidação e o litígio foi levado à Supreme Court da Irlanda, que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Tem o princípio do abuso de direito, nos termos em que é reconhecido no acórdão Halifax do Tribunal de Justiça como sendo diretamente aplicável no âmbito do IVA, efeitos diretos em relação a um particular, na falta de uma medida nacional, legislativa ou judicial, que o torne efetivo, em circunstâncias como as do caso vertente, em que a reclassificação de operações prévias à alienação dos imóveis e das próprias operações de alienação dos mesmos (coletivamente designadas como operações dos recorrentes) nos termos propugnados pelos Commissioners, dá origem a tributação dos recorrentes em sede de IVA, tributação essa a que não há lugar em conformidade com a correta aplicação das disposições da legislação nacional vigentes das operações dos recorrentes?

2)

Caso a resposta à questão (1) seja afirmativa, e o princípio do abuso do direito tenha efeitos diretos em relação a um particular, mesmo na falta de uma medida nacional, legislativa ou judicial, que o torne efetivo, era o referido princípio suficientemente claro e preciso para poder ser aplicado às operações dos recorrentes, as quais foram concluídas antes de o Tribunal de Justiça proferir o acórdão Halifax, e tendo em conta, em especial, os princípios da segurança jurídica e da proteção das legítimas expectativas dos recorrentes?

3)

Caso o princípio do abuso do direito seja aplicável às operações dos recorrentes e estas tenham, por consequência, de ser reclassificadas,

a)

qual o mecanismo legal aplicável para efeitos de liquidação e de cobrança do IVA devido sobre as operações dos recorrentes, atendendo a que, à luz da legislação nacional, não há lugar a tributação, a liquidação ou a cobrança de IVA, e

b)

de que forma devem os tribunais nacionais garantir o cumprimento da referida obrigação fiscal?

4)

Ao determinar se a finalidade essencial das operações dos recorrentes consistiu em obter uma vantagem fiscal, deve o tribunal nacional considerar as operações prévias à alienação dos imóveis (que se apurou terem sido efetuadas unicamente por motivos fiscais) isoladamente, ou o objetivo das operações dos recorrentes deve ser apreciado no seu conjunto?

5)

Deve a section 4(9) da Lei do IVA ser tratada como legislação nacional que transpõe a Sexta Diretiva, apesar de ser incompatível com o artigo 4.o, n.o 3, da Sexta Diretiva, cuja correta aplicação levaria a que os recorrentes fossem tratados como sujeitos passivos no que se refere às entregas efetuadas antes da primeira ocupação dos imóveis, não obstante ter havido uma cessão prévia sujeita a imposto?

6)

Se a section 4(9) for considerada incompatível com a Sexta Diretiva, constitui a sua invocação pelos recorrentes um abuso do direito, contrário aos princípios consignados no acórdão Halifax?

7)

Em alternativa, se a section 4(9) não for considerada incompatível com a Sexta Diretiva, obtiveram os recorrentes uma vantagem fiscal contrária aos objetivos prosseguidos pela Diretiva e/ou pela section 4?

8)

Se a section 4(9) não for tratada como disposição de transposição da Sexta Diretiva, é o princípio do abuso de direito tal como consagrado no acórdão Halifax aplicável, não obstante, às operações em questão no que respeita aos critérios definidos pelo Tribunal de Justiça no dito acórdão?»

20.

Foram apresentadas observações escritas pelos recorrentes, conjuntamente pelo Governo irlandês e pelo representante da autoridade fiscal irlandesa (designado por «recorrido»), pelo Governo italiano e pela Comissão. As partes interessadas que participaram na fase escrita, à exceção do Governo italiano, apresentaram observações orais na audiência de 27 de abril de 2017.

IV. Apreciação

21.

As oito questões do órgão jurisdicional de reenvio podem ser agrupadas em quatro temas diferentes:

possibilidade de o princípio da proibição do abuso de direito ser aplicável no caso vertente (questões 1 e 2) (v. secção B, infra);

condições de aplicação do princípio, a saber: como identificar a finalidade essencial da operação (questão 4) e o objetivo da Sexta Diretiva IVA e da legislação nacional de transposição (questão 7) (v. secção C, infra);

consequências do abuso para efeitos da reclassificação e da reavaliação das operações (questão 3) (v. secção D, infra);

consequências da eventual declaração de que a section 4(9) da Lei do IVA é incompatível com a diretiva ou não a transpõe (questões 5, 6 e 8) (v. secção E, infra).

22.

Analisarei sucessivamente cada um destes temas. Porém, antes de iniciar uma análise aprofundada, importa fazer duas observações preliminares sobre terminologia.

A. Nota terminológica

23.

No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional nacional utiliza o termo «abuso de direito» («abuse of rights»). Efetivamente, essa expressão é frequentemente utilizada pelo Tribunal de Justiça, tanto no domínio do IVA como noutros domínios importantes. Contudo, globalmente, na prática o Tribunal de Justiça emprega na sua jurisprudência um grande número de expressões que designam fenómenos semelhantes ou idênticos. Essas expressões incluem a referência ao «princípio da proibição de práticas abusivas» ( 7 ), à proibição de os particulares se «prevalecer[em], fraudulenta ou abusivamente, das normas da União» ou de estas serem «alargada[s] a ponto de cobrir as práticas abusivas» ( 8 ). Outro vocabulário, como «evasão» ( 9 ), «subtração» ( 10 ) e «expedientes puramente artificiais», é igualmente comum ( 11 ).

24.

No meu entender, o termo «abuso de direito» é mais adequado para as situações que dizem respeito às relações entre particulares, em que, por exemplo, uma parte exerce direitos de propriedade existentes ou emergentes de contrato de forma pouco razoável, mal intencionada ou lesiva. Portanto, é inquestionável que a parte é titular desses direitos (no sentido de que lhe assistem legalmente); o que pode ser problemático é a forma como essa parte os exerce.

25.

Essa situação é diferente do alegado tipo de abuso em apreço no presente processo, em que existe efetivamente um litígio acerca do âmbito de aplicação de normas jurídicas da União e acerca da possibilidade de estas normas estarem a ser invocadas de uma forma «artificial», que não respeita a finalidade legislativa ( 12 ).

26.

Por outras palavras, no domínio do direito público o conceito mais pertinente para captar o que está verdadeiramente em causa é «evasão», e não o conceito, essencialmente de direito privado, de «abuso de direito». No entanto, tendo em conta que o termo «abuso» é agora amplamente utilizado na jurisprudência e na linguagem da União, também o utilizarei. Porém, prefiro a expressão «abuso na aplicação da lei» e utilizá-la-ei nas presentes conclusões porque, pelo menos, se aproxima um pouco mais do caráter de direito público daquele conceito.

27.

Além disso, a ausência de uma terminologia normalizada revela uma maior diversidade na abordagem e na aplicação da proibição do abuso na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Na verdade, evidencia uma questão mais importante: existe um princípio geral de proibição do abuso na aplicação da lei ou existe um princípio específico para cada domínio?

28.

Por exemplo, no domínio do IVA, a natureza «artificial» das operações é uma condição essencial. Com efeito, a posição básica da Comissão nesta questão — conquanto expressa de uma forma algo velada — é essencialmente a de que a artificialidade das operações equivale a abuso se reduzir a responsabilidade em sede de IVA. Pelo contrário, no domínio da liberdade de circulação, por exemplo, a artificialidade reveste menos (e por vezes nenhuma) importância ( 13 ).

29.

No meu entender, é justo reconhecer a existência dessa diversidade e não pretender que existe um princípio monolítico da União de proibição do abuso na aplicação da lei ( 14 ). Significa isso que existe um princípio único de proibição do abuso na aplicação da lei que é aplicável de forma diferente em domínios distintos? Ou significa afinal que existem vários princípios para domínios específicos?

30.

Apesar de ser uma questão fascinante, não se me afigura necessário abordá-la aqui pormenorizadamente. Em termos práticos, a resposta é essencialmente uma questão de definição e do correspondente nível de abstração a selecionar para esse efeito. A um nível de abstração elevado pode efetivamente existir uma protoideia unificadora do princípio do abuso, cuja sombra indistinta cintila algures na parede da caverna da alegoria de Platão. Contudo, quando se procura obter uma imagem mais nítida e se observam, em especial, as condições específicas do abuso nos domínios concretos do direito, uma considerável diversidade torna-se visível.

31.

Por esses motivos, nas presentes conclusões, que não se prendem com a conceção de novos princípios grandiosos mas com questões mundanas de contornos práticos, empregarei o termo «princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA» para analisar as suas condições e a sua aplicação no domínio específico do IVA.

B. Primeira e segunda questões: aplicabilidade do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA

32.

A primeira e segunda questões do órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito, essencialmente, ao grau de precisão do princípio de direito da União que proíbe o abuso na aplicação da lei em sede de IVA e à sua aplicação temporal. À data dos factos do processo principal, este princípio e as suas condições de aplicação eram suficientemente precisos para poderem ser aplicados na prática no presente processo?

33.

Trata-se de uma interrogação legítima, especialmente considerando que o acórdão proferido no processo Halifax, que aplicou pela primeira vez o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA, é posterior aos factos do processo principal. Contudo, as questões do órgão jurisdicional de reenvio estão formuladas em termos de efeito direto, de ausência de medidas de aplicação e da possibilidade de um princípio geral de direito ter efeito direto em relação a um particular. Conforme explicarei na presente secção, a questão do efeito direto não é, em termos técnicos, pertinente em relação à jurisprudência do Tribunal de Justiça, nem em relação à jurisprudência que confirma a existência de um princípio geral de direito.

34.

A presente secção encontra-se estruturada da seguinte forma: primeiro, analisarei, em geral, a natureza e a ausência de aplicação (legislativa) da jurisprudência do Tribunal de Justiça e dos princípios gerais de direito da União por ela estabelecidos (1); seguidamente, examinarei as potenciais limitações temporais das decisões do Tribunal de Justiça (2); por último, conjugarei estas duas vertentes e aplicá-las-ei ao presente processo (3).

1.  Aplicação e efeitos temporais da jurisprudência e dos princípios gerais

35.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à aplicação temporal da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a regra geral é a do efeito retrospetivo incidental: o Tribunal de Justiça fornece uma interpretação das disposições de direito da União ex tunc, e essa interpretação torna-se imediatamente aplicável a todos os processos pendentes (e excecionalmente até aos processos encerrados ( 15 )) em que se aplique essa disposição. A jurisprudência esclarece e precisa o significado e o alcance das normas de direito da União tal como devem ou deveriam ter sido entendidas e aplicadas desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que as normas assim interpretadas podem ser aplicadas mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão ou acórdãos relevantes ( 16 ).

36.

No tocante à potencial aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a interpretação jurisprudencial das disposições legais feita pelo Tribunal de Justiça é «enxertada» nessas disposições. Em conformidade com a separação de poderes ( 17 ) ou com a «atribuição horizontal e vertical» de poderes ( 18 ), a tarefa do Tribunal de Justiça consiste em determinar e não em fazer a lei ( 19 ).

37.

Por essas razões, a jurisprudência da União não tem de ser «aplicada» para produzir efeitos. Por vezes, a jurisprudência pode estar (parcialmente) codificada. Outras vezes, essa jurisprudência será tida em consideração aquando da aprovação de versões novas da legislação relevante ou da sua alteração. Tudo isso é possível, mas nada disso constitui uma condição prévia da aplicabilidade dessa jurisprudência. A jurisprudência não carece de ser aplicada pela via legislativa para produzir efeitos.

38.

Em segundo lugar, no tocante aos princípios gerais, podia certamente ser sugerido que, tratando-se de princípios que são gerais, se aplicariam sem quaisquer limitações uma vez «descoberta» a sua existência. Enquanto tal, não dependem de nenhuma legislação que lhes dê origem ou atribua efeitos, nem das limitações temporais dessa mesma legislação.

39.

Contudo, não creio que a ausência total de limites temporais à aplicação dos princípios gerais seja uma premissa muito racional, em vários aspetos. Deixando de lado todas as questões teóricas e ontológicas, há também algumas questões práticas. Uma, em particular, se destaca: se a existência de um princípio geral de direito da União só pode ser perentoriamente confirmada por uma decisão do Tribunal de Justiça cujos efeitos temporais estão, eles mesmos, limitados, pode o próprio princípio geral estabelecido pela mesma decisão gozar não apenas do mesmo efeito retrospetivo incidental, mas essencialmente de integral aplicação retroativa para lá das regras normalmente aplicáveis à jurisprudência do Tribunal de Justiça?

40.

Portanto, para todos os efeitos práticos, um princípio geral de direito da União cuja existência tenha sido confirmada por uma decisão do Tribunal de Justiça compartilhará, no tocante aos dois elementos fundamentais aqui referidos, as mesmas características da jurisprudência do Tribunal de Justiça: aplicar-se-á igualmente aos processos pendentes e não carecerá de implementação específica para produzir efeitos.

41.

Pelas razões supra, o «efeito direto» e a transposição específica não constituem condições prévias da aplicação dos princípios gerais de direito da União ( 20 ). Na avaliação das operações, as regras da União em matéria de IVA e as regras nacionais que as transpõem devem ser aplicadas à luz e no respeito desses princípios gerais estabelecidos pela jurisprudência, nomeadamente o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA. É esse, aliás, o caso das operações que foram efetuadas antes do acórdão Halifax, mas cuja avaliação ainda estava em curso à data da prolação desse acórdão.

2.  Limitações temporais

42.

Em determinadas ocasiões, o Tribunal de Justiça já limitou temporalmente os efeitos das suas decisões. Essas limitações possuem caráter excecional ( 21 ). O Tribunal de Justiça só o faz por razões imperativas de segurança jurídica ( 22 ) e sob duas condições, a saber, a «boa-fé dos meios interessados e o risco de graves perturbações [provocadas pelo acórdão]» ( 23 ). Acresce que, caso já exista jurisprudência sobre a matéria, o Tribunal de Justiça não imporá tais limitações ( 24 ).

43.

Há um tema comum a todas estas condições e à sua aplicação: a previsibilidade. É por esse motivo que, por exemplo, o Tribunal de Justiça pode impor excecionalmente limitações temporais apenas no primeiro processo em que forneceu determinada interpretação da lei, mas não nas decisões subsequentes que confirmam a mesma posição. Por outro lado, há que reconhecer também que, em geral, quanto mais a interpretação da lei pelo Tribunal de Justiça se afastar da letra das disposições interpretadas, mais difícil será talvez sustentar a regra da plena aplicação ex tunc dessas decisões judiciais ( 25 ).

3.  Aplicação ao processo em apreço

44.

As considerações gerais formuladas nas secções 1 e 2, supra servem de base para a resposta à primeira e segunda questões do órgão jurisdicional de reenvio.

45.

Desde o acórdão Halifax, o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA (sujeito ao preenchimento das condições «objetiva» e «subjetiva») passou a ser aplicável a todos os casos pertinentes, sem necessidade de adoção pelos Estados-Membros de medidas específicas de implementação desse princípio.

46.

Concretamente, para efeitos da avaliação das operações, as autoridades fiscais do Estado-Membro devem interpretar e aplicar a Sexta Diretiva IVA e as medidas nacionais que a transpõem à luz desse princípio. É também esse o caso relativamente às apreciações em curso à data da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça no processo Halifax mas que respeitavam a operações anteriores a esse acórdão.

47.

Compreendo os receios do órgão jurisdicional de reenvio de que essa abordagem, ainda que totalmente conforme às regras gerais relativas aos efeitos temporais da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima explanadas, possa suscitar questões de segurança jurídica. Todavia, no meu entender, o caso vertente claramente não constitui um caso excecional do tipo que poderia justificar a limitação dos efeitos temporais do acórdão Halifax. A esse respeito, gostaria de salientar, em especial, cinco pontos.

48.

Em primeiro lugar, a proibição das «práticas abusivas» ou do «abuso de direito» tem sido aplicada pelo Tribunal de Justiça desde os anos 1970 em vários domínios importantes e em termos não específicos desses domínios ( 26 ). A utilização lata desse conceito vem confirmar o seu «caráter de transversalidade que é característica dos princípios gerais de direito» ( 27 ).

49.

Em segundo lugar, desde 1977 várias disposições da Sexta Diretiva IVA, incluindo o artigo 13.o, B, continham referências expressas à prevenção do abuso ( 28 ). Por conseguinte, depois da leitura das disposições da Sexta Diretiva IVA, o facto de a proibição da evasão e do abuso ser inerente ao regime dessa diretiva não é surpreendente. Em termos mais gerais, a proibição do abuso na aplicação da lei foi também expressamente propugnada pelo legislador, há mais de duas décadas, no Regulamento n.o 2988/95, como um requisito de proteção dos interesses financeiros da União ( 29 ).

50.

Em terceiro lugar, a proibição no regulamento acima referido estabelecia duas condições para a determinação do abuso: uma condição objetiva (o preenchimento da finalidade legislativa) e uma condição subjetiva (o caráter artificial das operações) ( 30 ). Em 2000 (ou seja, antes dos factos do processo principal), o Tribunal de Justiça já tinha identificado no acórdão Emsland-Stärke precisamente as mesmas condições que estão subjacentes à proibição geral do abuso na aplicação da lei. Quando, em 2006, confirmou no acórdão Halifax que essas condições também se aplicavam no domínio do IVA, o Tribunal de Justiça não as alterou ( 31 ).

51.

Conforme já foi reconhecido ( 32 ), existem diferenças quando o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei é aplicado em domínios distintos. Efetivamente, o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Halifax foi a primeira confirmação explícita das condições e da aplicação do princípio no domínio do IVA. Não obstante, tendo em conta todos os aspetos já analisados, não constituiu seguramente uma interpretação surpreendente ou revolucionária desse princípio, que se tenha afastado da jurisprudência existente. Além disso, foi uma interpretação coerente com as referências à prevenção do abuso que já constavam da Sexta Diretiva IVA e do regulamento relativo à proteção dos interesses financeiros da União.

52.

Em quarto lugar, a limitação dos efeitos de um acórdão no tempo já apresenta alguns desafios em termos de objetividade da lei ( 33 ). Portanto, qualquer decisão de limitar os efeitos temporais de um acórdão deve ser tomada exclusivamente no próprio acórdão. Uma vez que tal limitação não foi imposta no próprio acórdão Halifax, é difícil compreender por que motivo, salvo circunstâncias verdadeiramente excecionais, deveria ser imposta dez anos depois e em relação a um processo diferente.

53.

Em quinto lugar, conforme acima referido ( 34 ), uma das condições prévias da limitação dos efeitos temporais de um acórdão é a da boa-fé das partes que pretendem beneficiar dessa limitação. É verdade que a «má-fé» não constitui uma condição autónoma para a determinação do abuso (e efetivamente não há qualquer sugestão de que os recorrentes tenham agido de má-fé). No entanto, na medida em que as condições objetiva e subjetiva para a determinação do abuso estejam preenchidas, afigura-se algo incoerente concluir que, ainda assim, o contribuinte tenha atuado totalmente de boa-fé para justificar a medida excecional de limitar os efeitos temporais de um acórdão do Tribunal de Justiça.

54.

Por último, conforme já confirmado pelo Tribunal de Justiça, nos casos em que as condições da existência de abuso estão preenchidas, o contribuinte não pode invocar a segurança jurídica ou a confiança legítima para, de alguma forma, legitimar esse abuso ( 35 ).

55.

Por conseguinte, não vislumbro qualquer motivo para limitar os efeitos do acórdão Halifax em relação ao presente processo.

4.  Conclusão

56.

À luz das conclusões precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira e segunda questões do órgão jurisdicional de reenvio nos seguintes termos:

As disposições da Sexta Diretiva IVA e as medidas nacionais que transpõem essa diretiva devem ser interpretadas à luz do princípio geral de direito da União da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA. O mesmo é válido:

na falta de quaisquer medidas nacionais, legislativas ou judiciais, que «tornem efetivo» esse princípio;

em processos como o que está pendente no órgão jurisdicional de reenvio, em que as operações pertinentes foram efetuadas antes da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de fevereiro de 2006 no processo Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121).

C. Quarta e sétima questões: condições de aplicação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA

57.

Com as suas questões quarta e sétima, o órgão jurisdicional de reenvio pede orientações sobre as condições de determinação do abuso na aplicação da lei. Não obstante, em última análise, competir ao órgão jurisdicional nacional a determinação do preenchimento dessas condições ( 36 ), o Tribunal de Justiça pode ajudar a clarificar o modo como essas condições devem ser interpretadas e aplicadas.

1.  As duas condições para a determinação da existência de abuso na aplicação da lei nos processos relativos ao IVA

58.

Para poder ser declarada a existência de uma prática abusiva, a autoridade fiscal do Estado-Membro tem o ónus da prova do preenchimento daquelas duas condições.

59.

Primeiro, é necessário que seja evidente que «as operações em causa, apesar da aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Sexta Diretiva e da legislação nacional que transpõe essa diretiva, tenham por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seria contrária ao objetivo prosseguido por essas disposições» (a seguir «condição objetiva»). Por outro lado, «deve igualmente resultar de um conjunto de elementos objetivos que as operações em causa têm por finalidade essencial a obtenção de uma vantagem fiscal» (a seguir «condição subjetiva») ( 37 ).

60.

Essas duas condições são autónomas, distintas e cumulativas. No meu entender, isso resulta inequivocamente da forma como são estabelecidas, em geral, na jurisprudência do Tribunal de Justiça e interpretadas em função das situações factuais específicas. A condição «objetiva» respeita à finalidade legislativa propugnada pelo legislador e à determinação do seu preenchimento. A condição «subjetiva» respeita ao objetivo prático das operações efetuadas. De seguida, analisá-las-ei sucessivamente.

2.  Condição objetiva: a vantagem fiscal contraria a finalidade das «disposições pertinentes»?

61.

Com a questão 7, pergunta-se se os recorrentes obtiveram uma vantagem fiscal que contraria a finalidade da legislação nacional e da diretiva. O Tribunal de Justiça apenas é competente para responder a essa questão na medida em que diz respeito à finalidade da diretiva.

62.

A título de observação preliminar, pode ser tentador para uma autoridade fiscal afirmar que a finalidade da Sexta Diretiva IVA consiste na transferência de dinheiro dos contribuintes para o Estado. Qualquer decréscimo nas receitas fiscais, e, consequentemente qualquer «otimização fiscal», seria incompatível com essa finalidade geral da legislação fiscal.

63.

Essa afirmação é obviamente incorreta. O Tribunal de Justiça já confirmou em várias ocasiões que «a opção, para um empresário, entre operações isentas e operações tributáveis pode basear-se num conjunto de elementos, designadamente em considerações de natureza fiscal relativas ao regime objetivo do IVA […] [;] o sujeito passivo tem o direito de escolher a estrutura da sua atividade de forma a limitar a sua dívida fiscal» ( 38 ).

64.

Por outras palavras, não existe qualquer obrigação de pagar o máximo montante possível de imposto. Portanto, a «finalidade» visada pela condição objetiva do critério Halifax não pode simplesmente consistir na finalidade geral de toda a legislação fiscal: cobrar impostos. Qual poderá ser então a «finalidade»específica neste contexto?

a)  Jurisprudência sobre a finalidade das «disposições pertinentes»

65.

Começarei por fazer uma observação elementar acerca da redação da questão, que é fundamental para o raciocínio subsequente, a saber: a jurisprudência não faz referência ao não preenchimento da finalidade «da diretiva», em termos gerais, mas sim das suas «disposições pertinentes» ( 39 ). Assim o confirma largamente a aplicação prática da condição pelo Tribunal de Justiça ( 40 ). Por conseguinte, a conclusão de que a condição objetiva está preenchida exige, em princípio: i) a identificação das «disposições pertinentes»; ii) da finalidade dessas disposições; e iii) a demonstração de que essa finalidade não foi satisfeita ( 41 ).

66.

Uma análise mais atenta da jurisprudência revela que o critério acima referido da finalidade é tratado de formas ligeiramente distintas. Para ilustrar esta afirmação e para preparar o terreno para a apreciação da finalidade das disposições pertinentes no caso presente, indico a seguir três exemplos no domínio do IVA: Halifax, Part Service e WebMindLicences ( 42 ).

67.

No acórdão Halifax, o receio da existência de abuso resultou essencialmente do facto de as operações terem sido estruturadas de tal modo que as sociedades do grupo Halifax puderam manter o estatuto de isenção relativamente ao imposto a jusante e, no entanto, deduzir todo o IVA a montante em relação a essas operações. O Tribunal de Justiça interpretou os artigos 17.o, n.os 2, 3 e 5, da Diretiva IVA no sentido de que o direito à dedução do IVA a montante, lido à luz do princípio da neutralidade fiscal, exige uma relação entre uma operação a jusante e uma operação a montante ( 43 ). Seria contrário ao objetivo dessas disposições permitir que um sujeito passivo que, por sistema, não efetua nenhuma operação conforme às disposições relativas às deduções deduzisse a totalidade do IVA pago a montante ( 44 ).

68.

No processo Part Service ( 45 ), as sociedades em causa tinham fracionado os contratos de locação financeira de veículos em partes separadas (designadamente, o seguro, o financiamento, a intermediação e a locação). O Tribunal de Justiça invocou a regra segundo a qual, quando existem várias operações formalmente distintas, essas operações têm, ainda assim, de ser avaliadas conjuntamente sempre que «no termo de uma análise ainda que meramente objetiva, se verifica que [existe uma única entrega]» ( 46 ). Nesses casos, o tratamento autónomo das entregas em sede de IVA seria «contrário ao objetivo do artigo 11.o, A, n.o 1, alínea a) da Sexta Diretiva, ou seja, a tributação de tudo o que constitua a contrapartida recebida ou a receber do locatário» ( 47 ).

69.

No acórdão WebMindLicences ( 48 ), as sociedades em causa tinham efetuado um conjunto de operações das quais resultava que, à primeira vista, as licenças relevantes eram concedidas a partir de Portugal e não da Hungria (onde a taxa de IVA para esses tipos de operações era muito mais elevada). No acórdão proferido nesse processo, o Tribunal de Justiça centrou-se na finalidade das disposições específicas da Diretiva 2006/112 que definiam o lugar da prestação de serviços ( 49 ) e concluiu que não existiria abuso se os serviços fossem efetivamente prestados em Portugal. Todavia, «o mesmo já não sucede se a prestação de serviços é, na realidade, efetuada [na Hungria]».

70.

Assim, em todos os casos acima referidos, é evidente que a finalidade das disposições específicas da diretiva aplicável foi tida em conta e deve mesmo ser tida em conta para determinar se a «condição objetiva» foi satisfeita.

b)  Fusão das duas condições proposta pela Comissão

71.

Nenhuma das peças processuais indica clara e expressamente quais as «disposições pertinentes» para efeitos da identificação de um eventual abuso no caso vertente.

72.

Na audiência, a Comissão referiu o conjunto ou grupo de disposições em matéria de IVA pertinentes para o presente processo e citou o artigo 2.o, n.o 1, o artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e o artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA. A Comissão afirmou ainda na audiência que a finalidade dessas disposições consiste em assegurar a «correta aplicação» do «tratamento fiscal normal» das operações.

73.

Concordo que essas são as disposições aplicáveis ( 50 ), mas não considero que isso constitua uma declaração convincente da sua finalidade. A Comissão limita-se a apresentar um argumento circular.

74.

Evidentemente, é desejável que todas as disposições da Sexta Diretiva IVA sejam aplicadas corretamente, de tal forma que as operações sejam objeto de um tratamento fiscal normal. Mas a questão concreta que aqui se coloca é: em que consiste uma avaliação correta? No caso presente, o problema todo resulta do facto de haver uma avaliação «tecnicamente» correta. Nas palavras do acórdão Halifax, houve uma «aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Sexta Diretiva» ( 51 ) a todas as operações.

75.

Quando instada a esse respeito na audiência, a Comissão clarificou que pretendia dizer que a finalidade das disposições pertinentes é a tributação da operação real ou substantiva. Uma vez que o arrendamento de longa duração e o arrendamento de curta duração não eram reais, mas fictícios, devem ser ignorados.

76.

Por agora, aceitarei que a Comissão está certa e que a finalidade dessas disposições é a tributação das «operações reais ou substantivas». Se for esse o caso, na prática a ênfase passa a incidir totalmente sobre a segunda condição «subjetiva» ou de «artificialidade» do critério para a determinação da existência de abuso estabelecido nos acórdãos Emsland-Stärke e Halifax. Por conseguinte, caso essa condição seja satisfeita e uma operação seja efetivamente artificial (não seja «real» ou «substantiva»), a fortiori a aplicação das regras em matéria de IVA a essas operações não pode prosseguir a sua finalidade ( 52 ).

77.

A questão de saber quais são as operações «reais» ou «substantivas» e quais, pelo contrário, são «artificiais» ou «fictícias» torna-se absolutamente determinante. As duas condições convertem-se numa só.

78.

Na minha perspetiva, existem alguns problemas importantes nessa abordagem. Destacarei quatro.

79.

Em primeiro lugar, a primeira vertente do critério Halifax é, na prática, suprimida. Não creio que essa seja a abordagem correta, mas, a sê-lo, importa afirmá-lo expressamente. Conforme confirmado, por exemplo, no acórdão Halifax, «como o Tribunal de Justiça recordou por diversas vezes, a legislação comunitária deve igualmente ser certa e a sua aplicação previsível para os particulares[…] [.] Este imperativo de segurança jurídica impõe-se com especial vigor quando se trata de uma regulamentação suscetível de comportar encargos financeiros, a fim de permitir aos interessados que conheçam com exatidão o alcance das obrigações que lhes são impostas» ( 53 ).

80.

É indiscutível que existe uma certa tensão entre o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei e o princípio da legalidade e da segurança jurídica. Por conseguinte, é importante que as suas condições de aplicação sejam o mais claras possível ( 54 ). Refiro ainda que o raciocínio acima exposto para justificar a aplicação imediata do acórdão Halifax aos processos pendentes assentou parcialmente no pressuposto de que as condições para a determinação da existência do abuso eram claras, pelo menos a partir de 2000, ou seja, a data da prolação do acórdão Emsland-Stärke ( 55 ). Caso as duas condições enunciadas nesse acórdão sejam agora fundidas numa só condição, no meu entender esse pressuposto deixa de ser válido.

81.

Em segundo lugar, ainda que se defendesse que as duas condições tecnicamente continuam a ser aplicáveis ( 56 ), apesar de a «artificialidade» ser o fator determinante em ambas, entendo que essa abordagem é, no mínimo, dificilmente conciliável com a abordagem seguida na jurisprudência anterior, como os acórdãos Halifax, Part Service e WebMindLicences ( 57 ), que mais claramente identificaram as disposições em causa e a sua finalidade.

82.

Em terceiro lugar, as duas condições foram enunciadas pela primeira vez no acórdão Emsland-Stärke. Nesse acórdão, e na sua formulação mais comum nos processos subsequentes, trata-se efetivamente de «copiar e colar» as condições da disposição antievasão do Regulamento n.o 2988/95, relativo à proteção dos interesses financeiros da União (artigo 4.o, n.o 3) ( 58 ). Pode ser apenas especulação, mas talvez seja justo supor que essa disposição teria sido aplicada no acórdão Emsland-Stärke se o regulamento fosse aplicável ratione temporis ( 59 ). Com efeito, desde aí, o Tribunal de Justiça tem tratado o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95 e as duas condições de existência de abuso como permutáveis ( 60 ). Num domínio já excessivamente complexo, a evolução do critério para determinar a existência de abuso nos moldes propugnados pela Comissão — implicando a fusão das condições objetiva e subjetiva — suscitaria questões difíceis sobre a forma como o regulamento e o princípio devem interagir no futuro.

83.

Por último, a aplicação das condições do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA tem forçosamente de ser modulada em alguma medida nos diversos domínios a que esse princípio se aplica. No entanto, no meu entender torna-se ainda mais difícil (ou talvez mesmo impossível) conciliar o conceito de abuso redefinido nos moldes sugeridos (um critério de artificialidade) com o conceito de abuso tal como aplicado nos outros processos. Assim, nos processos relativos à liberdade de circulação e à cidadania, a questão da artificialidade em várias ocasiões não só foi considerada não determinante como na prática foi tratada como quase irrelevante ( 61 ).

c)  Apreciação do respeito pela «finalidade» no caso presente

84.

À luz das considerações precedentes, proponho que a abordagem sugerida pela Comissão seja rejeitada e que seja adotada uma abordagem que mais rigorosamente reflita a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça.

85.

No caso presente, o alegado abuso consiste no preenchimento artificial das condições de: i) primeira entrega dos imóveis; e ii) isenção das entregas subsequentes (que constituem, na verdade, duas faces da mesma moeda).

86.

Por conseguinte, é necessário considerar a finalidade da imposição do IVA sobre as entregas «efetuada[s] anteriormente à primeira ocupação» e sua subsequente isenção, conforme refletido no artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e no artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA.

87.

A abordagem de base à imposição do IVA sobre as transferências de imóveis pode ser resumida, de forma rudimentar, como: tributação da primeira alienação; isenção das restantes. O objetivo subjacente é clarificado na proposta original da Comissão e na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

88.

A exposição de motivos anexa à proposta original da Comissão estabelecia que «a construção e a comercialização de edifícios novos devem estar sujeitas a imposto, independentemente da qualidade em que o vendedor atua. Para resolver as dificuldades de distinção entre edifícios novos e antigos, o conceito de primeira ocupação tem sido utilizado para determinar o momento em que o edifício sai do processo de produção e se converte num objeto de consumo, ou seja, quando começa a ser utilizado pelo seu proprietário ou por um locatário.» A exposição de motivos faz ainda referência aos imóveis que são «consumidos» em virtude da sua primeira ocupação e à possibilidade de um imóvel «voltar a entrar no circuito comercial» ou ser «novamente comercializado» ( 62 ).

89.

Essa redação indica que o conceito de «primeira ocupação» é equiparado à «saída do processo de produção» pelo edifício, «que se torna um objeto de consumo» ou «entra no circuito comercial».

90.

No seu acórdão no processo Goed Wonen I, o Tribunal de Justiça concebeu a isenção em termos semelhantes, afirmando que «[à] semelhança das vendas de um novo edifício consecutivas à sua primeira entrega a um consumidor final, que marca o fim do processo de produção, a locação de um bem imóvel deve, portanto, em princípio, ser isenta do imposto» (o sublinhado é meu) ( 63 ).

91.

Deste modo, a finalidade da aplicação conjugada do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e do artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA pode ser reformulada como aplicação do IVA quando o bem imóvel entra no circuito comercial pela primeira vez.

92.

No meu entender, uma transferência como a que é descrita no processo principal não respeita essa finalidade.

93.

Chego a essa conclusão com base, em especial, nos seguintes fatores conjugados (de acordo com a leitura que faço do pedido de decisão prejudicial): i) o facto de o contrato de arrendamento de longa duração ter sido celebrado com uma entidade que era controlada pelos recorrentes; ii) o facto de o contrato de arrendamento de longa duração ter sido rescindido depois de decorrido um prazo muito curto sobre a sua celebração (tendo em conta a sua duração total); e iii) o facto de, durante esse curto período de tempo, estar em vigor um subarrendamento, sob a forma da arrendamento de curta duração, com o resultado prático de que o controlo dos imóveis nunca foi efetivamente cedido pelos recorrentes, de tal modo que, considerando todas essas circunstâncias, os imóveis aparentemente nunca saíram do processo de produção.

94.

À luz das considerações precedentes, e sem prejuízo da apreciação final pelo órgão jurisdicional nacional, em casos como o que está em causa no processo principal, o tratamento de um contrato de arrendamento de longa duração entre partes associadas, que é rescindido pouco tempo depois da sua celebração e sem que os imóveis tenham sido utilizados, como uma «entrega efetuada anteriormente à primeira ocupação» seria contrário à finalidade do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e do artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA.

3.  Condição subjetiva: a finalidade essencial consistia na obtenção de uma vantagem fiscal?

95.

No tocante à «condição subjetiva», com a quarta questão o órgão jurisdicional de reenvio pergunta essencialmente se, na identificação dessa finalidade essencial, as operações prévias à alienação dos imóveis devem ser consideradas isoladamente ou como parte das operações «no seu conjunto».

96.

Afigura-se útil começar por analisar mais atentamente o significado de «finalidade essencial».

97.

O critério subjetivo é apresentado na jurisprudência sob um leque de formas diferentes. Além da «finalidade essencial» ( 64 ), alguns acórdãos referem que o «único fim» ( 65 ) ou o «único objetivo» ( 66 ) é a obtenção de uma «vantagem fiscal [abusiva]» ( 67 ). Outros combinam os dois termos: «finalidade essencial […] [que] se limita à obtenção dessa vantagem fiscal» ( 68 ). Outros ainda referem que as operações comerciais não são «normais» ( 69 ) ou, no contexto da jurisprudência mais antiga, carecem de «realidade».

98.

Todas estas expressões diferentes do critério subjetivo têm um tema comum. Em todas se pergunta: existe alguma razão de natureza económica que justifique a ação além da redução da carga fiscal? A fasquia está colocada em alturas distintas.

99.

No acórdão Part Service, o Tribunal de Justiça concluiu que pode existir abuso quando o fim «essencial» é uma vantagem fiscal ( 70 ). Daqui resulta um conceito de abuso potencialmente muito amplo. Em total contraste, nos acórdãos Halifax e Weald Leasing foi declarado que não existia abuso «nos casos em que as operações em causa possam ter alguma explicação para além da mera obtenção de vantagens fiscais» (o sublinhado é meu) ( 71 ). No acórdão Malvi, a existência de abuso exigia que as operações fossem «desprovidas de qualquer justificação económica e comercial» ( 72 ).

100.

Estes últimos acórdãos, que adotam efetivamente uma abordagem mais restritiva ao conceito de abuso, são predominantes. Refletem também a terminologia mais comummente utilizada: «finalidade essencial», «único fim» ou montagens «puramente artificiais».

101.

Na minha perspetiva, o critério subjetivo deve ser aplicado restritivamente, em consonância com a abordagem seguida em processos como Halifax e RBS. Caso as operações em causa possam ter tido alguma justificação económica que não a vantagem fiscal, o critério não estará satisfeito. Essa abordagem não só espelha a jurisprudência dominante como está em consonância com o princípio da legalidade ( 73 ), que «[se impõe] com especial vigor quando se trata de uma regulamentação suscetível de comportar encargos financeiros, a fim de permitir aos interessados que conheçam com exatidão o alcance das obrigações que lhes são impostas» ( 74 ).

102.

Tendo presente essa abordagem da «finalidade essencial», analisarei de seguida o problema específico suscitado na quarta questão do órgão jurisdicional de reenvio, a saber: precisamente a que operações respeita essa finalidade essencial?

103.

O órgão jurisdicional de reenvio propõe duas alternativas: i) as operações prévias à alienação dos imóveis; ou ii) as operações prévias à alienação dos imóveis em conjunto com a alienação final.

104.

No meu entender, a última constitui inequivocamente um quadro de referência errado. Afigura-se-me claro que, salvo nos casos de fraude fiscal (que não é alegada no presente processo), se a rede for lançada suficientemente longe, no sentido de abranger todo o processo de construção, bem como a vida subsequente do imóvel, é sempre possível encontrar alguma justificação económica que vá além da «mera» vantagem fiscal. Na verdade, essa abordagem evitaria que a condição subjetiva alguma vez fosse satisfeita.

105.

Assim, no contexto do presente processo, uma ou mais operações prévias à alienação dos imóveis será provavelmente a operação pertinente para o caso em apreço. Para além dessa observação geral, creio que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, em última análise, determinar qual a operação ou conjunto de operações relativamente ao qual a «finalidade essencial» deve ser apurada e em que consiste essa finalidade essencial.

106.

Ao fazê-lo, porém, o órgão jurisdicional de reenvio deve «[ter] em conta todos os factos e circunstâncias do caso» ( 75 ). Por outras palavras, para apreciar plenamente a «finalidade essencial» das operações prévias à alienação dos imóveis, o órgão jurisdicional de reenvio deve ter em conta mais amplamente o contexto factual.

107.

Com efeito, no caso presente, se as operações prévias à alienação dos imóveis fossem totalmente retiradas do seu contexto mais amplo, não haveria sequer uma vantagem fiscal, mas sim um encargo fiscal (uma vez que a vantagem é relativa e resulta exclusivamente da subsequente venda a terceiros).

4.  Conclusão

108.

À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda à quarta e sétima questões nos seguintes termos:

Questão 4

Num caso como o do processo principal, a «finalidade essencial» não deve ser apreciada em relação às operações prévias à alienação dos imóveis e à alienação final, no seu conjunto. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar qual a operação ou operações prévias à alienação dos imóveis relativamente às quais deve ser apreciada a «finalidade essencial» para efeitos da identificação de um eventual abuso na aplicação da lei em sede de IVA.

Questão 7

Nos casos como o do processo principal, quando:

é celebrado um contrato de arrendamento de longa duração entre dois sujeitos passivos associados;

esse contrato é rescindido num prazo muito curto após a sua celebração (tendo em conta a sua duração total); e

durante esse curto período de tempo, esteve em vigor uma sublocação, com o resultado prático de que o controlo dos imóveis locados nunca foi efetivamente cedido pelo sujeito passivo que deu o imóvel em arrendamento de longa duração;

seria contrário à finalidade do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e do artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA o tratamento da arrendamento de longa duração como uma «entrega efetuada anteriormente à primeira ocupação» na aceção do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), dessa diretiva.

D. Terceira questão: reclassificação e reavaliação das operações

109.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio essencialmente pergunta como devem ser reclassificadas as operações pertinentes se o princípio da proibição do abuso na aplicação da lei se aplicar ao caso vertente.

110.

Quando se verifique uma violação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei, as operações implicadas devem ser reclassificadas de forma a restabelecer a situação tal como ela existiria na ausência das operações constitutivas do abuso ( 76 ). Todavia, a reclassificação não deve exceder o necessário para garantir a exata cobrança do IVA e evitar a fraude ( 77 ).

111.

Em primeiro lugar, incumbe portanto ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, de acordo com as orientações fornecidas nas respostas à primeira, segunda, quarta e sétima questões, se certos elementos das operações em causa no processo principal constituíam práticas abusivas.

112.

Se for efetivamente esse o caso, compete, em segundo lugar, a esse órgão jurisdicional reclassificar essas operações de modo a restabelecer a situação que existiria na ausência dos elementos constitutivos da prática abusiva.

113.

Por conseguinte, se o órgão jurisdicional nacional concluísse, por exemplo, que as operações prévias à alienação dos imóveis constituíam uma violação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei, essas operações seriam desconsideradas para efeitos da apreciação da responsabilidade dos recorrentes em sede de IVA.

114.

Com base nos factos descritos no pedido do órgão jurisdicional de reenvio e sem prejuízo da apreciação final a efetuar por esse órgão, a alienação subsequente dos imóveis constituiria então a primeira entrega desses imóveis. Essa alienação deveria ser avaliada para efeitos de IVA em conformidade com as regras nacionais aplicáveis, interpretadas à luz do direito da União, em especial o artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e o artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA.

115.

No que respeita à dimensão institucional da terceira questão do órgão jurisdicional de reenvio, cumpre apenas reafirmar que cabe ao direito nacional identificar a instituição competente para reclassificar e reavaliar as operações pertinentes, de acordo com o princípio da autonomia processual nacional e em observância dos princípios da equivalência e da efetividade.

116.

À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão nos seguintes termos:

Quando se verifique uma violação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei, as operações implicadas devem ser reclassificadas de forma a restabelecer a situação tal como ela existiria na ausência das operações constitutivas do abuso.

Em circunstâncias como as do presente processo, na medida em que as operações prévias à alienação dos imóveis sejam desconsideradas na aplicação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei e as alienações subsequentes dos imóveis constituam, portanto, a primeira entrega desses imóveis, essas alienações devem ser avaliadas para efeitos de IVA em conformidade com as regras nacionais aplicáveis, interpretadas à luz do direito da União, em especial o artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e o artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA.

E. Quinta, sexta e oitava questões: compatibilidade da section 4(9) da Lei do IVA com a Sexta Diretiva IVA

117.

A quinta, sexta e oitava questões do órgão jurisdicional de reenvio assentam no pressuposto de que a section 4(9) da Lei do IVA é incompatível com a Sexta Diretiva IVA e (consequentemente) não a transpõe.

118.

Todavia, a fonte da incompatibilidade ou a natureza do incumprimento da obrigação de transpor a diretiva não resulta claramente do despacho de reenvio nem das alegações escritas e orais perante o Tribunal de Justiça.

119.

No caso de incumprimento total da obrigação de transposição de uma diretiva, a situação jurídica é, de certa forma, mais clara. Não existem medidas de transposição e, consequentemente, o direito nacional é incompatível com essa diretiva. Pelo contrário, no presente caso a Irlanda efetivamente adotou medidas para transpor a Sexta Diretiva. Além disso, não foi alegado que, na prática, em nenhum caso, sem exceção, a aplicação da section 4(9) da Lei do IVA «alcança o resultado» visado por essa diretiva (para utilizar a terminologia do artigo 288.o TFUE). Por conseguinte, não é possível afirmar, em termos gerais e sem reservas, que a incompatibilidade (parcial) pode ser equiparada à ausência de medidas de transposição.

120.

Na minha perspetiva, aprofundar essas questões implicaria ter um melhor conhecimento da natureza da alegada incompatibilidade da section 4(9) da Lei do IVA.

121.

Na audiência, os recorrentes afirmaram que, no seu entender, a principal incompatibilidade resultava da section 4(6) da Lei do IVA. Esta última disposição isenta todas as primeiras entregas de bens imóveis quando o imposto a montante não é recuperável. Os recorrentes entendem que essa isenção é incompatível com o artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e com o artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA, na medida em que essas disposições de direito da União impõem a tributação de todas as primeiras entregas de bens imóveis. Além disso, uma vez que a section 4(9) da Lei do IVA remete para a section 4(6) da mesma lei, a incompatibilidade desta com a Sexta Diretiva IVA também determina a incompatibilidade da primeira.

122.

O recorrido e o Governo irlandês contestam essa interpretação da lei e, nas suas observações escritas, expõem a leitura que propugnam dessa disposição e as razões que a justificam.

123.

Consequentemente, no que respeita à quinta, sexta e oitava questões, o Tribunal de Justiça encontra-se numa posição em que é difícil extrair do pedido de decisão prejudicial apresentado pelo órgão jurisdicional nacional exatamente em que consiste a incompatibilidade da section 4(9) da Lei do IVA com a Sexta Diretiva IVA. Qualquer hipotética incompatibilidade é fortemente contestada pelo Governo irlandês. Os próprios recorrentes têm dificuldades em explicar qual o problema específico detetado na section 4(9), além do facto de remeter para a section 4(6) da Lei do IVA. Além disso, ainda que se aceitasse a explicação dos recorrentes em relação à incompatibilidade, custa-me vislumbrar a sua pertinência para o presente processo, uma vez que, conforme foi confirmado na audiência, neste caso o imposto a montante era recuperável.

124.

Não é tarefa do Tribunal de Justiça interpretar o direito nacional. Muito menos é sua tarefa servir de árbitro entre partes que propugnam diferentes interpretações desse direito nos casos em que a existência e a natureza da alegada incompatibilidade e/ou incumprimento da obrigação de aplicação não são evidentes e são claramente contestadas.

125.

Consequentemente, e à luz das considerações precedentes, entendo que o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto necessários para fornecer uma resposta útil que não assente em hipóteses e especulação acerca da natureza da alegada incompatibilidade da section 4(9) da Lei do IVA com a Sexta Diretiva IVA.

126.

Por conseguinte, proponho que a quinta, sexta e oitava questões sejam declaradas inadmissíveis.

V. Conclusão

127.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça se digne responder às questões da Supreme Court da Irlanda nos seguintes termos:

Questões 1 e 2

As disposições da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, e as medidas nacionais que transpõem essa diretiva devem ser interpretadas à luz do princípio geral de direito da União da proibição do abuso na aplicação da lei em sede de IVA. O mesmo é válido:

Questão 3

Quando se verifique uma violação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei, as operações implicadas devem ser reclassificadas de forma a restabelecer a situação tal como ela existiria na ausência das operações constitutivas do abuso.

Em circunstâncias como as do presente processo, na medida em que as operações prévias à alienação dos imóveis sejam desconsideradas na aplicação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei e as alienações subsequentes dos imóveis constituam, portanto, a primeira entrega desses imóveis, essas alienações devem ser avaliadas para efeitos de IVA em conformidade com as regras nacionais aplicáveis, interpretadas à luz do direito da União, em especial o artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e o artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA.

Questão 4

Num caso como o do processo principal, a «finalidade essencial» não deve ser apreciada em relação às operações prévias à alienação dos imóveis e à alienação final, no seu conjunto. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar qual a operação ou operações prévias à alienação dos imóveis relativamente às quais deve ser apreciada a «finalidade essencial» para efeitos da identificação de um eventual abuso na aplicação da lei em sede de IVA.

Questão 7

Nos casos como o do processo principal, quando:

seria contrário à finalidade do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), e do artigo 13.o, B, alínea g), da Sexta Diretiva IVA o tratamento da arrendamento de longa duração como uma «entrega efetuada anteriormente à primeira ocupação» na aceção do artigo 4.o, n.o 3, alínea a), dessa diretiva.

Questões 5, 6 e 8

A quinta, a sexta e a oitava questão são declaradas inadmissíveis.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121).

( 3 ) Um cínico (ou um realista, conforme a perspetiva) poderia acrescentar que esse desconhecimento constitui mesmo um requisito indispensável à continuidade de tal ligação.

( 4 ) Sexta Diretiva do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO 1977, L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54).

( 5 ) Atualmente substituída pela Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1).

( 6 ) Mais precisamente, as locações por prazo superior a dez anos são tratadas como entregas de bens imóveis sujeitas a IVA. No entanto, se o prazo da locação for inferior a vinte anos, é igualmente cobrado IVA sobre o direito de reversão.

( 7 ) Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832, n.o 35).

( 8 ) V., entre outros, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, University of Huddersfield (C-223/03, EU:C:2006:124, n.o 52); de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 68 e 69, e jurisprudência aí referida); de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804, n.o 25); de 13 de março de 2014, SICES e o. (C-155/13, EU:C:2014:145, n.os 29 e 30); e de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 32). V. também acórdão de 22 de dezembro de 2010, RBS Deutschland Holdings (C-277/09, EU:C:2010:810, n.o 47).

( 9 ) Acórdão de 10 de janeiro de 1985, Association des Centres distributeurs Leclerc e Thouars Distribution (229/83, EU:C:1985:1, n.o 27).

( 10 ) Acórdãos de 3 de dezembro de 1974, van Binsbergen (33/74, EU:C:1974:131, n.o 13), e de 5 de outubro de 1994, TV10 (C-23/93, EU:C:1994:362, n.o 21).

( 11 ) A propósito desta coleção terminológica, v., por exemplo, Cerioni, L., «The “Abuse of Rights” in EU Company Law and EU Tax Law: A Re-reading of the ECJ Case-Law and the Quest for a Unitary Notion», vol. 21, European Business Law Review, 2010, pp. 783 a 813.

( 12 ) Para uma taxonomia e um debate mais aprofundados sobre o abuso e sobre a distinção entre o abuso na aplicação da lei e o abuso de direito («abuse of law» e «abuse of rights»), v. Saydé, A., Abuse of EU Law and Regulation of the Internal Market, Hart Publishing, Oxford, 2014, pp. 16 a 31.

( 13 ) V., por exemplo, acórdãos de 23 de setembro de 2003, Akrich (C-109/01, EU:C:2003:491), e de 17 de julho de 2014, Torresi (C-58/13C-59/13, EU:C:2014:2088). Sobre esse tema, v., por exemplo, de la Feria, R., «Prohibition of Abuse of (Community) Law: the Creation of a New General Principle of EC law through Tax», vol. 45, Common Market Law Review, 2008, pp. 395 e p. 429.

( 14 ) Para a confirmação de que existem consideráveis diferenças nos diversos domínios do direito da União, v. de la Feria, R. e Vogenauer, S. (EE.), Prohibition of Abuse of Law: A New General Principle of EU Law? Hart Publishing, Oxford, 2011.

( 15 ) V., nesse sentido, acórdãos de 13 de janeiro de 2004, Kühne & Heitz (C-453/00, EU:C:2004:17, n.o 28), ou de 18 de julho de 2007, Lucchini (C-119/05, EU:C:2007:434, n.o 63).

( 16 ) Acórdão de 6 de março de 2007, Meilicke e o. (C-292/04, EU:C:2007:132, n.o 34).

( 17 ) V., por exemplo, Steiner, E., Comparing the Prospective Effect of Judicial Rulings across Jurisdictions, Springer International Publishing, Suíça, 2015, pp. 12 a 13; e Lang, M., «Limitation of temporal effects of CJEU judgments: Mission impossible for the governments of EU Member States», in Popelier, P., e outros. (EE.), The Effects of Judicial Decisions in Time, Intersentia, Cambridge, 2014, p. 245.

( 18 ) Lenaerts, K., e Gutiérrez-Fons, J.A., «The Constitutional Allocation of Powers and General Principles of EU law», vol. 47, Common Market Law Review, 2010, p. 1629, e pp. 1645 a 1649.

( 19 ) Deste ponto de vista firmemente assente na perceção do papel das decisões judiciais de instância superior dos seus Estados-Membros — v., por exemplo, estudos comparativos gerais in MacCormick, D. N., e Summers, R.S. (EE.), Interpreting Precedents: A Comparative Study, Ashgate Publishing, Dartmouth, 1997. Pelo contrário, quando, num caso concreto, termina a determinação da lei e começa a sua criação, põe-se uma questão diferente (mas que seguramente não é uma questão nova). Já em 1934 Arthur Goodhart se referiu a esta questão como um tema que domina o pensamento jurídico inglês e americano há séculos (Goodhart, A. L., Precedent in English and Continental Law, Stevens and Sons, Londres, 1934, p. 14). V. também Cross, R., e Harris, J.W., Precedent in English Law, 4.a ed., Clarendon Press, Oxford, 1991, pp. 27 a 34.

( 20 ) V., nesse sentido, em relação ao abuso na aplicação da lei em sede de IVA, acórdão de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport Italmoda Mariano Previti e o. (C-131/13, C-163/13C-164/13, EU:C:2014:2455, n.os 54 a 60).

( 21 ) V., por exemplo, acórdãos de 8 de abril de 1976, Defrenne (43/75, EU:C:1976:56, n.o 72), e de 28 de setembro de 1994, Vroege (C-57/93, EU:C:1994:352, n.o 21).

( 22 ) V., por exemplo, acórdãos de 8 de abril de 1976, Defrenne (43/75, EU:C:1976:56, n.o 74), e de 28 de setembro de 1994, Vroege (C-57/93, EU:C:1994:352, n.o 21).

( 23 ) Acórdão de 28 de setembro de 1994, Vroege (C-57/93, EU:C:1994:352, n.o 21). V. também acórdão de 12 de outubro de 2000, Cooke (C-372/98, EU:C:2000:558, n.o 42). V. em geral, por exemplo, Düsterhaus, D., «Eppur Si Muove! The Past, Present and (possible) Future of Temporal Limitations in the Preliminary Ruling Procedure», Yearbook of European Law, 2016.

( 24 ) Acórdão de 23 de maio de 2000, Buchner e o. (C-104/98, EU:C:2000:276, n.o 40).

( 25 ) Acrescente-se que este problema não é certamente novo e não se restringe certamente à ordem jurídica da União. Para uma síntese comparativa v., por exemplo, Steiner, E., op. cit. sup., nota 17, ou Popelier, P., e outros, op. cit. sup., nota 17.

( 26 ) Para uma lista de exemplos, v. nota 41 das conclusões do advogado-geral M. Poiares Maduro no processo Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2005:200); ou cada capítulo in la Feria, R., e Vogenauer, S. (op. cit. sup., nota 14). Conforme afirmado por Schammo, P., «a jurisprudência sobre o abuso de direito é atualmente transversal a todo o direito comunitário» (Schammo, P, «Arbitrage and Abuse of Rights in EC Legal System», vol. 14, European Law Journal, 2008, p. 359). Ou, mais resumidamente mas de forma talvez não muito otimista: «o abuso está em toda a parte no direito da União» (Saydé, A., op. cit. sup., nota 12, a p. 13).

( 27 ) Acórdão de 15 de outubro de 2009, Audiolux e o. (C-101/08, EU:C:2009:626, n.o 50).

( 28 ) V., também, referências nos artigos 13.o A, 14.o e 15.o a «fraude, evasão e abuso». Os artigos 13.o, 14.o, 15.o e 27.o, 28.o C e 28.o K também fazem referência a «evasão» (na versão aplicável à data dos factos).

( 29 ) V artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO 1995, L 312, p. 1).

( 30 ) O artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95 estabelece que «[o]s atos relativamente aos quais se prove terem por fim obter uma vantagem contrária aos objetivos do direito comunitário aplicável nas circunstâncias, criando artificialmente condições necessárias à obtenção dessa vantagem, têm como consequência, consoante o caso, quer a não obtenção da vantagem quer a sua retirada».

( 31 ) Acórdão de 14 de dezembro de 2000, Emsland-Stärke (C-110/99, EU:C:2000:695).

( 32 ) Supra, n.o 29 das presentes conclusões.

( 33 ) Acórdão de 8 de abril de 1976, Defrenne (43/75, EU:C:1976:56, n.o 71).

( 34 ) N.o 42 das presentes conclusões.

( 35 ) V. acórdãos de 8 de junho de 2000, Breitsohl (C-400/98, EU:C:2000:304, n.o 38), e de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport Italmoda Mariano Previti e o. (C-131/13, C-163/13C-164/13, EU:C:2014:2455, n.o 60), que refletem a máxima latina maxim nemo propriam turpitudinem allegare potest.

( 36 ) Acórdãos de 14 de dezembro de 2000, Emsland-Stärke (C-110/99, EU:C:2000:695, n.o 54), e de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 76).

( 37 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 86).

( 38 ) V., por exemplo, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 73), e de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804, n.o 27).

( 39 ) V., por exemplo, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 74), e de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804, n.o 29); não obstante existir um número limitado de exceções noutros domínios de aplicação do princípio da proibição do abuso na aplicação da lei (v., por exemplo, acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi, C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 33, que faz referência a «regulamentação» e não a «disposições pertinentes»).

( 40 ) V., por exemplo, em relação ao IVA, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 79 e 80) (artigo 17.o da Sexta Diretiva IVA); de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108, n.o 60) (artigo 11.o, A), n.o 1, alínea a), da Sexta Diretiva IVA); e de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832, n.os 38 e 41) [artigos 43.o e 56.o, n.o 1, alínea k), da Diretiva 2006/112, substituídos pelos artigos 45.o e 59.o, alínea k), conforme alterada pela Diretiva 2008/8/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008 (JO 2008, L 44, p. 11)] (a Diretiva 2006/11 substituiu a Sexta Diretiva IVA). Esse facto está também provavelmente refletido nos antecedentes da «condição objetiva», na medida em que, em retrospetiva, seja possível reconstruir esses antecedentes. Assim, em processos relativos a alegações de abuso, já antes de o critério bifurcado ter sido formulado no acórdão Emsland-Stärke e, mais tarde, no domínio do IVA, no acórdão Halifax, o Tribunal de Justiça verificou se o objetivo de disposições específicas tinha sido alcançado [v., por exemplo, acórdãos de 12 de maio de 1998, Kefalas e o. (C-367/96, EU:C:1998:222, n.o 23), e de 23 de março de 2000, Diamantis (C-373/97, EU:C:2000:150, n.os 33 e 34), ambos relativos ao artigo 25.o, n.o 1, da Segunda Diretiva 77/91/CEE do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados-Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO 1977, L 26, p. 1; EE 17 F1 p. 44).

( 41 ) Saliento que, no acórdão Emsland-Stärke, proferido no processo que esteve na origem da condição objetiva, o Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre esta condição, limitando-se a declarar que «[o] Bundesfinanzhof considera que as circunstâncias de facto descritas na primeira questão prejudicial demonstram que o objetivo da regulamentação comunitária não foi alcançado». Acórdão de 14 de dezembro de 2000, Emsland-Stärke (C-110/99, EU:C:2000:695, n.o 55).

( 42 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121); de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108); e de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832).

( 43 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 79).

( 44 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 80). Porém, v. acórdãos Weald Leasing e RBS, que aparentemente propugnam uma abordagem diferente: acórdãos de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804), e de 22 de dezembro de 2010, RBS Deutschland Holdings (C-277/09, EU:C:2010:810, n.os 44 a 45).

( 45 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108).

( 46 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108, n.o 52).

( 47 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108, n.o 60).

( 48 ) Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832).

( 49 ) Inicialmente, artigo 43.o e artigo 56.o, n.o 1, alínea k), da Diretiva 2006/112 e subsequentemente artigo 45.o e artigo 59.o, alínea k), após alteração pela Diretiva 2008/8.

( 50 ) Apesar de o artigo 2.o, n.o 1, pouco acrescentar e poder ser citado em praticamente qualquer processo relativo à entrega de bens (poderia ter sido referido nos acórdãos Halifax ou Part Service, acima analisados, mas não o foi).

( 51 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 74).

( 52 ) Essa afirmação aproxima-se bastante da solução sugerida pela Comissão para o problema em causa no processo Emsland-Stärke, que não foi seguida pelo Tribunal de Justiça. A Comissão tinha proposto que se concluísse pela existência de abuso quando «as operações comerciais em causa têm por finalidade obter um benefício incompatível com os objetivos das regras comunitárias aplicáveis, no sentido de que as condições de obtenção do referido benefício foram criadas artificialmente» [v. acórdão de 14 de dezembro de 2000, Emsland-Stärke (C-110/99, EU:C:2000:695, n.o 43)] (o sublinhado é meu).

( 53 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 72).

( 54 ) Se o não forem, pode ser sugerido que, no tocante aos seus efeitos práticos, a proibição do abuso na aplicação da lei no direito público é incompatível com o princípio da legalidade. O sonho positivista da previsibilidade da lei, combinado com o princípio constitucional da legalidade de todos os atos públicos, significa que, em face da administração pública (incluindo, naturalmente, a administração fiscal), um particular deve poder prever, com base em leis válidas, se as suas ações são permitidas (legais) ou não permitidas (ilegais). Além disso, no âmbito dessa dicotomia, tudo o que não é expressamente proibido é permitido. A esta dicotomia clássica, a proibição do abuso na aplicação da lei, cujas condições são seguramente pouco claras, acrescenta provavelmente uma terceira zona cinzenta que, para o jurista mais tradicional e de orientação positivista, pode ser extremamente inquietante. Isso significa essencialmente que existe um terceiro grupo de operações que, não obstante serem admitidas formalmente ex ante, podem ser reavaliadas ex post como materialmente ilegais. Esse tipo de zona cinzenta com condições pouco claras pode efetivamente ser designada, de forma algo jocosa, por «legalidade de Schrödinger»: só depois de abrirmos a caixa descobrimos se a operação que está no seu interior é ou não legal.

( 55 ) Supra, n.o 50 das presentes conclusões.

( 56 ) O que, no meu entender, seria uma leitura algo «forçada».

( 57 ) Conforme analisado supra nos n.os 66 a 69 das presentes conclusões.

( 58 ) V. também n.os 49 a 51 supra. Vale a pena acrescentar que, no acórdão Emsland-Stärke, o advogado-geral S. Alber abordou esta matéria pela via inversa, afirmando que o artigo 4.o, n.o 3, «não cria um novo instituto jurídico, mas codifica um princípio geral do direito aplicável na ordem jurídica comunitária» [conclusões do advogado-geral S. Alber no processo Emsland-Stärke (C-110/99, EU:C:2000:252, n.o 80)].

( 59 ) Em processos subsequentes, em que estão em causa tanto o princípio do abuso na aplicação da lei como o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2988/95, o Tribunal de Justiça aplicou, em primeiro lugar, o princípio geral [v. acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255)].

( 60 ) E fê-lo expressamente no acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 52). V. também acórdão de 9 de julho de 2015, Cimmino e o. (C-607/13, EU:C:2015:448).

( 61 ) Supra, n.o 28 das presentes conclusões.

( 62 ) Proposta de Sexta Diretiva do Conselho relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme [COM(73) 950 final, de 20 de junho de 1973, Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 11/73, p. 9].

( 63 ) Acórdão de 4 de outubro de 2001, Goed Wonen (C-326/99, EU:C:2001:506, n.o 52). Saliento a aparente equiparação aqui efetuada pelo Tribunal de Justiça entre os conceitos de «primeira entrega» e «primeira ocupação». V. também acórdão de 12 de julho de 2012, J.J. Komen en Zonen Beheer Heerhugowaard (C-326/11, EU:C:2012:461, n.o 21), que emprega o termo «edifícios antigos».

( 64 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 75 e 86).

( 65 ) Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832, n.o 35).

( 66 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, University of Huddersfield (C-223/03, EU:C:2006:124, n.o 51).

( 67 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.os 69 e 70), e de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804, n.o 25).

( 68 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 75), e de 22 de dezembro de 2010, RBS Deutschland Holdings (C-277/09, EU:C:2010:810, n.o 49).

( 69 ) Acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 32).

( 70 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Part Service (C-425/06, EU:C:2008:108, n.o 45).

( 71 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 75), e de 22 de dezembro de 2010, Weald Leasing (C-103/09, EU:C:2010:804, n.o 30).

( 72 ) Acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 47).

( 73 ) Relativamente aos perigos que podem resultar do desrespeito desse princípio, v. novamente supra, nota 54.

( 74 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 72).

( 75 ) Acórdão de 14 de abril de 2016, Cervati e Malvi (C-131/14, EU:C:2016:255, n.o 35).

( 76 ) Acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 98); de 20 de junho de 2013, Newey (C-653/11, EU:C:2013:409, n.o 50); e de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C-419/14, EU:C:2015:832, n.o 52).

( 77 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, EU:C:2006:121, n.o 92).